domingo, 5 de dezembro de 2021

Boletim nº 103 - Dezembro 2021

 

ESPANHA: O FRANQUISMO CONTINUA VIVO

Em 16 de Novembro passado as autoridades do Estado espanhol entregaram à polícia marroquina Faisal Bahloul, um conhecido activista pela independência do Sahara Ocidental.

Faisal Bahloul

«O activista saharaui, de 44 anos, foi detido a 30 de Março em Basauri [País Basco]. Na altura, foi noticiado que era muito activo nas redes sociais, com cerca de 30.000 seguidores, e que postava mensagens "inflamatórias" contra os ocupantes do Sahara Ocidental.»
Segundo a agência espanhola EFE em Rabat, na altura da detenção o Ministério do Interior de Espanha informou que Faisal, que foi preso por ordem do tribunal, se radicalizara e utilizava as redes sociais para encorajar acções "terroristas e violentas" contra o povo e as instituições marroquinas em Espanha e no estrangeiro.
Fontes familiares afirmam que ele tinha residência legal em Espanha até 2024 e que estava pendente de um pedido de asilo em França, pedido este válido até 15 de Dezembro de 2021. Marrocos acusa-o de envolvimento nos acontecimentos ocorridos durante o desmantelamento do campo de Gdeim Izik, nos arredores de El Aaiún, em Novembro de 2010.
Segundo a EFE, «a investigação começou em Dezembro de 2020, quando a polícia espanhola tomou conhecimento da actividade de um indivíduo que publicou ameaças extremamente graves e violentas através de redes sociais.»
A Associação das Famílias dos Presos e Desaparecidos Saharauis (AFAPREDESA) acusa Madrid de ter violado a IV Convenção de Genebra e a Convenção contra a Tortura ao entregar Faisal Bahloul a Marrocos. Em comunicado, a associação considera que a Espanha violou as suas obrigações como poder administrante do território do Sahara, tal como estabelecido nos artigos 73 e 74 da Carta das Nações Unidas. Em apoio desta afirmação, cita a decisão de 4 de Julho de 2014 da Câmara Criminal da Audiência Nacional, então presidida pelo actual Ministro do Interior, Fernando Grande Marlaska, que determina que a Espanha, de acordo com as resoluções das Nações Unidas, continua a ser de jure, embora não de facto, o poder administrante do Sahara Ocidental e, até que a descolonização esteja concluída, tem as obrigações estabelecidas nos artigos 73º e 74º da Carta das Nações Unidas, incluindo a prestação de protecção, abrangendo a jurisdicional, aos seus cidadãos.
Para a AFAPREDESA a entrega do activista saharaui às autoridades marroquinas, efectuada por polícias espanhóis no aeroporto de Casablanca, constitui uma grave violação do Artigo 3 da Convenção contra a Tortura, que proíbe «a expulsão, regresso ou extradição de uma pessoa para outro Estado onde existam motivos substanciais para acreditar que ela correria o risco de ser sujeita a tortura». Salienta que o Executivo está consciente da existência de «violações manifestas, flagrantes ou maciças dos direitos humanos pelo Reino de Marrocos contra o povo saharaui, tanto no passado como no presente», e especifica o caso de genocídio, «uma verdade jurídica reconhecida pelo Despacho n.º 1/2015 para a acusação de 11 altos comandantes civis e militares marroquinos emitida em 19 de Abril de 2015 pelo Juiz Pablo Ruz».
A este respeito, regista a resolução da Comissão contra a Tortura da ONU sobre o prisioneiro Naama Asfari, pelo qual Marrocos foi condenado, e as decisões do Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária, como a de Agosto de 1996 sobre 10 jovens saharauis condenados a penas de prisão que vão de 18 meses a 10 anos «por participarem no exercício pacífico do seu direito à liberdade de opinião e de expressão»; outro de 1996, relativo à detenção de cinco jovens por se terem manifestado, e um de Fevereiro de 2021, relativo ao jornalista Walid El Batal, arbitrariamente privado da sua liberdade em violação da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
E inclui uma Acção Urgente adoptada em Junho de 2021 mandatada por um grupo de Relatores Especiais da ONU sobre alegações de agressões físicas e sexuais, assédio, ameaças e rusgas a jornalistas e defensores dos direitos humanos e membros da ISACOM (Instância Saharaui Contra a Ocupação Marroquina), incluindo as irmãs Sultana e Luaara Khaya, sob cerco domiciliário e sujeitas a agressões físicas e sexuais e intimidação.
Não é a primeira vez que as autoridades do Estado espanhol entregam à polícia de Marrocos cidadãos do Sahara Ocidental. «Há cinco anos, um jovem saharaui foi preso em Sevilha pela polícia espanhola por ter criticado duramente o regime de Mohamed VI em grupos de WhatsApp; as autoridades espanholas fizeram então as mesmas acusações: "preparar acções terroristas contra os interesses marroquinos em Espanha e ameaçar a vida do próprio rei Mohamed VI".
«Outro caso semelhante mas mais grave, ocorreu a 17 de Janeiro de 2019 quando o governo de Espanha entregou às autoridades marroquinas Husein Uld Bachir Uld Brahim (alias Saddam)».
«O estudante saharaui Husein Bachir Brahim chegou a 11 de Janeiro de 2019 a Lanzarote, num barco, fugindo da perseguição marroquina. No dia 14 declarou no tribunal de instrução de Arrecife que procurava asilo político por ser um activista dos direitos humanos e ser perseguido. O juiz ordenou a sua admissão e três dias mais tarde foi entregue a Marrocos pelo Ministério do Interior. Bachir, membro do grupo de estudantes saharauis conhecido como "El Ouali's Companions", detido em 2016 em Marraquexe, foi condenado a 12 anos de prisão.» 
As autoridades de Madrid conhecem a situação política e social em Marrocos e nos territórios ocupados do Sahara Ocidental. Conhecem as práticas do seu regime no campo da violação dos direitos humanos, práticas estas amplamente denunciadas por organizações internacionais de defesa dos Direitos Humanos e por organismos das Nações Unidas. Estas cumplicidades com o regime de Rabat extravasam questões de segurança e interesses económicos. Alertam-nos para que a herança recente do franquismo ainda está viva em Espanha.

 

GLASGOW 2021: COLONIALISMO CLIMÁTICO E JUSTIÇA CLIMÁTICA

Pela primeira vez, o Sahara Ocidental preparou e apresentou um documento sobre alterações climáticas numa reunião global: a COP 26 (31 Outubro-12 Novembro 2021). Uma equipa de políticos e técnicos saharauis, com o apoio de investigadores de outros países, elaborou e deu a conhecer, em nome da República Árabe Saharaui Democrática (RASD), uma Contribuição Indicativa Nacionalmente Determinada relativa ao seu território nacional.

Acampamentos saharauis na Argélia (foto WSRW)

À semelhança dos planos apresentados pelos diversos governos mundiais, conhecidos pela sigla em inglês NDC
1
Nationally Determined Contributions (NDC), são os documentos oficiais que estabelecem o que um país pretende fazer para enfrentar as alterações climáticas através da mitigação (redução da emissão de gases com efeito de estufa) e adaptação (redução dos riscos das alterações climáticas e abordagem dos impactos). Os países que assinaram o Acordo de Paris são obrigados a submeter os respectivos NDC ao Secretariado da Convenção das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (UNFCCC).
, a contribuição saharaui foi designada por “iNDC” (“Contribuição Indicativa”), já que o país não é membro das Nações Unidas devido ao seu estatuto de “território não-autónomo”. No comunicado de imprensa do Primeiro Ministro da RASD de 8 de Novembro, afirma-se que esta iniciativa «desafiou a injustiça climática e o colonialismo climático, uma vez que não é permitida a representação oficial do povo saharaui em resultado do conflito e da ocupação marroquina».
O documento segue os padrões internacionais, elaborando sobre as vulnerabilidades, os riscos e os impactos das alterações climáticas ao nível nacional e identificando prioridades, necessidades e acções de mitigação e adaptação, a curto e a longo prazos. Este corpo principal do texto é antecedido por uma “Introdução”, por uma explicitação das “Circunstâncias Nacionais” específicas do Sahara Ocidental e por uma apresentação da Metodologia adoptada.
Esclarece-se que se considera como território nacional o Sahara ocupado por Marrocos e o Sahara libertado sob controlo da Frente POLISARIO, não esquecendo a população refugiada nos Acampamentos na zona de Tindouf, em solo argelino.
«Este iNDC aborda questões de justiça climática relacionadas com o estatuto da RASD e com a vulnerabilidade da população saharaui, especialmente aquelas pessoas cuja vulnerabilidade é ampliada pelo seu estatuto de refugiado.
«O documento afirma o compromisso da RASD com os objectivos e princípios do Acordo de Paris e estabelece uma visão para a adaptação e mitigação das mudanças climáticas na RASD compatível com o Acordo (...). As acções identificadas incluem aquelas que podem ser tomadas imediatamente nas circunstâncias actuais, se houver acesso aos recursos apropriados, e aquelas que dependem da conclusão do processo de descolonização ordenado pela ONU. A assistência técnica e financeira externa é imprescindível para a realização destas acções e para desenvolver rapidamente a capacidade da RASD para lidar com as mudanças climáticas (…), incluindo a capacidade de projectar, custear, financiar e implementar muitas das acções identificadas no iNDC. Esta assistência também é necessária para cumprir os princípios de equidade e transparência, conforme estabelecido no Acordo e questões mais amplas de justiça climática. (…). O iNDC fornece uma base para a participação da RASD nos esforços globais para lidar com as alterações climáticas através da mitigação e adaptação, e para a participação da RASD na governação climática global e nos mecanismos de financiamento.»
No contexto da parte sobre as “Circunstâncias Nacionais”, expõe-se a profunda desigualdade existente, não reconhecida internacionalmente e sancionada pelas Nações Unidas, entre o território ocupado e a potência ocupante. «Nos termos do acordo de cessar-fogo das Nações Unidas de 1991 no Sahara Ocidental, a Frente POLISARIO e o Reino de Marrocos são reconhecidos pela ONU como as duas partes iguais no conflito. No entanto, apesar desta paridade formalmente reconhecida, a falha em organizar o referendo ordenado pela ONU e em resolver o conflito impediu a RASD de ser reconhecida como um estado membro de pleno direito da ONU. Isso impede a RASD de participar nos processos e mecanismos internacionais (…) aos quais Marrocos tem pleno acesso como membro da ONU. Consequentemente, dessas duas partes iguais no conflito, apenas Marrocos pode ser parte da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (UNFCCC) e signatária do Acordo de Paris. A RASD, e o povo saharaui que representa, permanecem excluídos desses mecanismos e da governação global da mudança climática e da arquitetura financeira mais ampla. Como resultado desta situação, a RASD não tem voz nas negociações climáticas ou nos processos mais amplos de governação das alterações climáticas, nem (...) nenhum acesso a financiamento climático internacional ou assistência técnica através da qual poderia construir a sua capacidade de mitigação e adaptação às alterações climáticas, e reduzir a sua considerável vulnerabilidade ao impacto das alterações climáticas. Isto é contrário a muitos dos princípios reconhecidos no Acordo de Paris, incluindo os de justiça climática, apoio ao país, participação e transparência, e a consideração de grupos vulneráveis e conhecimento indígena e local.»
Secundando uma investigação publicada em Outubro pela Western Sahara Resource Watch, intitulada Greenwashing Occupation, sobre como «os projectos marroquinos de energia renovável no Sahara Ocidental ocupado prolongam o conflito na última colónia de África», o documento apresentado na COP 26 afirma que «A capacidade de Marrocos atingir as suas metas climáticas e de cumprir o Acordo de Paris é (...) parcialmente dependente do desenvolvimento de infra-estruturas de energias renováveis no Sahara Ocidental ocupado, o que significa que as contribuições para alcançar os objectivos de Paris dependem directamente do colonialismo. Por meio desses mecanismos, o financiamento climático está a ser utilizado para promover o desenvolvimento do território ocupado em benefício da potência ocupante, ao mesmo tempo que é negado aos deslocados e refugiados saharauis, reforçando as desigualdades estruturais causadas pelo conflito, contrários aos princípios de equidade climática e justiça.»
De facto, chama a atenção o comunicado de imprensa já citado: «Marrocos tem explorado mecanismos de financiamento e governação climática para se posicionar como líder climático e reforçar a sua ocupação, incluindo o Sahara Ocidental nos cálculos das suas emissões territoriais e nas acções de mitigação e adaptação planeadas.» Por exemplo, «Marrocos recorreu ao mecanismo de desenvolvimento limpo da ONU (MDL) para financiar as energias renováveis no Sahara Ocidental ocupado, usando o financiamento privado e a acreditação no âmbito de esquemas de compensação climática para desenvolver infra-estruturas de energias renováveis nas áreas ocupadas.»
O iNDC sublinha que «o próprio conflito exacerba as vulnerabilidades, riscos e impactos das mudanças climáticas de várias formas. Os refugiados saharauis nos campos perto de Tindouf estão expostos a uma série de perigos que são agravados pelas mudanças climáticas, incluindo inundações repentinas e picos extremos de calor. A infra-estrutura e os serviços nos campos são básicos e frágeis e, portanto, vulneráveis aos impactos físicos dos extremos climáticos. Pobreza, dependência da ajuda internacional e o facto de os campos serem geograficamente limitados num ambiente desértico muito duro convergem para aumentar a vulnerabilidade da população refugiada. (…). No território ocupado, o acesso aos recursos está condicionado à aceitação da soberania marroquina e os saharauis são marginalizados em favor dos colonos marroquinos. Os estilos de vida nómadas tradicionais são severamente restringidos, resultando numa perda de conhecimento autóctone em relação ao meio ambiente e recursos. Nos Acampamentos, a sedentarização forçada dos saharauis, resultante da sua condição de refugiados, tem um efeito semelhante.»
Em resumo, «o próprio conflito serve, portanto, para exacerbar os riscos das alterações climáticas. Além disso, o clima internacional de governação e a arquitectura financeira trabalham para beneficiar uma das partes do conflito do Sahara Ocidental (Marrocos), enquanto excluí e prejudica a outra (RASD). Esta arquitectura nega uma voz ao povo saharaui e aos seus representantes nos processos internacionais de alterações climáticas, enquanto o conflito permanece sem solução e o processo de descolonização continua incompleto. Também nega o acesso do povo saharaui aos recursos materiais necessários para reduzir a sua vulnerabilidade, construir a sua capacidade de adaptação e garantir o desenvolvimento de uma sociedade próspera, sustentável e de baixo carbono. A canalização de financiamento climático e apoio técnico para uma das partes do conflito à custa da outra parte serve para criar uma desvantagem adicional e excluir a já marginalizada população saharaui, ao mesmo tempo que favorece a outra parte e facilita a sua ocupação militar do Sahara Ocidental. Este é um exemplo de como o financiamento no âmbito do clima piora as desigualdades e vulnerabilidades que pretende supostamente enfrentar, à escala nacional, ao mesmo tempo que apoia o colonialismo em África - um exemplo extremo de injustiça climática.»
O documento fornece informação sobre o histórico das mudanças climáticas no território e projecções sobre o futuro, assim como sobre as actuais condições no campo da energia e das emissões de carbono no território ocupado, no território libertado e nos Acampamentos, e propostas de mitigação e de adaptação neste contexto. Refere as vulnerabilidades, impactos e riscos do ponto de vista do ambiente, ecosistemas e biodiversidade, das povoações, das infra-estruturas, saúde e bem-estar das populações, da água, da agricultura e da produção alimentar, e da herança cultural (material e imaterial). Termina com a indicação das prioridades de mitigação e de adaptação ao nível nacional, detalhando as acções necessárias e os requisitos para a sua implementação, quer no âmbito do que pode ser realizado já, como do que só poderá concretizar-se após o termo do processo de descolonização.

 

MINURSO: «QUEM NASCE TORTO ...»

Joseph Alfred Grinblat, um antigo funcionário das Nações Unidas, escreveu recentemente um artigo sobre a sua experiência de trabalho nos inícios da MINURSO, a Missão da ONU para o Referendo no Sahara Ocidental, que aqui traduzimos pelo seu interesse.

Peões de Hassan II

«Faz agora 30 anos que foi criada a missão referendária das Nações Unidas para o Sahara Ocidental, conhecida como MINURSO, e eu fui um dos seus primeiros membros.
«A partir de 1971, estudantes saharauis em Marrocos iniciaram um movimento para a independência do Sahara espanhol. Os saharauis são o povo autóctone da região ocidental do Sahara Ocidental, e o braço político dos saharauis é a Frente POLISARIO que foi formalmente constituída em 10 de Maio de 1973. O primeiro ataque do movimento saharaui contra posições espanholas ocorreu a 20 de Maio de 1973.
«Menos de dois anos depois, em Outubro de 1975, a Espanha iniciou negociações com a direcção da POLISARIO para uma transferência do poder. Contudo, para antecipar esta etapa, Marrocos invadiu o Sahara Ocidental em 6 de Novembro de 1975. O governo de Espanha não quis o conflito e assinou um acordo tripartido com Marrocos e a Mauritânia em 14 de Novembro de 1975, a fim de transferir o território para ambos os países. A POLISARIO, porém, continuou a lutar contra Marrocos a partir da sua base perto de Tindouf, na Argélia.
«Em Abril de 1991 a ONU conseguiu obter um acordo de cessar-fogo entre as duas partes. O plano previa a organização de um referendo no qual o povo saharaui decidiria se queria ser independente ou marroquino, e a ONU criou a MINURSO (Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental).
«O chefe da MINURSO era um diplomata suíço, Johannes Manz, e o seu adjunto era um antigo funcionário paquistanês da ONU, Zia Rizvi. Inicialmente a ONU criou a Comissão de Identificação com a responsabilidade crucial de decidir quem seria autorizado a votar no referendo. Uma vez estabelecida a lista de eleitores, a Comissão mudaria o seu nome para Comissão de Referendo e seria responsável pela organização e supervisão da votação.
«A 1 de Agosto de 1991 fui oficialmente destacado da Divisão de População da ONU para a Comissão de Identificação da MINURSO. O presidente da Comissão era Macaire Pedanou, um membro do pessoal da ONU do Togo, e havia cinco vice-presidentes, incluindo eu próprio.
«O cessar-fogo devia começar no início de Setembro e foi decidido que os vice-presidentes da Comissão deixariam Nova Iorque para El Aaiún (a capital do Sahara Ocidental) a 7 de Setembro de 1991. Os restantes membros da Comissão, cerca de 30 pessoas, deviam juntar-se a nós mais tarde.
«A 7 de Setembro embarcámos num avião da Royal Air Maroc em Nova Iorque com 100 quilos de bagagem cada um, o suficiente para passar seis meses no deserto. Mas quando chegámos a Casablanca, na manhã de 8 de Setembro, não nos foi permitido ir a Laayoune e fomos levados à força para Rabat, a capital, pela polícia secreta marroquina. Ficámos retidos lá durante quase duas semanas, até 21 de Setembro, com sessões diárias, tipo lavagem ao cérebro, com pessoas que justificavam a posse marroquina do Sahara Ocidental. Descobrimos que o nosso rapto tinha sido organizado pelo Ministro do Interior de Marrocos, Driss Basri, com o acordo de Zia Rizvi, que nos esperava em Rabat.
«Rizvi tinha-se tornado o chefe de facto da missão da ONU em Marrocos porque Manz tinha dado uma entrevista aos meios de comunicação social que o governo marroquino considerara como um apoio à posição da POLISARIO, deixando de ser bem-vindo em Marrocos. Embora Manz tivesse inicialmente planeado estar no país a tempo inteiro, só lá passou dois dias.
«Em 21 de Setembro de 1991 voámos para Laayoune. Lá, em vez de ficarmos numa tenda no deserto, fomos alojados num antigo hotel de cinco estrelas do ClubMed!!!
«Durante as três semanas seguintes, da nossa base em Laayoune estivemos muito ocupados a visitar as cinco regiões do Sahara Ocidental, bem como Tindouf, na Argélia, onde a POLISARIO tinha os seus escritórios. Visitei também Nouadhibou, na Mauritânia, onde também existem campos de refugiados saharauis. O objectivo era discutir com as autoridades locais como implementar a identificação das pessoas que seriam autorizadas a votar no referendo.
«No sábado 12 de Outubro, de regresso a Laayoune após uma viagem a Bojador, uma cidade balnear do Sahara Ocidental, o Governador Azmi, encarregado pelo governo marroquino de acompanhar a MINURSO, disse-nos que Rizvi lhe tinha pedido para regressar a Nova Iorque na segunda-feira 14 de Outubro. Não foi dada qualquer razão para isso. Nesse dia, como ordenado, voámos para Casablanca e de lá para Nova Iorque, onde chegámos no dia 15 de Outubro.
«Soube mais tarde que alguns dias antes de Rizvi nos ordenar o regresso a Nova Iorque, outro vice-presidente da Comissão, Gaby Milev, tinha encontrado uma solução para um problema prático que precisávamos de resolver a fim de iniciar a identificação dos eleitores. Mostrou-a a Rizvi que lhe ordenou que não contasse a ninguém e lhe tirou todos os documentos relacionados com ela. Dois dias depois recebemos as ordens para regressar a Nova Iorque.
«Embora já não estivéssemos no Sahara, éramos ainda membros da Comissão de Identificação, e trabalhámos num relatório sobre como prosseguir o nosso trabalho, a apresentar ao Conselho de Segurança pelo Secretário-geral [da ONU] Javier Pérez de Cuéllar.
«Em Novembro o nosso presidente Macaire Pedanou apresentou o nosso relatório a Pérez de Cuéllar, que lhe pediu que o modificasse para o tornar mais favorável a Marrocos. Macaire respondeu que o relatório não era dele mas da Comissão e que transmitiria o pedido aos outros membros do organismo. Encontrámo-nos e todos concordámos em não alterar o relatório.
«No entanto, o Secretário-geral mandou alterar o relatório antes de este ser apresentado ao Conselho de Segurança. A principal alteração foi que a ONU realizaria o referendo "após acordo das partes" (Marrocos e POLISARIO), em vez de "após consulta das partes". Isto significava que Marrocos ganhava o poder de impedir que a ONU realizasse o referendo.
«Mais tarde descobri que em Maio de 1991 Rizvi fora despedido do seu posto da ONU no Afeganistão devido a graves irregularidades financeiras. Mas viu então ser-lhe oferecido o lugar de adjunto de Manz na MINURSO pelo seu amigo Virendra Dayal que era o director do gabinete executivo do Secretário-geral.
«Para tornar a situação ainda mais bizarra, mais tarde, em 1992, foi oferecido a Pérez de Cuéllar, que se tinha reformado a 31 de Dezembro de 1991, um lugar numa empresa controlada pelo rei Hassan de Marrocos, a Omnium Nord-Africain (ONA). Demitiu-se assim que o cargo se tornou público.
«Manz estava descontente com o que estava a acontecer e demitiu-se do seu cargo de Representante Especial do Secretário-geral para o Sahara Ocidental a 20 de Dezembro de 1991. Os membros da Comissão de Identificação regressaram às suas posições originais na ONU a 31 de Janeiro de 1992.
«Há duas possibilidades para explicar o que aconteceu. A que me parece mais provável é que Pérez de Cuéllar tenha alterado o relatório para o Conselho de Segurança a pedido da França, cujo presidente, François Mitterrand, apoiou abertamente Marrocos (embora a sua esposa, Danielle, fosse a chefe de uma organização que apoiava a POLISARIO), e os Estados Unidos, que favoreciam oficialmente o direito dos povos à autodeterminação mas não queriam um Sahara Ocidental independente próximo da Argélia, Líbia e da então União Soviética. A possibilidade menos provável é que Pérez de Cuéllar tenha recebido incentivos de Marrocos para impedir o referendo.
«Em resumo, se Manz não tivesse dado a entrevista aos meios de comunicação social em 1991, ele - e não Rizvi - teria sido o responsável pelas operações diárias da MINURSO em Marrocos. Como resultado, não teríamos sido enviados de volta para Nova Iorque após cinco semanas, e teríamos podido continuar a nossa missão de organizar o referendo, de acordo com a autoridade dada à MINURSO pelo Conselho de Segurança.
«O Sahara Ocidental, país independente, teria sido criado em 1992.
«Após a dissolução da Comissão de Identificação a 8 de Janeiro de 1992, a MINURSO continuou a ter um escritório em Laayoune, tendo como único objectivo controlar o cessar-fogo entre Marrocos e a POLISARIO.
«Em Abril de 1993, a ONU decidiu reactivar a Comissão de Identificação e nomeou Erik Jensen, um membro do pessoal da ONU, como seu presidente. Fui o único elemento da comissão original que foi convidado a integrar a nova Comissão e fui responsabilizado pela formação dos novos membros, uma vez que eles não tinham quaisquer conhecimentos sobre os antecedentes.
«Para minha grande surpresa descobri que todos os ficheiros da Comissão de Identificação tinham desaparecido do escritório da ONU em Nova Iorque. Felizmente tinha guardado comigo alguns ficheiros muito bons, o que me permitiu dar informações detalhadas aos novos membros.
«Fui transferido a tempo inteiro para a MINURSO no dia 16 de Maio. No entanto, não pude partir imediatamente porque ia casar-me a 31 de Maio. Saí a 16 de Junho, um dia depois de eu e a minha mulher termos regressado da nossa lua-de-mel. Fiquei lá durante cinco meses, metade do tempo em Laayoune e metade em Tindouf, e regressei ao meu trabalho regular em Nova Iorque a 16 de Novembro de 1993.
«Em Setembro de 2021 Marrocos ainda administra o Sahara Ocidental como parte de Marrocos, enquanto a União Africana o considera um país independente ocupado por Marrocos, e a MINURSO ainda lá está com a missão de organizar um referendo. O Conselho de Segurança planeia renovar o seu mandato uma vez mais, a 27 de Outubro [o que se verificou].»

Joseph Alfred Grinblat é um estatístico-economista-demógrafo que se retirou das Nações Unidas em 2004, depois de ter passado 30 anos na Divisão de População da ONU, excepto para participar em duas missões de manutenção da paz no Sahara Ocidental. Passou também quatro anos na Tunísia (1969-1973), trabalhando para o Conselho da População e para a Fundação Ford. Vive em Flushing, Nova Iorque.


 

 


 


 


 

Sem comentários:

Enviar um comentário