sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Boletim nº 91 - Dezembro 2020

 

SAHARA OCIDENTAL: INOPERÂNCIA DA ONU FAZ REGRESSAR A GUERRA

Sem referendo para a autodeterminação, sem Enviado Pessoal para mediatizar a resolução do processo de descolonização, sem qualquer luz ao fundo do túnel que iluminasse o caminho para a liberdade, os saharauis decidiram tomar a iniciativa e romper com este eterno ciclo de inoperância das Nações Unidas.

O regresso à guerra

Tal como alguns analistas tinham alertado era expectável que, após a reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas que prorrogou o mandato da MINURSO, Marrocos tentasse afastar da zona os manifestantes saharauís que bloqueavam a passagem de Guerguerat, reabrindo assim o acesso ao tráfego rodoviário para a Mauritânia.
Os sinais de aproximação das forças militares marroquinas tornavam-se evidentes fazendo crescer a tensão na área. A Frente POLISARIO divulgou então um comunicado onde revê o evoluir da situação.
«• O cessar-fogo em curso no Sahara Ocidental supervisionado pela ONU continua a ser uma parte integrante do Plano de Acordo da ONU-OUA que foi aceite por ambas as partes, a Frente POLISARIO e Marrocos, em 30 de Agosto de 1988, que previa "um cessar-fogo e a realização de um referendo sem restrições militares ou administrativas para permitir ao povo do Sahara Ocidental, no exercício do seu direito à autodeterminação, escolher entre a independência e a integração com Marrocos”(S/21360; §1).
«• Para esse fim, na resolução 690 (1991), o Conselho de Segurança da ONU estabeleceu, sob a sua autoridade, a Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO) em 29 de Abril de 1991 para supervisionar o cessar-fogo e realizar o referendo de autodeterminação no Sahara Ocidental.
«• Como acordo complementar ao cessar-fogo, foi assinado o Acordo Militar n.º 1 entre a MINURSO e a Frente POLISARIO em Dezembro de 1997, e entre a MINURSO e Marrocos em Janeiro de 1998. O Acordo estabelece duas Áreas Restritas (AR) de 25 km ao sul e leste e 30 km ao norte e oeste do muro militar marroquino de 2700 km, respectivamente. Disparo de armas, movimentação de tropas, entrada de armas e munições e melhoria da infra-estrutura de defesa não são permitidas nas AR.
«• O Acordo Militar n.º 1 também estabelece uma Zona Tampão de 5 km de largura ao sul e a leste do muro militar marroquino, onde a entrada de tropas ou equipamento de ambas as partes, por terra ou ar, e o disparo de armas nesta área ou sobre ela, são proibidos em todos os momentos e é uma sua violação. O acordo define ainda todas as violações que não são apenas violações do próprio Acordo, mas também são contrárias ao espírito do plano de paz.
«• A passagem ilegal existente que o exército marroquino abriu no seu muro militar através da Zona Tampão em Guerguerat, no sudoeste do Sahara Ocidental, não existia no momento da entrada em vigor do cessar-fogo em 6 de Setembro de 1991. (...). Nenhum dos dois acordos previa a abertura de passagens para actividades "civis", "comerciais" ou outras ao longo do muro militar marroquino.
«• É por isso que quando as autoridades militares marroquinas tentaram construir uma estrada asfaltada através da Zona Tampão em Guerguerat em direcção às fronteiras entre o Sahara Ocidental e a Mauritânia em Março de 2001, as Nações Unidas foram firmes na sua oposição a este empreendimento e advertiram Marrocos de que a estrada proposta "envolvia actividades que poderiam violar o acordo de cessar-fogo" (S/2001/398; §5). As Nações Unidas, então, não levantaram nenhuma questão a respeito de qualquer "tráfego comercial e civil" na área, frase que começou a aparecer nos relatórios do Secretário-geral apenas a partir de Abril de 2017.
«• A origem da tensão crescente em Guerguerat é, portanto, a existência da passagem ilegal resultante de uma mudança unilateral e continuada do status quo pelas autoridades marroquinas naquela área, que o Secretariado das Nações Unidas e o Conselho de Segurança deveriam ter tratado de forma firme e decisiva. Enquanto a causa original do problema permanecer sem solução, a instabilidade e a tensão persistirão na área.
«• Quase três décadas após a sua presença no Sahara Ocidental, a MINURSO não só falhou até agora em implementar plenamente o mandato para o qual foi criada em 1991, ou seja, a realização de um referendo sobre autodeterminação para o povo do Sahara Ocidental, como se tornou um observador passivo das acções anexionistas de Marrocos com o objectivo de entrincheirar à força e "normalizar" a sua ocupação ilegal de partes do Sahara Ocidental, incluindo a abertura e uso da passagem em Guerguerat para as suas operações ilegais na área e para além dela.
«• Em resposta a esta situação inaceitável, em 21 de Outubro de 2020 dezenas de civis saharauis iniciaram um protesto pacífico e não violento contra a persistência da passagem ilegal. Os civis saharauis também se manifestam contra as violações sistemáticas dos direitos humanos perpetradas impunemente pelas autoridades marroquinas no Sahara Ocidental ocupado e contra a pilhagem maciça dos seus recursos naturais sob o olhar da Missão das Nações Unidas no Território.
«• O protesto de civis saharauis é uma acção civil não violenta que está em conformidade com as normas internacionais. Além disso, a presença de civis saharauis na Zona Tampão em Guerguerat não é uma violação de qualquer acordo militar porque os acordos militares se aplicam apenas a militares. As Nações Unidas também deixaram claro que não têm problema com as pessoas que se manifestam pacificamente nessa área ou em qualquer outro lugar.
«• Nos últimos dois dias, conforme confirmado pela MINURSO, as tropas marroquinas entraram na AR ao longo do muro militar marroquino, em clara violação do Acordo Militar n.º 1. As autoridades marroquinas também transportaram veículos pesados, incluindo 16 motoniveladoras, para a área. Todas as indicações sugerem que as tropas marroquinas estão actualmente posicionadas para forçar o seu caminho na Zona Tampão para dispersar violentamente os manifestantes saharauis.
«• A Frente POLISARIO continua comprometida com as suas obrigações ao abrigo do acordo de cessar-fogo e acordos militares relacionados como parte integrante do Plano de Resolução da ONU-OUA. A Frente POLISARIO adverte, porém, que se a integridade física e a segurança dos civis saharauis que protestam pacificamente em Guerguerat forem colocadas em perigo, a Frente POLISARIO não terá outra opção senão tomar as medidas necessárias para os proteger.
«• A Frente POLISARIO alerta, portanto, as Nações Unidas, o Conselho de Segurança em particular e a comunidade internacional para as consequências muito graves que qualquer potencial acção militar ou outra das tropas marroquinas na Zona Tampão terá, não apenas no cessar-fogo em curso e acordos militares relacionados, mas também sobre a paz e a estabilidade de toda a região. É necessária portanto, uma acção urgente para evitar outra guerra no Sahara Ocidental.»
Dias depois as autoridades saharauis informaram: «Hoje, sexta-feira, 13 de Novembro, as Forças Armadas marroquinas violaram deliberadamente o acordo de cessar-fogo assinado entre as duas partes no conflito no Sahara Ocidental (Frente POLISARIO e Marrocos), enviando forças militares por três rotas a leste da passagem ilegal de Guerguerat contra civis saharauis que se manifestavam pacificamente na área desde 21 de Outubro. (…). O Exército de Libertação do Povo Saharaui começou a responder com a firmeza necessária a esta violação e à marcha hostil marroquina que representa um grave revés ao Acordo de cessar-fogo desde o seu início.»
Horas depois do reinício das hostilidades o porta-voz do Secretário-geral da ONU, Stéphane Dujarric, leu uma curta declaração: «Nos últimos dias, as Nações Unidas, incluindo o Secretário-geral, participaram em várias reuniões para evitar uma escalada da situação na AR na zona de El Guerguerat e para alertar sobre as violações do cessar-fogo e as graves consequências de qualquer alteração do status quo.
«O Secretário-geral da ONU lamenta que esses esforços não tenham sido bem-sucedidos e expressa grande preocupação com as possíveis consequências dos últimos acontecimentos.
«O Secretário-geral da ONU continua empenhado em fazer todo o possível para evitar o colapso do cessar-fogo em vigor desde 6 de Setembro de 1991 e está determinado a fazer todo o possível para remover todos os obstáculos à retomada do processo político.»
Assim que soube do desencadear das hostilidades na região de Guerguerat, Aminatou Haidar, através do tweet, salientou que «A inacção do Conselho [de Segurança] da ONU encorajou o ocupante marroquino a violar o acordo de cessar-fogo. A ONU deve agir antes que seja tarde.» e «Nós, os civis saharauis nos territórios ocupados, seremos as primeiras vítimas», alertou a vencedora do Prémio Nobel da Paz alternativo de 2019. E, com efeito, dias depois a ISACOM (Instancia Saharaui contra la Ocupación Marroquí), uma organização de cuja direcção Haidar faz parte, denunciava «o sequestro de civis saharauis pelas forças de ocupação e acções de busca nas suas casas na cidade ocupada de El Ayoun, para além de outras cidades saharauis ocupadas.»
«Estes acontecimentos ocorreram na sequência da grave deterioração da situação dos direitos humanos nas cidades ocupadas da RASD, após o perigoso ataque militar marroquino contra civis saharauis que se manifestavam pacificamente contra a passagem ilegal de El Guerguerat.
«A ISACOM confirmou que estes sequestros e incursões ocorreram no âmbito das vagas de retaliação por parte das autoridades de ocupação dirigidas contra civis saharauis nas cidades ocupadas, depois de Marrocos ter violado o cessar-fogo e ter provocado a eclosão da guerra entre Marrocos e a Frente POLISARIO.»
A organização apelou à intervenção urgente da Cruz Vermelha Internacional para pressionar Marrocos a respeitar a IV Convenção de Genebra relativa à protecção dos civis em tempo de guerra. «Lembramos à Cruz Vermelha Internacional a responsabilidade que por muito tempo ignorou sob o pretexto de que não havia guerra no país.»
A Amnistia Internacional confirmou estas informações: «De acordo com organizações locais que monitorizam a situação dos direitos humanos no Sahara Ocidental, a operação militar marroquina foi seguida pela repressão pela polícia marroquina contra activistas saharauis, incluindo rusgas em casas, aumento da vigilância e prisões.
«À medida que os confrontos entre Marrocos e a F. POLISARIO aumentam, tanto os activistas locais dos direitos humanos quanto os partidários da autodeterminação saharauí estão sob pressão cada vez maior. (…).
«Entre 13 e 21 de Novembro, a polícia marroquina cercou e vigiou de perto as casas de vários activistas e jornalistas saharauis, incluindo nas cidades de Laayoune e Boujdour. Entre os alvos estão os activistas Mahfouda Lefkire, Nazha El-Khalidi e Ahmed Ettandji.
«As organizações locais que monitorizam a situação dos direitos humanos no Sahara Ocidental também relataram que pelo menos quatro saharauis foram presos em Laayoune. Uma delas era uma menina de 12 anos presa em 19 de Novembro, supostamente por usar uma roupa de estilo militar na escola e uma camisa com a bandeira saharauí. Foi libertada no mesmo dia.»
Apesar da aparente ignorância do mundo relativamente ao conflito no Sahara Ocidental, a agência governamental norte americana The Federal Aviation Admistration (FAA) avisou em comunicado que a situação no Sahara Ocidental é grave e que isso a obriga a alertar para o perigo que correm as aeronaves que sobrevoem o seu espaço aéreo. A agência prevê uma elevada tensão na zona devido à intensificação das operações militares que estão a ocorrer no território saharaui e à capacidade que tem a Frente POLISARIO de utilizar armas antiaéreas. «A Frente POLISARIO provavelmente ainda tem acesso aos sistemas de defesa aérea portáteis SA-7 (MANPADS) e sistemas tácticos de mísseis superfície-ar (SAM), incluindo SA-9s, que representam um risco inadvertido de baixa altitude para a aviação civil que opera na contestada região. Os SA-7 MANPADS e SA-9 SAMs representam um risco de até 3.500 metros / 11.483 pés.»
Em comunicado difundido pela SPS, o Governo da República Árabe Saharaui Democrática advertiu países, entidades e indivíduos para as possíveis consequências da implicação em actividades no território do Sahara Ocidental, que se encontra em estado de guerra aberta.
Quanto a Rabat, a sua estratégia passa por negar que se tenha reacendido a guerra, tendo dado instruções à comunicação social nacional para que não sejam publicadas quaisquer informações sobre a situação no Sahara Ocidental. Uma forma de evitar o alarme a nível interno e o chamar das atenções para o território, a nível externo.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Boletim nº 90 - Novembro 2020

ONU: ENTRE A COMPLACÊNCIA E A IMPOTÊNCIA

Como era esperado, o Conselho de Segurança das Nações Unidas prorrogou o mandato da MINURSO, a sua Missão para a organização de um referendo no Sahara Ocidental, por mais um ano. Sem, contudo, propor caminhos para a realização dessa missão. Não admira que haja saharauís que se interroguem: será que a ONU começa a ser irrelevante neste processo?

ONU: obstáculo ou via para a paz?

Com a data de 23 de Setembro foi divulgado o Relatório do Secretário-geral das Nações Unidas ao Conselho de Segurança sobre a situação no Sahara Ocidental. Na preocupação de esconder a sua incapacidade em responder ao objectivo para que foi criada — e que está bem expresso na sua designação, Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental — o documento inventaria um conjunto de pontos de atrito e choque de posições, evitando, no entanto, dar o seu parecer sobre esses pontos de divergência.
Refere no seu § 6 que «Entre 19 de Dezembro 2019 e 12 de Março de 2020 o Burundi, Comores, Costa do Marfim, Djibouti, Gabão, Gâmbia, Guiné, Libéria, República Centro-Africana e São Tomé e Príncipe inauguraram “consulados gerais” em Laayoune e Dakhla. Nas suas cartas para mim em 3 de Julho de 2019, 20 de Novembro de 2019, 7 de Janeiro de 2020, 17 de Janeiro de 2020 e 18 de Fevereiro de 2020, o Secretário-geral da Frente POLISARIO, Brahim Ghali, qualificou a instalação dessas representações diplomáticas de "violação do direito internacional e […] [de] minar o status legal do Sahara Ocidental como um território não-autónomo”.» Porém, nada é dito sobre a leitura do SGONU sobre estas instalações, se considera que violam, ou não, o direito internacional.
Esse mesmo posicionamento esteve presente na conferência de imprensa do porta-voz Dujarric do SG ONU de 29 de Outubro passado. Perguntou o jornalista: «Tenho duas perguntas, ambas sobre a violação do direito internacional. (…). Os Emiratos Árabes Unidos decidiram abrir um consulado no disputado território do Sahara Ocidental, que ainda não foi resolvido, reconhecendo assim a soberania de Marrocos sobre este território. O que tem a dizer sobre isso, (...)?» Resposta: «Olhe, gostaria apenas de reiterar as nossas posições. Sobre o Sahara Ocidental, têm sido regularmente expostas pelo Secretário-geral nos seus relatórios. Sugiro-lhe que os consulte.»
Sobre a situação dos direitos humanos, o relatório não faz qualquer referência ao comentário da Alta Comissária Michelle Bachelet que lamentou recentemente que as missões técnicas não tenham visitado o território nos últimos cinco anos, acções que «eram vitais para identificar os problemas críticos dos direitos humanos» no território. Mas talvez tenha havido receio que isso levantasse a questão de a MINURSO ser a única Missão das Nações Unidas que não engloba no seu mandato o acompanhamento da situação dos DH. Diz apenas no § 84: «Reitero o meu apelo às partes para que respeitem e promovam os direitos humanos de todas as pessoas no Sahara Ocidental, inclusive resolvendo questões pendentes nesta área e fortalecendo a sua cooperação com o HCDH [Alto Comissariado] e com os mecanismos das Nações Unidas encarregados dos direitos humanos e facilitando as suas missões de monitorização.»
Este comportamento das Nações Unidas semeia a desconfiança na parte saharauí, como aliás o relatório reconhece no seu § 28. «A leste do muro, as forças militares da Frente POLISARIO têm sido muito menos cooperantes do que no passado.» E no § 54: «A falta de progressos no processo político levou a Frente POLISARIO a endurecer as críticas à MINURSO e à ONU.» Por outro lado, admite no § 55 que: «Não tendo acesso a interlocutores locais a oeste do muro [a parte ocupada por Marrocos], a Missão dispôs de meios muito limitados para recolher de forma independente informações fiáveis sobre a situação, bem como para avaliar a evolução da situação na área sob a sua responsabilidade e prestar contas sobre ela.»
«Desde que assumiu o cargo, o actual Secretário-geral das Nações Unidas António Guterres é, na verdade, o pior dos Secretários-gerais em relação à solução do conflito no Sahara Ocidental. Desde que assumiu a chefia do Secretariado-geral das Nações Unidas, Guterres inclinou-se mais para o lado marroquino e, como é europeu, ao contrário dos seus antecessores, o SG da ONU tradicionalmente aborda a questão saharaui segundo orientações políticas gerais da União Europeia, que evidentemente favorecem Marrocos e o apoiam na sua actual política de repressão e violação dos direitos humanos, tanto no próprio Marrocos como nas partes da ex-colónia espanhola que ocupa.
«Todos os relatórios deste Secretário-geral (Guterres) sobre o Sahara Ocidental, desde a sua tomada de posse até agora, são uma espécie de tentativa de marroquinizar o Sahara Ocidental. Guterres nunca chegou ao cerne do conflito e deixou-se envolver em conceitos marginais que não tocam a profundidade e a substância do problema, que é uma questão de descolonização.»
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https://www.ecsaharaui.com/2020/10/los-saharauis-califican-el-ultimo.html.
«A ONU tornou-se, ao longo do tempo, uma organização inútil, cara, corrupta e injusta, funcionando mais como um obstáculo do que como uma via para a paz. O seu Conselho de Segurança, onde a França tem direito de veto, é um monumento escandaloso à desigualdade e preferência, enquanto a sua Assembleia Geral é o espaço utilizado por Estados ditadores e criminosos para se sentarem em igualdade de condições com democratas e pessoas honestas.(…).»
«Hoje, a única solução que os saharauis vêem para desbloquear a situação e obrigar Marrocos a mudar é o regresso à luta armada, algo que a própria ONU e o Conselho de Segurança evitam a todo o custo, mas não fazem mais. Com as suas resoluções e passividade perante Marrocos perpetuam e prolongam o conflito, agravando assim a situação dos saharauís e, consequentemente, esgotando a sua paciência.(…).
«45 anos, uma missão especial da ONU, 6 Secretários-gerais, 4 Enviados Pessoais, 100 relatórios do Conselho de Segurança das Nações Unidas, 99 relatórios de diferentes Secretários-gerais da ONU e a situação do povo saharauí permanece a mesma de 1975.(…).
«A realidade é que o conflito saharauí e a questão do último país africano não descolonizado têm sido um fracasso colossal, absoluto e sem precedentes para as Nações Unidas, por mais que tentem disfarçá-lo. (…). Cada saharaui deve rever o passado e verificar se realmente progrediram no conflito ou se este se agravou.»
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https://www.ecsaharaui.com/2020/10/sahara-occidental-la-actual-protesta.html.
No dia 30 o Conselho de Segurança aprovou a prorrogação do mandato da MINURSO por mais um ano agitando como “bandeira de esperança” «que a obtenção de uma solução política para esta disputa de longa data e o reforço da cooperação entre os Estados-Membros da União Árabe do Magrebe contribuiria para a estabilidade e a segurança, o que, por sua vez, geraria empregos, crescimento e oportunidades para todos os povos da região do Sahel.»
Tanto a Rússia como a República da África do Sul, à semelhança do que tinham feito em 2019, abstiveram-se na votação, com o último destes países a tecer duras críticas ao Conselho de Segurança pelos seus métodos de abordagem da questão, afirmando que o processo de negociação do projecto de Resolução, através do Grupo de Amigos do Sahara Ocidental - constituído pelos E.U.A., que redige a proposta de texto, a Rússia, a França, o Reino Unido e a Espanha - continua a ser «um obstáculo para fazer progressos no processo do Sahara Ocidental e mina os métodos de trabalho do Conselho.»
Segundo a comunicação da embaixada da RASD no Botsuana que estamos a citar, «A África do Sul revelou que geralmente “um texto preliminar é apresentado [pelos países do Grupo de Amigos] aos membros do Conselho, que têm de aceitá-lo como facto consumado, apesar de a maioria de nós ter sido eleita para servir no Conselho de Segurança e ter a responsabilidade de se envolver em todos os assuntos sobre a agenda do Conselho.”
«A África do Sul sublinhou ainda que “este é o único mandato que é negociado desta forma e que não leva em consideração as opiniões, particularmente as dos Estados-Membros africanos, que estão excluídos do Grupo de Amigos. Nesse sentido, ao contrário de outros resultados do Conselho, mais uma vez não houve uma tentativa real de chegar a um acordo sobre os parágrafos contenciosos, para que pudessemos ter certeza de chegar a um texto equilibrado que reflectisse as opiniões de todos os membros do Conselho. Vamos deixar claro que não houve a tentativa de chegar a um consenso ”.»

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Boletim nº 89 - Outubro 2020

 

ISACOM: «ENFRENTAR OS DESAFIOS IMPOSTOS PELA LUTA»

Aminatou Haidar é hoje uma figura de referência na luta de emancipação do povo saharauí, estatuto este que lhe é reconhecido internacionalmente através de múltiplos prémios recebidos. A sua mensagem de coragem e determinação está presente na nova organização de defesa do direito internacional e direitos humanos recentemente criada.

Aminatou Haidar

Em 2008 recebeu o Robert F. Kennedy Human Rights Award, o que representou um incentivo para, no seu regresso ao Sahara Ocidental, se empenhar na organização desse trabalho tendo-se envolvido, nesse mesmo ano, na criação da Associação Saharauí de Defensores dos Direitos Humanos, vulgarmente conhecida, e reconhecida, pela sigla CODESA (de Colectivo de Defensores de Derechos Humanos). A sua direcção, presidida por Haidar, era assegurada por uma junta composta por 12 pessoas, depois 11, após o falecimento de Muhammad Faazel Kaud.
O CODESA tornou-se uma fonte de informação imprescindível para os que procuravam acompanhar a situação dos direitos humanos naquela colónia marroquina. Nos últimos anos, porém, a sua acção tornou-se mais esporádica e aleatória e a razão para tal não residia exclusivamente na repressão policial a que os seus activistas estavam sujeitos. Essas dificuldades de afirmação do seu trabalho foram agora esclarecidas com a notícia da sua auto-dissolução no início do passado mês de Setembro.
De acordo com o sítio EL CONFIDENCIAL SAHARAUI, «Tendo em conta a insatisfação de mais de metade dos membros da junta directiva com a persistência do actual modus operandi do colectivo, que com o tempo foi perdendo o seu ânimo; e apesar de já há dois anos não se realizarem reuniões e consultas, ao contrário do que deveria ter acontecido, comunicados de imprensa e relatórios atribuídos ao CODESA continuaram a ser publicados ilegalmente, em flagrante violação dos estatutos do colectivo dos defensores de D.H.
«A decisão de continuar a publicar relatórios e notas informativas foi tomada contra a vontade da maioria dos membros da sua junta directiva e sem a sua consulta prévia. (...), convém chamar a atenção para a falta de legitimidade para a publicação dos referidos documentos pelo CODESA.
«Como podemos saber de fontes próximas, alguns membros desse grupo têm tentado desde há muito tempo deslegitimar a sua fundadora, a conhecida activista Aminatou Haidar.»
Três semanas depois era anunciada a constituição de uma nova associação, a Instancia Saharaui Contra la Ocupación Marroquí (ISACOM), formada por «pessoas conhecidas pela sua militância cheia de abnegação e que praticaram o activismo pelos direitos humanos, tornando-se os seus dirigentes nas últimas duas décadas. Entre eles, houve pessoas agraciadas com prémios internacionais em reconhecimento pelo seu trabalho e pelo seu esforço para difundir a cultura dos Direitos Humanos.»
Diz a ISACOM no seu comunicado de apresentação:
«Depois de cumpridas todas as condições para a constituição – nomear uma comissão técnica para a preparação de uma base de orientação, um estatuto e um código de conduta – e após uma discussão aprofundada dos documentos, os militantes reunidos, homens e mulheres, anunciam o seguinte:
  • «A constituição de uma instituição saharaui que designámos por “Instância Saharaui contra a ocupação marroquina”.
  • «A nossa constante vontade de lutar pela liberdade e independência do povo saharauí e defender a dignidade saharauí por meios pacíficos e legítimos, considerando que este direito constitui a base e o espírito de todos os direitos civis, políticos, económicos, sociais e culturais, reconhecidos a todos os povos pelo direito internacional e pelo direito africano.
  • «Repudiamos todas as soluções duvidosas promovidas por Marrocos e por alguns interesses internacionais ou locais, que não garantam ao povo saharaui o exercício do seu direito à autodeterminação, direito inalienável, imprescritível e inquebrável.
  • «Condenamos o actual impasse e reafirmamos que a MINURSO é uma missão internacional cuja missão é a descolonização do Sahara Ocidental como a última colónia de África e não pode tornar-se um guarda-chuva para a protecção da ocupação.
  • «Reafirmamos a adesão do povo saharaui ao exercício da sua soberania sobre a totalidade do seu território nacional, de acordo com o seu direito fundamental garantido em todas as leis, tratados e convenções internacionais e continentais, em especial nas resoluções pertinentes das Nações Unidas e da União Africana e nos acórdãos do Tribunal Internacional de Justiça de 1975.
  • «Apelamos a todas as organizações e agências internacionais, forças democráticas e consciências vivas de todo o mundo, para que se coloquem ao nosso lado, nos apoiem na luta para exigir a libertação de todos os presos políticos saharauís nas prisões marroquinas e acabar com as contínuas violações dos nossos direitos por parte da potência ocupante.
  • «Exigimos às Nações Unidas e à União Africana que intervenham imediatamente para impedir a pilhagem sistemática e ilegítima dos recursos naturais do Sahara Ocidental pelo regime de ocupação e por empresas multinacionais e outros Estados e organizações envolvidas nos contratos de espoliação com o regime marroquino.
  • «Apelamos à comunidade internacional para que pressione o Estado ocupante a desmantelar o muro militar da vergonha e a fazer a sua desminagem, e para que Marrocos assine o Tratado de Otava sobre a proibição das minas antipessoal.
  • «Exigimos às Nações Unidas, à União Europeia, à União Africana e a outras agências e organizações internacionais e continentais, que se comprometam com o apoio humanitário aos refugiados saharauis, que desde 1975 têm sofrido as devastações do exílio pela expulsão das suas terras devido aos crimes da ocupação marroquina e à incapacidade das Nações Unidas em cumprir com as suas obrigações e compromissos de descolonizar o seu território ocupado.
«E para terminar, dirigimo-nos a todas as associações e quadros nacionais dos Territórios Ocupados e convidamo-los a cerrar fileiras e a reforçar a coesão e o fortalecimento da militância; para enfrentar os desafios impostos pela natureza da luta em que todos estamos empenhados contra os planos do regime marroquino e as suas políticas perniciosas. Apelamos também à população saharaui para que cumpra com a responsabilidade nacional que lhe foi confiada e cumpra o seu dever de luta através da participação intensa em todas as formas de militância que exijam o fim da ocupação, a libertação da terra e dos saharauís, e a protecção de todos os seus direitos.»
As autoridades marroquinas não perderam tempo a reagir. Segundo o jornal La Vanguardia, citando um despacho da agência EFE, «o Procurador-Geral do Tribunal de Recurso de El Aaiún» disse em comunicado que «o Congresso constitutivo da nova organização independentista [ISACOM] é “uma clara incitação a cometer actos contrários ao Código Penal”» e «que irão ser tomadas as medidas “adequadas” para preservar a ordem pública, assim como as “sanções legais” adequadas ao delito de atentar contra a integridade territorial de Marrocos.»
A Right Livelihood Foundation, por sua vez, não ignorou este comportamento de Rabat. Num comunicado de imprensa publicado em 30 de Setembro condenou «veementemente a campanha online de difamação que os meios de comunicação marroquinos têm conduzido contra Aminatou Haidar, a laureada do [prémio] Right Livelihood de 2019, e os seus companheiros activistas de direitos humanos, bem como a abertura de uma investigação judicial em resposta à recente criação de Instancia Saharaui contra la Ocupación Marroquí (ISACOM), uma nova organização criada em El-Ayoun e dirigida por Haidar.»
O comunicado refere depois exemplos desta campanha: «Artigos publicados na imprensa marroquina afirmam que a Right Livelihood Foundation foi solicitada por advogados espanhóis e membros da comunidade internacional de direitos humanos a retirar o Prémio Right Livelihood, concedido a Haidar no ano passado. Outros argumentam que a carta aberta recentemente enviada por 22 Laureados da Right Livelihood ao Secretário-geral da ONU, denunciando a situação dos direitos humanos no Sahara Ocidental, é o resultado de uma manipulação de Haidar, que os convenceu a porem-se ao “serviço da Frente POLISARIO”. Negamos veementemente essas acusações, bem como qualquer intenção de retirar o Prémio concedido a Haidar ou o termos sido solicitados a fazê-lo.»

sábado, 5 de setembro de 2020

Boletim nº 88 - Setembro 2020

FRENTE POLISARIO: ROMPER O «BLOQUEIO EXTERNO EXISTENTE»

No dia 21 de Agosto, em Tifariti nos territórios libertados, Brahim Ghali inaugurou a Universidade de Verão, tendo aproveitado a ocasião para anunciar - «na presença de personalidades nacionais e de grande número de residentes da região» - «uma nova estratégia para a reconstrução e repovoamento das áreas libertadas».

Brahim Ghali: «uma nova estratégia»

«A República Saharaui (RASD) é uma realidade irreversível e o país avançará com passos firmes na reconstrução permanente do Estado saharaui nas suas zonas libertadas.
«A construção das infra-estruturas para o Estado Saharaui não é temporária e hoje, no nosso território libertado, as construímos para que permaneçam para sempre.
«O Presidente da República disse que a situação actual obriga-nos a dar passos e a tomar outras decisões na reconstrução de outros locais noutros pontos da RASD e na construção das infra-estruturas do Estado saharaui.»
Em reacção a estas declarações Jorge Suárez Saponaro, Director do Diario El Minuto do Chile, escreveu dias depois um longo artigo com o sugestivo título “Sahara Occidental: El potencial económico de las ‘Zonas Liberadas’”, onde apresenta uma caracterização da região do Sahara Ocidental sob administração da Frente POLISARIO. Segundo ele, as zonas libertadas ocupam uma área aproximada de 90.000 km2 e, segundo estudos realizados pelas Nações Unidas e por ONG, nelas vive de modo permanente uma população entre 12.000 a 15.000 pessoas, «não só ligada à presença do Exército Saharaui, ao pastoreio transumante, mas também ao facto de terem a sua residência permanente em várias localidades localizadas na área.» Lembra-nos que «O estado saharaui realizou o XII Congresso [e o XV também] da Frente POLISARIO em Tifariti em 2007, com a presença de mais de 1.500 pessoas, entre as quais convidados da América, África e Europa. Existe, portanto, uma base sobre a qual se pode explorar o desenvolvimento de certas actividades económicas e até mesmo aumentar a presença da RASD nesta área, pois existe uma série de localidades e povoações:
  • Bir Lehlú, capital provisória da República e sede da declaração de independência, onde funciona a escola José Carlos Diego Aguirre, um posto de saúde que atende nómadas e um grupo de comerciantes com presença permanente.
  • Tifariti, a cidade mais importante, a tal ponto que a primeira universidade saharaui leva o seu nome, tem instalações sanitárias e militares e a presença de população permanente. Nas suas proximidades existe um parque arqueológico pré-histórico. Em tempos, com a ONG ASPS Sevilla, estava prevista a construção de 400 casas.
  • Mheiriz, com uma escola e um pequeno posto de saúde, construído com o apoio espanhol.
  • Miyek. Possui poço de água e instalações da MINURSO.
  • Agüenit, a cem quilómetros de Zuerat, uma importante cidade da Mauritânia. Tem um poço de água com um fluxo importante, com um posto de saúde.
  • Zug. Presença de população, graças à proximidade com a fronteira com a Mauritânia.»
E Saponaro conclui: «O desenvolvimento das zonas libertadas, o promover a radicação da população, o desenvolvimento das actividades económicas, culturais e políticas, mostrará que este espaço não é uma terra de ninguém, mas sim o espaço que pertence a um Estado soberano que se esforça por recuperar o resto do seu território sob ocupação militar desde 1976.»
Sugere em seguida um conjunto diversificado de políticas e de medidas, para concluir: «A nossa proposta estabelece uma série de pontos destinados a promover um debate construtivo, destinado a que o desenvolvimento das zonas libertadas se torne mais um instrumento de libertação e unidade nacional saharaui. A experiência dos Campos de Refugiados em diversos empreendimentos sociais pode servir de base para a sua aplicação nas localidades das áreas libertadas.
«O desenvolvimento das zonas libertadas permitirá à RASD a médio e longo prazo dispor de recursos próprios, o que reduzirá a sua dependência de outros actores, com as suas consequências políticas, aumentando a margem de manobra do governo saharaui.»
De acordo com o Sahara Press Service, «o plano apresentado pelo presidente saharaui foi saudado por várias organizações e entidades internacionais envolvidas em importantes projectos de apoio ao povo saharaui nos campos de refugiados e nas zonas libertadas.»
«Diferentes organizações, coordenadas na “MESA DE LOS TERRITORIOS LIBERADOS DEL SAHARA OCCIDENTAL”, emitiram um comunicado no qual expressam publicamente o seu entusiasmo pelas declarações do presidente saharaui e destacam “a decisão do povo saharaui de ocupar os territórios libertados e neles exercer correspondente plena soberania, desde a fronteira argelina até La Güerra, bem como o restante território saharaui e os seus recursos terrestres e marítimos.»
A plataforma de organizações «recorda que “na sua reunião inaugural, a 4 de Novembro de 2019, na cidade de Tifariti e na sua segunda reunião, promovida pela delegação saharaui para a Andaluzia, na cidade de Sevilha, a 8 de Fevereiro de 2020, as diferentes organizações concordaram em "intensificar as acções de apoio para promover o desenvolvimento dos TTLL do Sahara Ocidental".»
O Diario de Noticias de Pamplona do passado dia 25 noticiava que «Uma numerosa delegação chefiada pelo ministro saharaui para a Reconstrução e Repovoamento das áreas libertadas, Salem Lebsir, deu início a uma viagem a estas regiões para implementar o plano anunciado este fim-de-semana pelo dirigente da Frente POLISARIO e presidente da República Árabe Saharauí Democrática (RASD), Brahim Ghali.»
De acordo com este Diário, «A delegação política e militar chefiada por Lebsir iniciou na localidade de Bir Lehlu, considerada pela POLISARIO como a "capital provisória da RASD", uma série de encontros com autoridades municipais e militares para averiguar das suas necessidades e prioridades, avaliar a situação e recolher as suas propostas.
«“Por um lado, a consolidação da soberania saharauí nos territórios, ou seja, mais e melhor presença administrativa da RASD, e por outro lado, realizar esforços concretos para dignificar a vida do povo saharauí: ou seja, mais e melhores serviços sociais para a população dos territórios libertados”, explicou (...) à agência EFE Mohamad Zrug, diplomata saharaui integrado no projecto.
«“Por outro lado, creio que há aqui uma leitura política clara, isto é, dado o bloqueio externo existente que se opõe a uma solução justa e conforme com o direito internacional para a questão saharauí e o claro conluio de certos países com a política marroquina de ignorar essa solução, os saharauís têm o direito de apostar em soluções que não ponham em risco o seu futuro ”, acrescentou.
«“É uma solução mais desejada por todos do que a outra opção que também existe, que é recorrer à resistência por outras vias legítimas”, disse, referindo-se à possibilidade de um regresso às armas.»

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Boletim nº 87 - Agosto 2020

MAHFOUDA LEFKIR: «SAÍ DA PRISÃO PEQUENA APENAS PARA ENTRAR NA GRANDE PRISÃO»

Mahfouda Lefkir é uma activista saharauí dos direitos humanos do Colectivo Akdim Izik e da Associação Marroquina de Direitos Humanos (AMDH). Saída recentemente da prisão concedeu uma entrevista à Equipe Media onde relata a sua experiência nas prisões marroquinas. É essa entrevista que aqui transcrevemos parcialmente.

Mahfouda Lefkir (Foto www.resumenlatinoamericano.org)
«(…). Em 16 de Novembro de 2019, um juiz marroquino ordenou a sua detenção, quando assistia ao julgamento de outros activistas, por ter protestado contra a sentença por ele proferida, considerada injusta. Teve então de cumprir uma pena de seis meses de prisão em condições deploráveis em El Aaiun, a capital do território.
«As autoridades de ocupação não atenderam aos apelos lançadas por organizações internacionais que exigiam que fosse libertada. ONG como a Front Line Defenders, a Organização Mundial contra a Tortura e a Federação Internacional dos Direitos Humanos, denunciaram a sua prisão arbitrária e pediram a sua libertação. Libertada em Maio (após o cumprimento da sentença), a Equipe Media conversou com Mahfouda Bamba Lefkir sobre a sua prisão e a perseguição política de que é alvo.
«Equipe Media (EM): Em 15 de Novembro de 2019, foi detida durante um julgamento contra activistas. Pode explicar-nos o porquê dessa prisão e descrever-nos a sua experiência sob custódia policial?
«Mahfouda Bamba Lefkir (MBL): Assisti ao julgamento dos activistas saharauis Mansour Otman El Moussaoui e Mohammed Habadi Gargar, que haviam sido presos por terem participado na celebração pública realizada em El Aaiun quando a selecção nacional da Argélia venceu a Taça das Nações Africanas. Fui presa por protestar na audiência contra os maus-tratos e o julgamento que os detidos tiveram de suportar.
«Não foi a primeira vez que assisti a um processo por razões políticas. Anteriormente, assisti aos testemunhos do grupo de Gdeym Izik e dos estudantes saharauis. Detiveram-me pela minha posição política em favor da independência do Sahara Ocidental.
«Inicialmente, fiquei refém no gabinete do Procurador Real no Tribunal de Primeira Instância. Mas no mesmo dia fui transferida para as instalações da polícia. Fui lançada para uma cela muito pequena e fedorenta, húmida, escura e fria, sem cobertores e com insectos. Sou asmática e sofri crises de ansiedade e ataques de asma, passando uma noite horrível. Além disso, tive que lidar com provocações e ameaças de delinquentes detidos numa cela vizinha. Então levaram-me para uma sala de interrogatórios onde me despiram completamente e deixaram-me nua por duas vezes, enquanto me interrogavam. Verificaram o meu telemóvel e copiaram todo o seu conteúdo, fotos, vídeos, contactos e conversas.
«Interrogaram-me sobre o meu relacionamento com a Frente POLISARIO, as minhas actividades políticas, a minha participação em reuniões de protesto, as reivindicações que apareciam nas paredes de El Aaiun. Passar um dia inteiro sem comer nem beber água também me fez passar por uma pressão psicológica considerável.
«EM: De que foi acusada quando compareceu perante o tribunal? E como foi o seu relacionamento com os outros presos e as condições na prisão depois disso?
«MBL: No dia 16 desse mês fui levada ao Tribunal de Primeira Instância. Ali fiquei retida durante 8 horas, sem comer nem beber e sofri agressões físicas e psicológicas.
«Num julgamento sem ninguém para me defender e à minha família, que também não estava presente, o próprio promotor que me tinha detido na noite anterior mandou-me para a prisão por "obstruir e humilhar a justiça". Os mesmos torturadores que nos maltrataram, a mim e a outras mulheres, durante os nossos protestos, tiraram fotos e provocaram-me na própria sala do tribunal.
«Às 21 horas, dois polícias disseram-me que me levariam para a esquadra para continuar o interrogatório. No caminho, fiquei surpreendida quando a polícia parou o carro à porta da Prisão Negra. Caí à entrada e magoei-me. Na recepção houve buscas corporais e interrogatório. Fui lançada numa cela de 15 metros quadrados com sete delinquentes comuns. Era uma cela mal cheirosa devido a um banheiro que tinha, sem ventilação e sem luz natural.
«(...). Apesar de não me sentir nada bem, fui proibida de tomar ou receber o meu medicamento. (...). A administração da prisão ordenou a outros presos que me provocassem e exercessem pressão sobre mim dentro da cela durante os seis meses que lá passei. (...). Estas colegas de cela forçaram-me a usar um melhfa (o traje tradicional das mulheres saharauis), mas nas cores da bandeira marroquina, para que uma delegação de funcionários marroquinos me visse assim, numa visita à prisão.
«Propuseram-me que pedisse perdão mas recusei porque não sou criminosa e não cometi nenhum crime.
«A minha família era o que mais me preocupava, principalmente os meus filhos. O meu marido disse-me, numa conversa por telefone, que o meu filho de 11 anos queria ir para a rua e, quando enfrentava a polícia, gritava "Viva o Sahara Livre!". Para assim ser preso e ver-me. Não aguentava a minha ausência.
«EM: O coronavírus chegou às prisões marroquinas. Como foi viver com a pandemia durante o tempo na prisão?
«MBF: Impediram-me de controlar as minhas coisas pessoais, especialmente as relacionadas com a higiene, os medicamentos e os alimentos. E eu precisava de comida, já que as refeições servidas pela prisão eram intragáveis e o meu corpo rejeitava-as. Sou uma pessoa vulnerável em relação a doenças, como asma e alergias. Foi uma situação vergonhosa.
«EM: Como foi sair em liberdade?
«MBF: Saí da prisão pequena apenas para entrar na grande prisão. Muitos polícias rodeavam a prisão. As suas câmaras filmaram-me a abraçar os meus filhos e outros membros da família. Seguiram-me até à casa da nossa família em El Wefaq, onde haviam preparado um cerco para impedir a organização da minha recepção. Essas medidas impediram os saharauis que se apresentaram para me receber em liberdade. Foi uma libertação incompleta. Agora estou confinada na casa dos meus pais e não posso ir para a minha casa e os visitantes também não podem visitar-me. Não posso sair e ninguém pode entrar. Muitas pessoas foram agredidas pelos bandidos da polícia apenas por tentarem visitar-me.»

sábado, 4 de julho de 2020

Boletim nº 86 - Julho 2020


ISRAEL - MARROCOS: O NEGÓCIO DA REPRESSÃO

aqui tivemos a oportunidade de abordar as ligações entre o regime marroquino e o Estado de Israel. O que os une? Os negócios, claro, e as tentativas de resolver conflitos resultantes de ocupações militares condenadas pelo direito internacional: a Palestina e o Sahara Ocidental.

Denúncia da repressão

A repressão sobre os meios de comunicação social marroquinos – muito particularmente as e os jornalistas – tem já uma longa tradição no regime. Provavelmente desde que a França concedeu a “independência” ao seu protectorado do norte de África. Mas ganhou uma maior visibilidade aquando da chamada “primavera árabe” em Fevereiro de 2011
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Três meses depois do “Acampamento da Dignidade” de Gdeim Izik no Sahara Ocidental, que Noam Chomsky considerou a primeira acção da “primavera árabe”.
, quando largos sectores da população urbana, predominantemente jovens, desceram às ruas exigindo mudanças, não propriamente de regime político, mas nas suas condições de vida. A oligarquia palaciana, face ao que se observava na região — Tunísia, Líbia, Egipto, … – optou por fazer algumas concessões de circunstância a fim de preservar o poder. Demissão do governo, mudanças pontuais na Constituição, eleições parlamentares, …. Mas se com isso conseguiu amortecer o conflito, não conseguiu erradicar o desejo – a necessidade – de mudança.
A explosão social no Rif em Outubro de 2016 e a solidariedade que provocou em todo o Marrocos mostrou a exiguidade da solução adoptada pelo poder. A partir daí (ver, por exemplo, aqui ou aqui) a comunicação social tem sido um alvo privilegiado das autoridades.
A pandemia que se vive actualmente, e o confinamento a que obrigou, veio fazer “florescer a intimidação policial” no país, como denunciou em fins de Maio passado a Associação Justiça e Liberdade em Marrocos (AJLM):
«O académico e activista de direitos humanos Maâti Monjib foi vítima de uma campanha sem precedentes de difamação e ameaças dos meios de comunicação social próximos do Palácio real.
«Esses ataques ocorreram no contexto da prisão de Souleiman Raissouni, jornalista e editor do jornal Akhbar Al Yaoum, em 22 de Maio. Conhecido pelos seus editoriais críticos, substituiu Taoufik Bouaâchrine, editor do jornal preso desde 2018 (condenado sem provas a 15 anos de prisão por "estupro e tráfico de seres humanos"). O Conselho de Direitos Humanos da ONU considerou, em Janeiro de 2019, que esta prisão foi arbitrária e exigiu a sua libertação imediata. Cinco dias antes da prisão de Raissouni, a Chouf TV (um canal on-line cujo trabalho editorial depende directamente da polícia política) publicou um artigo no qual ameaçava "sacrificar" o jornalista por ocasião do Eid al-Fitr (fim do Ramadão): "veremos se vai continuar com as suas acrobacias no Facebook". De facto, o jornalista passou o Eid Al-Fitr (24 de Maio) na polícia. A Chouf TV esteve presente para documentar a sua humilhante prisão.
«Hoje, os mesmos meios atacam Maâti Monjib. Em 27 de Maio, a Chouf TV publicou um artigo semelhante ao que ameaçara Raissouni, com a assinatura do mesmo autor (provavelmente um pseudónimo) "prometendo" a Monjib uma vingança que ocorreria em 31 de Maio pela manhã. Monjib é particularmente atacado porque é membro do comité de apoio a Raissouni.
«Antes de Souleiman, outra jornalista do mesmo jornal, Hajar Raissouni, foi presa (2019), juntamente com o noivo (Rifaat Al-Amine), por "relacionamento fora do casamento e aborto ilegal", tendo sido perdoados após uma forte mobilização a nível nacional e internacional. As ameaças e intimidações contra Maâti Monjib são antigas. Foi assediado e difamado ao longo de vários anos devido às suas actividades académicas e aos seus artigos de crítica à polícia política em Marrocos. Uma das suas preocupações é promover o jornalismo de investigação, sendo membro fundador da Associação Marroquina de Jornalismo Investigativo (AMJI), fundada em 2011, cujas actividades estão agora proibidas [5 dos seus membros foram processados, um foi condenado a 10 meses de prisão e 3 estão no exílio].
«Monjib tem sido submetido a intermináveis intimações judiciais desde 2015 por "pôr em risco a segurança interna do Estado". Já foi convocado 20 vezes para um julgamento sempre adiado no tribunal de Rabat e essa flagelação ainda não terminou. O objectivo é pressionar Monjib a parar com as críticas. É uma verdadeira espada de Dâmocles sobre a sua cabeça e a dos seus co-réus. Monjib também é vítima, na sua vida quotidiana, de ameaças físicas, pressão sobre a família, na rua, escutas telefónicas e até uma proibição de deixar o território marroquino (a proibição foi suspensa após uma greve de fome de 24 dias que pôs a sua vida em perigo).»
Menos de um mês depois das denúncias da AJLM, a Amnistia Internacional (AI) deu a conhecer os métodos e as tecnologias a que recorre o regime marroquino para espiolhar a vida profissional e pessoal das e dos profissionais de informação do país. A divulgação deste trabalho contou com a colaboração do consórcio jornalístico Forbidden Stories, do qual fazem parte jornais como o The Washington Post, o Le Monde, o The Guadian e o El Pais.
Conta a Amnistia Internacional (AI):
«O NSO Group, uma empresa israelita que comercializa a sua tecnologia como uma ferramenta para combater o COVID-19, contribuiu para uma continuada campanha do governo marroquino para espiar o jornalista Omar Radi, de acordo com uma nova investigação da AI.
«A organização concluiu que o telefone de Omar Radi havia sido alvo de vários ataques utilizando uma sofisticada técnica que instalou silenciosamente o tristemente célebre programa de espionagem Pegasus do NSO Group. Os ataques ocorreram durante um período em que as autoridades marroquinas assediaram Radi repetidamente, e um deles aconteceu poucos dias depois de o NSO Group prometer que os seus produtos não voltariam a ser utilizados para perpetrar abusos contra os direitos humanos, mas continuou pelo menos até Janeiro de 2020.
«“É evidente que não se pode confiar no NSO Group. Enquanto fazia uma campanha de relações públicas para limpar a imagem, as suas ferramentas estavam a permitir a vigilância ilegítima de Omar Radi, jornalista e activista premiado", disse Danna Ingleton, vice-directora da Amnesty Tech. (...).
«Embora as autoridades marroquinas tenham a responsabilidade final por acções ilegítimas contra activistas e jornalistas, como Omar Radi, o NSO Group contribuiu para esses abusos, mantendo o governo marroquino como um cliente activo até, pelo menos, Janeiro de 2020, o que aparentemente deu às autoridades desse país acesso constante ao programa da empresa.
«Omar Radi tem sido sistematicamente alvo de ataques por parte das autoridades marroquinas pelo seu trabalho jornalístico e pelo seu activismo. Radi tem criticado abertamente o historial do governo em matéria de direitos humanos e denunciado a corrupção e os vínculos entre interesses empresariais e interesses políticos no país. Em 17 de Março de 2020 foi condenado (...) a quatro meses de prisão por um tweet publicado em Abril de 2019 criticando o julgamento injusto de um grupo de activistas.
«"As autoridades marroquinas utilizam cada vez mais a vigilância digital para suprimir a dissidência. A espionagem ilegítima e o assédio generalizado e constante de activistas e jornalistas devem parar”, afirmou Danna Ingleton.»
Sobre os métodos utilizados, diz a AI:
«”A Amnesty Tech realizou uma análise forense ao iPhone de Omar Radi em Fevereiro de 2020, que revelou que o dispositivo foi alvo de uma série de ataques por network injection. Através deste método os atacantes podem vigiar, interceptar e manipular o tráfego de Internet do alvo. O telefone é redireccionado para um sítio web sem que seja exigida qualquer acção por parte do atacado. Este sítio instala silenciosamente o programa Pegasus no telefone alvo.
«Para o network injection o atacante precisa de proximidade física com os alvos ou acesso às redes móveis do país, uma acção que só pode ser autorizada pelo governo. Mais um sinal de que as autoridades marroquinas foram responsáveis pelo ataque a Omar Radi. O NSO comercializou essa sofisticada tecnologia de intercepção muito recentemente: Janeiro de 2020. Uma vez instalado o Pegasus, o atacante tem total acesso às mensagens, correios electrónicos, meios de comunicação, microfone, câmara, chamadas e contactos telefónicos. Os ataques por network injection são extremamente difíceis de serem detectados pela vítima, pois deixam poucos sinais.
«Os dados forenses extraídos do telefone de Omar Radi indicam que os ataques de network injection ocorreram em 27 de Janeiro, 11 de Fevereiro e 13 de Setembro de 2019. O NSO Group comprometeu-se publicamente a cumprir os Princípios Orientadores sobre as empresas e os direitos humanos da ONU em 10 de Setembro de 2019.
«O navegador do telefone de Omar Radi foi encaminhado para o mesmo sítio web que a AI havia detectado no ataque ao intelectual e activista marroquino Maâti Monjib, conforme revelado pelo relatório “Morocco: Human Rights Defenders Targeted with NSO Group’s Spyware”, publicado em 10 Outubro de 2019.
«Uma cópia deste relatório foi entregue com antecedência ao NSO Group em 2 de Outubro de 2019. O sítio malicioso foi encerrado em 6 de Outubro, dias antes da AI divulgar as suas descobertas. No entanto, novas provas mostram que ataques por network injection ao telefone de Omar Radi continuaram até 29 de Janeiro de 2020, através de um sítio diferente.
«O NSO Group alega que vende o seu programa apenas a serviços de informação governamentais e a organismos encarregues de fazer cumprir a lei, mas os dados revelados pela AI indicam que o governo marroquino continuou a ser um cliente activo da empresa e pôde continuar a utilizar a tecnologia para vigiar, intimidar e silenciar activistas, jornalistas e críticos.
«Quando a AI compartilhou as suas novas descobertas com o NSO Group, a empresa não confirmou nem desmentiu que as autoridades marroquinas estivessem a utilizar a sua tecnologia e declarou que examinaria as informações disponibilizadas.
«“O NSO Group deve responder às perguntas sobre as acções que diligenciou quando lhe foram mostradas as provas de que a sua tecnologia estava a ser utilizada para cometer violações de direitos humanos em Marrocos. Por que não rescindiu o contrato com as autoridades marroquinas? Submeter jornalistas e activistas à intimidação por meio de vigilância digital invasiva viola o direito à privacidade e o direito à liberdade de expressão dessas pessoas", disse Danna Ingleton.
«O NSO Group garante que realiza um rigoroso processo de verificação sobre o respeito dos direitos humanos antes de vender os seus produtos a terceiros, mas não oferece detalhes sobre esse processo que, levando em consideração o número de ataques contra a sociedade civil, parece ter sido ineficaz em numerosos casos.»
A Amnistia chama depois a atenção para o carácter constante destes abusos:
«A AI e outras pessoas e entidades documentaram uma constante utilização do Pegasus do NSO Group contra a sociedade civil. Esse programa foi utilizado em ataques contra jornalistas e membros do Parlamento mexicano, contra os activistas sauditas Omar Abdulaziz, Yahya Assiri e Ghanem Al-Masarir, contra o premiado activista de direitos humanos dos Emiratos, Ahmed Mansoor, contra um membro da AI, e a sua utilização aparenta estar relacionada com o assassinato do dissidente saudita Jamal Khashoggi.
«De acordo com os Princípios Orientadores da ONU sobre as empresas e os direitos humanos, o NSO Group e o seu principal investidor, a empresa britânica de capital privado Novalpina, têm uma obrigação clara de tomar medidas urgentes para garantir que não violam os direitos humanos nem contribuem para tal, em qualquer parte do mundo.»
A Amnistia, porém, não se limita à denúncia:
«A AI está a apoiar uma acção judicial em Israel para tentar obrigar o Ministério da Defesa israelita a revogar a licença de exportação do NSO Group. A organização alega que o Ministério da Defesa compromete os direitos humanos ao permitir que o NSO continue a exportar os seus produtos para governos em todo o mundo. Aguarda-se para breve uma sentença.
«O Facebook também processou o NSO nos tribunais da Califórnia depois de esta empresa ter explorado uma vulnerabilidade do WhatsApp para agir contra, pelo menos, uma centena de defensoras e defensores dos direitos humanos.
«“As batalhas jurídicas contra o NSO Group continuam porque a empresa recusa-se a admitir a sua responsabilidade no papel que desempenhou nas violações dos direitos humanos. As novas provas são mais um sinal de alerta para o motivo pelo qual o NSO deve ser impedido de vender a sua tecnologia de vigilância, inclusive para combater a pandemia do COVID-19", disse Danna Ingleton.»

NOVA ZELÂNDIA: RECURSOS NATURAIS DO SAHARA OCIDENTAL EM FOCO

A exploração de recursos de um território ocupado é ilegal, de acordo com o Direito Internacional. Governos e empresas de países de todos os continentes tornaram-se cúmplices desta actividade no Sahara Ocidental. Há uma tendência de recuo, mas nunca é fácil.

Solidariedade na Nova Zelândia

Uma das maiores riquezas conhecidas do Sahara Ocidental é o fosfato. No passado dia 22 de Junho chegou ao porto de Lyttelton, em Christchurch, na Nova Zelândia, o cargueiro Trans Spring (9615482, Hong Kong) com cerca de 55 mil toneladas de fosfato proveniente do território ocupado. A encomenda tinha sido feita pela Ravensdown Ltd, que se define como uma cooperativa de agricultores. Nessa noite, seguindo a resolução aprovada o ano passado pela central sindical neo-zelandesa em solidariedade com o povo do Sahara Ocidental, um representante do Sindicato do Mar e dos Caminhos de Ferro entregou ao capitão do Trans Spring uma carta de protesto pela importação ilegal de fosfato. Um pouco mais cedo um grupo, o Environmental Justice Ōtepoti, tinha bloqueado a entrada de uma das fábricas da Ravensdown, em Dunedin, fixando uma estrutura improvisada de madeira onde se lia: “Fechado por abuso dos direitos humanos”. E explicavam: «O povo do Sahara Ocidental apelou a que a Nova Zelândia agisse e parasse de comprar fosfato de sangue (…) até que haja um referendo (...)». No dia seguinte, com o mesmo objectivo, o Free Western Sahara Solidarity Aotearoa organizou uma outra acção, que bloqueou durante cinco horas a entrada do perímetro da empresa, não permitindo que nenhum camião entrasse ou saísse.
Não é a primeira vez que a importação de fosfato saharauí é denunciada, e a Ravensdown não é a única importadora neo-zelandesa. O porta-voz de uma outra empresa, a Ballance Agri-Nutrients, assegura que «Os solos da Nova Zelândia têm uma deficiência específica que pode ser compensada por fertilizantes, desde que utilizemos a boa receita» – e esta inclui o fosfato proveniente do Sahara Ocidental...
Estas últimas acções desencadeadas pelas e pelos activistas de direitos humanos e pelas organizações solidárias com o povo saharauí tiveram bastante repercussão, quer na imprensa, quer a nível pessoal. Josie Buttler, uma das organizadoras do protesto em Lyttelton, passou a receber ameaças de violação e de morte. Segundo ela própria disse, «estas ameaças não são nada comparadas com a experiência quotidiana dos saharauís», mas apresentou queixa às autoridades policiais e explicou que todas as ameaças lhe chegavam através de contas do facebook de pessoas marroquinas ou pró-marroquinas e que algumas das mensagens incluíam imagens da polícia militar marroquina.
O caso pode ter repercussões também na justiça. A Frente POLISARIO apresentou em Março deste ano uma queixa formal junto do Supremo Tribunal da Nova Zelândia no sentido de impedir que um fundo de pensões da Nova Zelândia continue a investir na Ravensdown e na Ballance Agri-Nutrients, tornando-se assim cúmplice das práticas ilegais de exploração dos recursos naturais do Sahara Ocidental ocupado. Está prevista para Outubro próximo uma audiência, mas coincidência ou não, imediatamente a seguir aos protestos de Junho, o tribunal anunciou que aceitava a participação no processo da Associação de Fertilizadores da Nova Zelândia (FANZ), que apoia as suas associadas. Preocupada com o dano reputacional que as duas empresas podem sofrer, a FANZ intensificou recentemente uma campanha justificativa da opção de compra do fosfato saharauí.
A posição do governo neo-zelandês tem sido prudente. Ela é importante, não só do ponto de vista político, mas também porque a empresa estatal LandCorp Farming Ltd. é accionista das duas empresas importadoras. No âmbito de uma troca de correspondência a este propósito, em mensagem dirigida à Western Sahara Resource Watch, a 6 de Maio de 2020, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Winston Peters, afirmou que «o Governo da Nova Zelândia tem consistentemente tornado claro perante as empresas que fazem importações do Sahara Ocidental que elas devem cumprir a legislação internacional, procurar apoio jurídico independente e que se importam, o fazem assumindo os seus próprios riscos». O Governo, acrescentou, «pediu que a indústria dos fertilizantes procurasse activamente alternativas viáveis de fontes de fosfato que respondessem às necessidades específicas das pastagens da Nova Zelândia. Infelizmente, até agora não foram encontradas alternativas viáveis, mas o Governo mantém a expectativa de que os esforços para encontrar uma fonte alternativa continuem». Esta postura parece consistente com o conteúdo de um comunicado difundido pelo Ministro do Comércio e do Crescimento das Exportações, David Parker, datado de Fevereiro de 2019, no qual dá conta de uma reunião com representantes da FANZ, da Ravensdown e da Ballance Agri-Nutrients, realizada em Novembro de 2018, na qual «encorajaram a indústria a procurar activamente fontes alternativas de fosfato e a continuar a investigar tecnologia que torne a importação de uma série de outras fontes mais viável».
O que as empresas neo-zelandesas aparentemente não conseguiram, já foi alcançado por outras companhias: de acordo com a edição de 2020 do relatório anual da Western Sahara Resource Watch (P for Plunder), as exportações de fosfato do Sahara Ocidental ocupado caíram para cerca de metade entre 2018 e 2019. A persistência da Ravensdown e da Ballance Agri-Nutrients tornaram-nas responsáveis por um terço da exportação de fosfato em 2019.
A observação e a campanha contra os “fosfatos de sangue” já tem anos. A organização Western Sahara Resource Watch, fundada em 2005, tem compilado criteriosamente e difundido dados sobre os principais recursos naturais saharauís (fosfato, pesca), assim como sobre as empresas e governos que contribuem para a ocupação ilegal do Sahara Ocidental, através da exportação de petróleo e outros bens e da participação em projectos no território (por exemplo, mais recentemente, no campo das energias renováveis). Com base nesta informação, tem directamente chamado a atenção e protestado, e ao mesmo tempo apoiado e dado notícia de acções de outras entidades, em vários países, neste âmbito.
Há resultados. No que se refere aos fosfatos saharauís, a partir de Dezembro de 2018 os EUA e o Canadá deixaram de os importar. Apareceu o Brasil como origem de pequenas importações e, apesar de os outros três países que continuam envolvidos neste comércio ilegal – a China, a Índia e a Nova Zelândia – terem expandido a sua parte no negócio, as exportações ficaram-se por metade do valor do ano anterior, como já mencionado. O número de empresas importadoras passou de 15 em 2011 para 7 em 2019.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Boletim nº 85 - Junho 2020


TESTEMUNHO DE UMA VIAGEM PELOS INFERNOS

Em finais de Abril o sítio El Confidencial Saharaui divulgou a notícia dos testemunhos dados pelo cidadão saharaui Mohamed Daihani na sua página no Facebook onde ele contava as torturas a que tinha sido submetido no centro de detenção de Tmara, uma cidade perto de Rabat, capital de Marrocos.

Viagem pelos infernos (https://www.ecsaharaui.com)

Tortura esta realizada sob a supervisão, entre outros, de Abdellatif Hammouchi, Director Geral da Segurança do Território (DGST), e Abdelhak al-Khayyam, Director Geral do Gabinete de Investigação (BCIJ).
Mohamed Daihani foi detido arbitrariamente em El-Ayún no dia 28 de Abril de 2010. Foi levado para Tmara e mantido incomunicável durante seis meses. Em 29 de Outubro daquele ano o Ministério do Interior marroquino anunciou o desmantelamento de uma célula terrorista integrando um elemento saharaui cuja descrição coincidia com a de Daihani. Em 27 de Outubro foi condenado pelo Tribunal Criminal de Rabat a 10 anos de prisão pelo crime de terrorismo, acusação que ele sempre negou. Após recurso, o tribunal reduziu-lhe a pena para 6 anos, cumprida na prisão de Salé, em Rabat.
Libertado finalmente em 2015, deslocou-se à Tunísia para realizar tratamento médico, sob o patrocínio da Amnistia Internacional, aproveitando para dar uma série de testemunhos da sua viagem pelos infernos, a história da sua detenção política.
Conta-nos, de viva voz, em hassania, as torturas que sofreu e com que fins.
«Os meus torturadores pediram-me para participar num plano hostil, num falso ataque terrorista ou envolvimento num arsenal de armas escondido na cidade ocupada saharaui de Amgala, para culpar a Frente POLISARIO de terrorismo. Recusei e fui torturado sem piedade, sujeito a tortura endémica diária, até ficar inconsciente».
As técnicas brutais de tortura usadas pelas forças de segurança contra os detidos, como forçá-los a permanecer em posições tensas ou pendurá-los pelos pulsos e joelhos de uma barra de ferro, são documentadas por Daihani com imagens desenhadas por um seu amigo.
Conforme relata Khalil Asmar, bloguista e escritor saharaui,
«Durante a sua viagem pelas horríveis prisões marroquinas, Daihani encontrou muitos detidos marroquinos, alguns dos quais foram presos sob a acusação de terrorismo. Daihani relatou a história de R. Hicham, que havia sido chantageado em troca da sua libertação; teve de se transformar em informador e foi enviado pelos serviços secretos marroquinos para se infiltrar nas fileiras dos terroristas da Al-Qaida que operam no norte do Mali, mas acabou por combater com eles de 2005 a 2007. Foi preso em 2007, no seu regresso a Marrocos, porque se recusou a fornecer aos serviços secretos marroquinos informações especiais, pondo fim à sua colaboração.
«Aquando do seu encontro com os detidos marroquinos nas prisões do regime de Rabat, Daihani descobriu a verdadeira natureza das células terroristas que Marrocos frequentemente afirma ter desmantelado, para chegar à conclusão de que todos esses grupos terroristas e o seu desmantelamento são apenas um trabalho montado pelos serviços secretos marroquinos. A "célula terrorista de Amgala", que incluía militares e civis e que Marrocos alegou ter desmantelado em Janeiro de 2011, foi uma farsa perfeita. É um produto da condenação pela União Europeia (UE) do desmantelamento brutal do acampamento de Gdeim izik que os saharauis organizaram em 2010 para protestar contra a ocupação do seu país, (...). Era uma mensagem para a UE e a comunidade internacional de que a intervenção muito musculada contra os civis saharauis deste campo de protesto era justificável e fazia parte integrante dessa célula "terrorista" desmantelada. “No centro de detenção secreto de Tmara e à força de torturar, os detidos acabam por confessar e admitem o que for preciso para terminar o seu sofrimento insuportável. Os carrascos não param de torturar até que as confissões estejam alinhadas com a agenda política do regime ditatorial de Rabat. No centro secreto de Tmara, vais admitir tudo o que for preciso", sublinhou na sua intervenção transmitida no Facebook.
«Daihani encontrou-se com os detidos da chamada "célula de Amgala", (...), disse que todas as acusações do tribunal foram baseadas em alegações completamente falsas. O procurador junto do tribunal não pôde provar a presença de armas pelas quais foram condenados e o processo penal continha acusações completamente diferentes, sem posse de armas ou filiação terrorista. A célula terrorista de Amgala é um exemplo claro de como Marrocos utiliza o falso terrorismo para simples ganho político e financeiro.
«Pior ainda, Daihani mostra na sua intervenção no Facebook como ele próprio foi chantageado. Os serviços secretos marroquinos ofereceram-se para o libertar em troca de planear actos terroristas no Sahara Ocidental ocupado. Propuseram-lhe realizar atentados, assassinar personalidades locais, criando um medo asfixiante. Uma campanha terrorista em que os marroquinos visavam matar vários coelhos com a mesma cajadada: enviar uma mensagem ao mundo de que o Sahara Ocidental é um foco de terrorismo que ameaça a segurança regional e internacional e que a presença de Marrocos no território é essencial para a segurança e o combate ao terrorismo, (...), apresentando Marrocos como o guarda seguro dessa região norte-africana.»
Dias depois o FreedomSupport continuou a divulgar as revelações de Daihani, da sua experiência e da de outros detidos, focando-se desta vez na história de um barão da droga encarcerado que estava ligado a altas personalidades políticas marroquinas.
«Foi durante uma das noites de detenção (…) que Daihani ouviu de repente um carro a rolar numa passagem pedregosa adjacente à sua célula. Através de uma pequena fresta, pôde ver um detido marroquino sair algemado de um carro e conduzido manu-militari, gritando a plenos pulmões para o levarem até Ali Alhimma, o secretário especial e amigo próximo do rei de Marrocos. "Preciso de falar com Alhimma. Preciso de falar com ele agora. Não falo com mais ninguém até ele chegar", gritou.
«O detido era de facto um traficante de droga e parecia estar envolvido num acordo fracassado de cannabis e que, por isso, despertara a suspeita dos seus chefes. Embora ele tenha gritado com raiva, os carcereiros, que torturam impiedosamente os presos políticos, permaneceram estranhamente de bico calado perante este barão do haxixe. Mais tarde, naquela mesma noite, outra viatura estacionou no mesmo local e Daihani pôde perceber Ilias El Aammari a sair do carro. Ilias El Aammari é o presidente do partido marroquino Autenticidade e Modernidade.
«Como nos filmes da Máfia, ele saiu do carro escoltado pelos seus guarda-costas e foi para a cela onde o traficante estava preso, e só então a tortura começou. Daihani enfatizou que podia ouvir o narcotraficante a gritar, dizendo que não sabia onde estava a carga que obviamente era cannabis, da qual Marrocos é o maior exportador do mundo.
«O próprio chefe do partido político do rei vigiava a tortura, pois esse narcotraficante era suspeito de se apropriar de um carregamento de droga em seu benefício e não havia melhor lugar do que esse centro de tortura para fazê-lo confessar as circunstâncias reais do suposto desvio que certamente valia milhões de dólares.
«A presença do presidente do partido do rei de Marrocos, Ilias El Aammari, e os pedidos incessantes deste narcotraficante para telefonar para o amigo mais próximo e conselheiro do rei, Ali Alhimma, é uma prova clara e verdadeira de que o tráfico intercontinental de cannabis em Marrocos está sob o controlo, supervisão e gestão da mais alta esfera política em Marrocos, o palácio real e o seu regime monárquico.
«O partido marroquino Autenticidade e Modernidade foi fundado por Ali Alhimma, amigo de infância e conselheiro próximo do rei. Inúmeros relatórios indicam que o rei Mohamed VI ordenou a criação deste partido político para combater a representação política ascendente do partido islâmico moderado, Justiça e Desenvolvimento, que preside ao actual governo. A missão de Ali Alhimma era organizar o partido e depois colocar outras personalidades a dirigi-lo sob o controle e a supervisão directa do rei.
«Com este testemunho de dentro das prisões marroquinas, parece que o rei de Marrocos também é o rei da cannabis.
«Lembremos que em 2017, o Departamento de Estado dos EUA lançou o alarme sobre a produção de cannabis em Marrocos, alegando que a exportação da droga e dos seus subprodutos representam 23% do seu PIB (US $ 100 mil milhões).»
Em 15 de Maio passado Mohamed Dahini foi chamado pelas autoridades tunisinas e aconselhado a não prosseguir com estes testemunhos. Obviamente, os dirigentes marroquinos ficaram incomodados com a divulgação desta informação e pressionaram o governo da Tunísia para a impedir, solicitando a sua extradição. Chegou a recear-se que Tunes acedesse a esse pedido, o que até agora não ocorreu.

NOTÍCIAS DA ALEMANHA: OS LIMITES DA REALPOLITIK

Sabemos como a realpolitik tem prevalecido nas relações entre a União Europeia e os seus Estados-membro, e Marrocos, no que diz respeito aos direitos do povo do Sahara Ocidental. Mas há limites e eles estão a emergir.

Limites à realpolitik

Uma deputada alemã, Katja Keul, do partido “Os Verdes”, pediu um parecer sobre a questão do Sahara Ocidental aos serviços jurídicos do parlamento nacional (Bundestag). O relatório tem a data de Março de 2019, mas só agora, um ano depois, foi dado a conhecer. Intitulado “Aspectos do Direito Internacional ligados ao conflito do Sahara Ocidental”, o documento faz uma revisão das decisões e resoluções de diversas instâncias internacionais desde 1975 (ano da ocupação marroquina, com o beneplácito do Estado espanhol, potência colonial e administrante do território), à luz dos princípios do Direito Internacional, e chega a duas conclusões fundamentais: o Reino de Marrocos é a «potência ocupante», e cometeu «violações substanciais» da Quarta Convenção de Genebra de 1949, incorrendo em «crimes de guerra».
Qual a importância destas conclusões? Ambas têm consequências quanto ao quadro em que deve ser negociado o futuro da antiga colónia espanhola, e quanto ao tipo de soluções admissíveis nesse quadro. Também têm implicações em várias campos no presente: por exemplo, no repovoamento do território com populações marroquinas, na exploração e comercialização dos recursos naturais do Sahara Ocidental ocupado e na transferência de prisioneiros saharauís para cadeias marroquinas.
Marrocos ocupou e anexou a maior parte do Sahara Ocidental, considerando-a como integrando o reino desde então. Até agora, nenhum país no mundo reconheceu oficialmente esta situação. Para tentar ultrapassar a condenação da comunidade internacional, vários aliados da monarquia alauíta têm designado Marrocos como “potência administrante” ou “potência administrante de facto”. O relatório alemão reitera que a segunda hipótese é inexistente no Direito Internacional e que Espanha nunca transferiu a sua soberania sobre o território, nem os Acordos de Madrid (que não são considerados juridicamente válidos
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A Audiência Nacional de Espanha reconheceu em 2014 que Espanha mantém o estatuto de jure de «Potência Administrante do território», assim como as responsabilidades daí decorrentes, «até que seja finalizado o período de descolonização (…) entre elas dar protecção, inclusivamente jurisdicional, aos seus cidadãos [do Sahara Ocidental], contra todo o abuso (...)». (AAN 256/2014, de 4 de Julho).
) «afectaram o estatuto internacional do Sahara Ocidental como território-não autónomo». Apoiando-se sobre vários estudos e decisões anteriores, o relatório conclui que Marrocos é a «potência ocupante» do Sahara Ocidental.
A segunda constatação diz respeito às “violações substanciais” da IV Convenção de Genebra. Está em causa o artigo 49 (parágrafo 6), inserido na Secção III, “Territórios Ocupados” que diz: «A Potência ocupante não poderá proceder à deportação ou à transferência de uma parte da sua própria população civil para o território por ela ocupado». Em consequência, o documento cita o artigo 85 (parágrafo 4) do I Protocolo Adicional à Convenção, datado de 1977, que considera que «graves violações destes instrumentos [Convenções de Genebra e I Protocolo Adicional] devem ser consideradas como crimes de guerra»; ora no mesmo artigo (parágrafo 4, alínea a) considera-se como grave violação dos mesmos instrumentos «a transferência pela Potência ocupante de parte da sua própria população civil para o território que ocupa, ou a deportação ou transferência de toda ou parte da população do território ocupado, dentro ou para fora deste território, em violação do Artigo 49 da Quarta Convenção.»
O relatório refere ainda que à luz dos Estatutos de Roma do Tribunal Penal Internacional (que, de acordo com o respectivo Artigo 8, nº 2, «tem competência para julgar os crimes de guerra, em particular quando cometidos como parte integrante de um plano ou de uma política ou como parte de uma prática em larga escala desse tipo de crimes»), na definição do que «se entende como “crimes de guerra”» (Artigo 85) se inclui «(viii) A transferência, directa ou indirecta, por uma potência ocupante de parte da sua população civil para o território que ocupa ou a deportação ou transferência da totalidade ou de parte da população do território ocupado, dentro ou para fora desse território.»
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http://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/estatuto_roma_tpi.pdf.
No entanto, a possibilidade de julgamento da responsabilidade criminal individual de quem tomou as decisões políticas em causa só pode ser considerada se o Estatuto de Roma for reconhecido pelo país infractor. Não certamente por acaso, Marrocos assinou o Estatuto em 2000 mas nunca o ratificou...

Política de repovoamento

Nos últimos dias os e as activistas saharauís têm notado a chegada a Dakhla, no território ocupado, de filas de camiões cheios de novos emigrantes marroquinos, para trabalharem no sector das pescas. Para além da persistente pilhagem dos seus recursos naturais, para além da continuação da política que os exclui dos postos de trabalho existentes na sua própria terra, agora afligem-se com mais uma preocupação: estes trabalhadores podem ser portadores de COVID-19, disseminando-a à sua volta.
A política que o relatório do Bundestag veio reafirmar como constituindo um “crime de guerra” não é nova, data do primeiro dia da ocupação, e tem-se desenvolvido consistentemente como forma de tornar o povo saharauí uma minoria no seu país, criando mais um obstáculo relevante ao processo de autodeterminação.
O relatório do Departamento de Estado norte-americano de 2019 sobre os Direitos Humanos no Sahara Ocidental exemplifica: «Como um incentivo à sua deslocação para o território, os trabalhadores do sector formal ganharam mais 85% do que os seus colegas no território internacionalmente reconhecido como Marrocos. O governo também forneceu subsídios aos combustíveis e isentou os trabalhadores de impostos sobre o rendimento e sobre o valor agregado.»

Exploração dos recursos naturais

Do ponto de vista do Direito Internacional é, pois, muito claro que no caso do Sahara Ocidental, enquanto território não-autónomo, pendente de um efectivo processo de descolonização, a potência ocupante está proibida de dispor dos respectivos recursos naturais.
Uma boa formulação deste princípio encontra-se num documento da União Africana, publicado em 2015. Depois de passar em revista toda a legislação internacional, no ponto 57, afirma: «Consequentemente, Marrocos não tem o direito legal, no quadro da Carta da ONU e do direito internacional, de ocupar ou governar o Território do Sahara Ocidental. (…). Marrocos não tem o direito de explorar nem de utilizar nenhum recurso natural, renovável ou não-renovável, localizado no território ocupado do Sahara Ocidental ou de entrar em acordo com qualquer terceira parte em relação a estes recursos.». No ponto seguinte, acrescenta: «Adicionalmente, qualquer exploração e utilização dos recursos naturais por parte de Marrocos no Sahara Ocidental mina seriamente os esforços e negociações com vista a uma solução pacífica, que têm ocorrido há mais de quatro décadas.»
Da Alemanha chegou também recentemente uma notícia consequente, que confirma outras anteriores: o Banco de Desenvolvimento público KfW (Kreditanstalt für Wiederaufbau) afirmou que não financiará projectos no Sahara Ocidental e esclareceu que o empréstimo concedido à empresa estatal de fosfatos marroquina (Marrocos OCP, S.A.) não pode ser utilizado no território ocupado.
Mais uma vez, a posição foi conhecida através de uma pergunta feita por uma deputada nacional, Eva-Maria Schreiber, ao governo. A carta do Ministério Federal da Cooperação Económica e do Desenvolvimento, datada de 7 de Maio de 2020, diz: «Os contratos existentes de crédito de desenvolvimento mencionados (…) excluem explicitamente o financiamento de actividades económicas no Sahara Ocidental.»
Sabe-se que várias empresas alemãs, entre as quais a Siemens e a Continental, estão fortemente envolvidas no esforço de colonização marroquina do Sahara Ocidental. Mas não têm apoio governamental: já em Julho de 2016 o KfW tinha escrito ao Western Sahara Resource Watch, afirmando: «não financiamos projectos no Sahara Ocidenatl e não estamos a planear fazê-lo no futuro». O esclarecimento veio na sequência de notícias publicadas na imprensa marroquina no sentido contrário, que o Banco de Desenvolvimento classificou como «enganosas». Em 2017, o Secretário de Estado do Ministério Federal dos Assuntos Económicos e Energia reiterou perante o Bundestag que «O governo federal não apoia as actividades económicas das empresas alemãs no Sahara Ocidental e não oferece garantias aos negócios através de créditos à exportação nem de garantias ao investimento.»
No entanto, a mesma Alemanha tem uma posição diferente ao nível europeu. Juntando-se aos outros governos, fez avançar a aprovação dos Acordos de pesca e de comercialização de produtos agrícolas entre Marrocos e a UE enfrentando as decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia.
Nem Marrocos, nem a União Europeia, ou os países que afinam pelo mesmo diapasão, conseguem alterar os princípios do Direito Internacional. Para fazer valer a sua política de “facto consumado” utilizam diversos expedientes e navegam, a maior parte do tempo, em águas duplas: nuns lugares dizem uma coisa, noutros afirmam, ou agem, de acordo com o seu contrário.