segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Boletim nº 70 - Fevereiro 2019


UNIÃO EUROPEIA: NÃO AO DIREITO INTERNACIONAL!

No passado dia 16 de Janeiro, o Parlamento Europeu aprovou a proposta de modificação dos protocolos nº 1 e nº 4 do acordo de associação da União Europeia (UE) com Marrocos que incluirá a parte do Sahara Ocidental sob controlo marroquino, apesar dos sucessivos acórdãos do Tribunal de Justiça da UE.

Ignorar o TJUE!

Tal aprovação não constituiu uma surpresa, pois vários eram os sinais que se vinham acumulando no horizonte político que levavam a prevê-la.
Em 22 de Novembro passado, o Western Sahara Resource Watch (WSRW) informou que tinha solicitado ao Conselho da UE que tornasse públicos os seus pareceres jurídicos sobre os projectos de aplicação ao Sahara Ocidental do acordo comercial UE-Marrocos e do acordo de parceria UE-Marrocos no domínio da pesca, que faziam explicitamente referência ao Sahara Ocidental na sua zona geográfica de aplicação. Mas em 7 de Dezembro o secretariado do Conselho recusou o acesso a essa informação invocando para tal várias razões, desde «o risco de comprometer a capacidade de chegar a um acordo» no processo negocial que então decorria com Rabat até o ter «conteúdos jurídicos referentes a questões relativas à condução das relações internacionais da União».
Lembremos que o relatório da Comissão de Comércio Internacional do Parlamento Europeu (INTA), que serviu de base à discussão e apelava ao PE para aprovar a proposta de extensão das preferências comerciais ao Sahara Ocidental, já tinha sido objecto de contestação. Elaborado pela eurodeputada francesa Patricia Lalonde, esta foi obrigada a demitir-se da função nos princípios de Dezembro passado após ter sido revelado que fazia parte do Conselho de Administração de um lobby marroquino. Foi substituída pela holandesa Marietje Schaake do mesmo grupo parlamentar (ALDE - Aliança de Liberais e Democratas pela Europa) mas esta substituição não alterou os procedimentos que estavam a ser seguidos, apesar dos apelos feitos para que se verificasse a veracidade das afirmações constantes no relatório.
Também um conjunto de 94 organizações da sociedade civil saharauí - dos Territórios Ocupados, dos acampamentos e da diáspora - escreveu ao Comissário Moscovici nos princípios de Janeiro solicitando-lhe que se esclarecesse, através de uma declaração pública, os seguintes pontos:
«1) que, ao contrário do que é alegado no chamado “Relatório sobre benefícios”, as nossas organizações nunca foram convidadas para o processo de consulta e nele não participaram;
2) que as nossas organizações rejeitam firmemente a extensão das preferências pautais no Acordo de Associação ao Sahara Ocidental ocupado e, portanto, que a esmagadora maioria da sociedade civil saharauí se opõe à alteração dos Protocolos 1 e 4;
3) que as nossas organizações reafirmam que, de acordo com a jurisprudência do TJUE, a Frente POLISARIO, como representante do povo saharauí reconhecido pelas Nações Unidas, é o único órgão autorizado a expressar o seu consentimento em ficar vinculado por um acordo internacional com a União Europeia.»
Esta situação levou a que uma centena de eurodeputados, de diferentes grupos políticos, apresentasse uma proposta de resolução solicitando ao Presidente do PE que «tome as medidas necessárias» para obter um parecer do TJUE sobre o acordo, considerando que «existe uma incerteza jurídica quanto à compatibilidade do acordo proposto com os tratados e, em particular, com o acórdão do TJUE de 21 de Dezembro de 2016» e que «não é possível estabelecer com certeza que as medidas tomadas pela Comissão Europeia cumpram com a obrigação do Tribunal no que respeita ao consentimento do povo do Sahara Ocidental».
Esta proposta foi submetida a votação antes da votação da resolução da Comissão de Comércio Internacional do Parlamento Europeu (INTA). Se esta proposta tivesse sido aprovada implicaria automaticamente a suspensão de todo o processo ao nível do PE até o TJUE emitir o seu novo parecer.
Segundo o sítio EUObserver os dirigentes dos vários grupos parlamentares do PE acordaram na sua reunião de 10 de Janeiro retirar da agenda do plenário para o dia 14 o debate sobre a proposta de acordo, por imposição do eurodeputado Guy Verhofstadt, o presidente do ALDE. O Grupo dos Verdes tentou corrigir esta decisão e a 14 insistiu na proposta em debater em plenário a inclusão do Sahara Ocidental ocupado no acordo comercial UE-Marrocos. A proposta foi, porém, derrotada por 143 votos a favor, 153 contra e 18 abstenções.
Na votação do dia 16 votaram a favor do novo acordo 444 eurodeputados, dos quais 15 são portugueses (PSD: Carlos Coelho, José Manuel Fernandes, Cláudia Monteiro de Aguiar, Sofia Ribeiro e Fernando Ruas; PS: Francisco Assis, Liliana Rodrigues, Maria João Rodrigues, Manuel dos Santos, Ricardo Serrão Santos, Pedro Silva Pereira e Carlos Zorrinho; CDS/PP: Nuno Melo; Partido da Terra: Marinho e Pinto e José Inácio Faria). Votaram contra 167 eurodeputados, dos quais 5 portugueses (PCP: João Ferreira, João Pimenta Lopes e Miguel Viegas; Marisa Matias do BE e Ana Gomes do PS). Houve ainda 68 abstenções.
A Frente POLISARIO reagiu no mesmo dia através do seu representante para a Europa, Mohamed Sidati, que condenou «firmemente a decisão ilegal do PE» que «põe em causa o processo de paz conduzido pelas Nações Unidas. (…). É absurdo que a UE nos peça regularmente para evitar dar passos que possam minar o processo de paz e que ela-própria adopte, voluntariamente, uma iniciativa desestabilizante indo contra os acórdãos do seu próprio tribunal de justiça. (…). A Frente POLISARIO, em nome do povo do Sahara Ocidental, explorará todas as vias legais para anular a decisão de hoje.»
Várias foram as reacções contra a aprovação do acordo. Em Espanha a Coordenadora Estatal de Associações Solidárias com o Povo Saharauí (CEAS-Sahara) considerou-o um acto desprovido de ética e ilegal, de que são responsáveis todos os parlamentares que votaram a favor do mesmo. «Neste quadro faremos todos os esforços e tomaremos todas as medidas possíveis para denunciar os actos ou omissões de qualquer parlamentar europeu que contribua para a pilhagem, a exploração, a destruição e/ou o esgotamento da riqueza e dos recursos naturais do Sahara».
Para a UGT–Espanha, a aprovação pelo Parlamento Europeu constituiu uma grave violação dos direitos do povo saharauí e um desrespeito pela justiça europeia. «A UGT continuará a apoiar o sindicato UGTSario e os trabalhadores saharauís para que os direitos do seu povo sejam respeitados e, finalmente, uma solução justa seja alcançada no processo de paz a cargo das Nações Unidas. O nosso compromisso é respeitar a legalidade internacional e o desenvolvimento e progresso da classe trabalhadora unida e solidária.»
Em Portugal, o PCP considerou que «o acordo só pode merecer o nosso mais vivo repúdio porquanto a Frente POLISARIO a par de outras organizações representativas do povo saharauí não foram consultadas. O que se exige neste momento é que a UE respeite a decisão do povo saharauí e da Frente POLISARIO que já rejeitaram este acordo.»
Espera-nos uma longa e difícil batalha em defesa da aplicação do direito internacional, contra aqueles que fazem tábua rasa desse direito e possibilitam que haja empresas que lucrem com esse comportamento político.