segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Boletim nº 81 - Fevereiro 2020


O DESPORTO COMO TERRENO DE DISPUTA COLONIAL

De há tempos a esta parte que uma das prioridades da política externa do regime marroquino para a questão do Sahara Ocidental é mostrar que o problema já está resolvido e que a chamada “comunidade internacional” já nem dá pela sua existência dado que reconhece, na prática, que o território “faz parte” do reino. 

Passagem da fronteira do Sahara Ocidental

Esta política tem vindo a ganhar proeminência quer no terreno diplomático quer no terreno desportivo.
Comecemos pela primeira vertente. No final do ano passado surgiram notícias dando conta da abertura de consulados em El Aaiún, a capital do Sahara Ocidental, num gesto claro do reconhecimento da soberania marroquina sobre aquele território. A similitude desta política com a do Estado sionista de Israel para com a Palestina salta à vista. Talvez um dia destes tenhamos a oportunidade de abordar as relações políticas e militares de Marrocos e de Israel no que à ocupação do Sahara Ocidental diz respeito (ver a informação mais recente sobre este tema).
E que Estados foram esses que se decidiram por tal abertura? O eixo francófono formado pela Costa do Marfim, as Comores, a Gâmbia, a Guiné-Conacri e o Gabão, a que se juntou, qual cereja em cima do bolo, S. Tomé e Príncipe. Coincidindo com as notícias que davam conta da abertura destes consulados circulou uma outra dando conta da decisão da Assembleia-geral da ONU de, ao abrigo do artigo 19 da Carta das Nações Unidas, suspender o direito de voto a dez países pelo facto de o montante em atraso da sua contribuição para a organização ter atingido ou ultrapassado o correspondente a dois anos. Da lista constam as Comores, a Gâmbia, o Iémen, o Lesoto, o Líbano, a República Centro-Africana, a Somália, São Tomé e Príncipe, Tonga e a Venezuela. A ONU tem alertado a comunidade internacional para os encargos que tem de suportar e que a sua actual crise financeira não permite assegurar. Neste quadro percebe-se a fragilidade em que se encontram muitos países que os tornam presas fáceis de interesses de que eles deveriam ser os primeiros empenhados em denunciar e combater.
Falemos agora do desporto. Ainda recentemente fizemos aqui referência às repercussões que teve no Sahara Ocidental a vitória da equipa de futebol da Argélia no Campeonato Africano das Nações. Este é também um terreno onde o regime de Rabat tenta fazer vingar a sua “visão do mundo”. Primeiro com o rally Mónaco-Dacar, designado Africa Eco Race. Os marroquinos querem fazer passar o cortejo de viaturas de quatro e duas rodas pela zona de Guerguerat, que separa o muro de segurança marroquino da fronteira com a Mauritânia e que Marrocos apresenta como “terra de ninguém”, embora esteja sob o controlo das forças da Frente POLISARIO. O cortejo tenta passar como se fosse um simples e turístico périplo automobilístico pelas “províncias do sul” do império.
Em carta enviada ao Secretário-geral António Guterres no dia 7 de Janeiro, Mohammed Sidi Omar - o representante da Frente POLISARIO junto da ONU - exprimiu a sua «firme condenação do projecto de travessia dos territórios ocupados do Sahara Ocidental pelo auto-designado "Africa Eco Race" em cumplicidade com as autoridades marroquinas de ocupação.» Sidi Omar cita os organizadores que previam a entrada no território no dia 10 e a saída no dia 13. Tal ocorrência «é um outro exemplo da má fé de Marrocos e do seu total desprezo pelas resoluções do Conselho de Segurança, incluindo a resolução 2494 (2019) que apelava a abster-se de qualquer acção que pudesse desestabilizar ainda mais a situação no Sahara Ocidental», escreveu o representante da Frente POLISARIO.
E acrescentou: «É profundamente lamentável que a incapacidade das Nações Unidas em assumir medidas firmes diante das repetidas tentativas de Marrocos de impor à força um facto consumado nos territórios ocupados do Sahara Ocidental, tenha incentivado o poder marroquino ocupante a persistir deliberadamente nas suas acções provocadoras e ilegais e em desafiar a autoridade e as resoluções do Conselho de Segurança.»
Dias depois o porta-voz do SG ONU, o francês Stephane Dujarric, prestou declarações à comunicação social dando conta que António Guterres «estava preocupado» com «as crescentes tensões no Sahara Ocidental» agora que a corrida «está prestes a atravessar Guerguerat.» «O Secretário-geral exorta todos os actores a exercerem o máximo de contenção e a dissiparem quaisquer tensões. É importante permitir que o tráfego civil e comercial prossiga com regularidade e abster-se de qualquer acção que possa constituir uma alteração ao status quo da zona tampão.»
Face a esta postura intimidada das Nações Unidas, umas dezenas de saharauís acamparam na zona e bloquearam no dia 13 «a passagem de El Guerguerat, a fronteira terrestre do Sahara Ocidental com a Mauritânia» levando a que as autoridades marroquinas impedissem que mais saharauís se juntassem aos seus compatriotas neste gesto de rebeldia. Estes mudaram depois de atitude, conforme informou o sítio ECSAHARAUI: «Desde o início desta segunda-feira [dia 13], uma dúzia de veículos do Africa Eco Race Rally, (...), conseguiram passar sem incidentes depois de cumprirem os requisitos estabelecidos pelos manifestantes»: a não utilização de mapas que incluíssem o território ocupado do Sahara Ocidental em Marrocos e que não tivessem a bandeira marroquina desenhada nos seus veículos. Os manifestantes consideraram o rally um desrespeito ao estatuto do território, um território não autónomo pendente de descolonização, e «um insulto ao querer do povo saharauí e um apoio ao colonialismo marroquino». As forças da MINURSO também se apresentaram no local e não observaram incidências dignas de registo. Obviamente que estes acontecimentos não figuram no sítio da organização do passeio até Dacar.
Um outro desafio para onde o regime de Rabat quis levar o direito internacional é o da realização em El Aaiún do campeonato africano de Futsal 2020, a ter lugar entre 28 de Janeiro e 7 de Fevereiro. A República da África do Sul foi a primeira a transmitir à Confederação Africana de Futsal (CAF) a sua indisponibilidade para participar no evento invocando como razões «o respeito pelo direito internacional e pelo direito inalienável do povo saharauí à autodeterminação». De salientar que a decisão do Comité Executivo de Futsal sul-africano foi tomada após uma reunião que se prolongou por várias horas e onde, na votação final, 80% dos seus membros votaram a favor da não-participação. «Estamos cientes do risco de uma multa imposta pela CAF e outras repercussões após esta nossa decisão», afirmou o Comité em comunicado à imprensa. De acordo com os regulamentos da Confederação Africana, qualquer abandono no início de uma competição implicará a suspensão nas edições seguintes e uma multa de 65.000 U$D.
A vaga deixada pela República da África do Sul foi preenchida com as Ilhas Maurício. Mas este Estado seguiu o exemplo daquele que queriam que substituísse e o seu governo ordenou que a equipa se retirasse do torneio.
Semanas depois, segundo um despacho da agência EFE, foi a vez da Federação Argelina de Futsal (FAF) advertir a CAF de que se opunha à celebração da Taça de África das Nações de Futsal nos territórios do Sahara Ocidental ocupados por Marrocos, e que «esta decisão “tem uma conotação política e promove a divisão no seio da família CAF”».