terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Boletim nº 68 - Dezembro 2018


GENEBRA: O DIÁLOGO É POSSÍVEL?

Vai realizar-se em Genebra a reunião que se propõe a difícil tarefa de relançar o processo negocial para o problema da descolonização do Sahara Ocidental. Aparentemente Marrocos mantém-se inflexível. Como Portugal há 50 anos e a Indonésia há 30.

ONU: agora sim?

 
Em 5 e 6 de Dezembro vão encontrar-se em Genebra (Suíça) delegações de Marrocos e da Frente POLISARIO numa iniciativa das Nações Unidas na procura de uma saída para um conflito que se arrasta desde 1975.
Na resolução adoptada pela ONU em Outubro o Secretário-geral António Guterres não conseguiu fazer passar a sua proposta de renovação do mandato da MINURSO por um ano, como era até recentemente a tradição, e como desejaria igualmente a França. Vingou a posição dos EUA, adoptada pela primeira vez em Abril de 2018, de um período de seis meses. A resolução foi aprovada com 12 votos a favor e 3 abstenções. O argumento então invocado – e agora repetido - era o de que assim se aumentaria a pressão sobre os intervenientes directos de modo a obrigá-los a sentar-se à mesa das negociações e a procurar uma saída de compromisso entre as partes.
E, na verdade, as Nações Unidas, pela mão de Horst Koëhler, conseguiu comprometer os intervenientes directos a estarem presentes no encontro em Genebra.
Em comunicado publicado no próprio dia da aprovação da resolução, «a Frente POLISARIO (...) toma nota do apelo do Conselho de Segurança às duas partes, Frente POLISARIO e Marrocos, para que retomem as negociações sob os auspícios do Secretário-geral sem condições prévias e de boa-fé com vista a alcançar um processo justo e duradouro e uma solução política aceitável por acordo mútuo, que permitirá a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental. (…). É essencial que o Conselho de Segurança defenda inequivocamente o estatuto jurídico do território e preserve a sua integridade territorial, conforme o tem solicitado a União Africana (…)».
E mais à frente: «A Frente POLISARIO lembra que os seus compromissos em relação ao cessar-fogo se baseiam nos acordos alcançados com a MINURSO, incluindo o Acordo Militar Nº. 1, de 1997, que vincula ambas as partes no âmbito da implementação do cessar-fogo de 1991. Portanto, é essencial que o Conselho de Segurança garanta a total adesão e respeito pelos termos do cessar-fogo e do Acordo Militar Nº. 1, que são partes integrantes do Plano de Resolução da ONU e, por isso, os pilares que sustentam todo o processo de paz da ONU no Sahara Ocidental».
A concluir: «O Conselho de Segurança também deve assegurar que a MINURSO funcione de acordo com as regras básicas e princípios gerais aplicáveis às operações de manutenção da paz da ONU e que a Missão tenha um mandato para monitorizar a situação dos direitos humanos nos territórios ocupados do Sahara Ocidental, onde os abusos bem documentados dos direitos humanos são constantes. É urgente que o Conselho de Segurança exija que Marrocos se abstenha de todas as suas acções desestabilizadoras nos territórios ocupados do Sahara Ocidental e que cesse o saque dos recursos naturais do território do Sahara Ocidental».
Com esta reunião na Suíça, a ONU procura também envolver mais os países vizinhos – Argélia e Mauritânia – o que é uma concessão parcial a Marrocos que sempre procurou mostrar que a questão do Sahara Ocidental não tem nada a ver com a descolonização mas é um problema bilateral entre ela e o seu vizinho argelino.
Foi com este tema, aliás, que o rei Mohamed VI abriu o seu tradicional “discurso à nação” a propósito da passagem de mais um aniversário da chamada “marcha verde”, em 6 de Novembro. O primeiro terço da sua intervenção pretende ser uma piscadela de olho aos governantes da Argélia. Começando por afirmar que a política externa marroquina assenta «em princípios de clareza e de ambição», centra-se depois «sobre o estado de divisão e discórdia que ocorre actualmente no espaço magrebino. Inscreve-se numa oposição flagrante e sem sentido ao que une os nossos povos: laços de fraternidade, uma identidade religiosa, de língua e de história, um destino comum».
«Anteriormente, o apoio dado pelo Reino à Revolução argelina ajudou a fortalecer as relações entre o trono marroquino e a resistência argelina. Foi igualmente um elemento fundador da consciência e da acção política magrebina comum».
«Durante longos anos e até ao restabelecimento da independência, lado a lado, levantámo-nos contra o colonizador num combate comum; e conhecemo-nos bem. Aliás, são numerosas as famílias marroquinas e argelinas que partilham laços de sangue e de parentesco.
«Sabemos, também, que o interesse dos nossos povos reside na sua unidade, na sua complementaridade, na sua integração; sem qualquer necessidade que uma terceira parte desempenhe entre nós o papel de intercessor ou de mediador».
A seguir, o estender de mão: «É pois, com toda a clareza e responsabilidade, que declaro hoje a disposição de Marrocos para um diálogo directo e franco com a irmã Argélia, a fim de que sejam ultrapassados os diferendos conjunturais e objectivos que entravam o desenvolvimento das nossas relações.
«Para este efeito proponho aos nossos irmãos na Argélia a criação de um mecanismo político conjunto de diálogo e de concertação. O nível de representação no seio desta estrutura, o seu formato, a sua natureza serão mutuamente acordados.
«Marrocos está aberto a eventuais propostas e iniciativas emanando da Argélia para erradicar o bloqueio no qual se encontram as relações entre os dois países irmãos vizinhos.
«Em virtude do seu mandato, este mecanismo deverá empenhar-se em examinar todas as questões bilaterais, com franqueza, objectividade, sinceridade e boa-fé, sem condições nem excepções, segundo uma agenda aberta.»
E a concluir este ponto: «Movidos pelo afecto e estima que temos pela Argélia, pela sua direcção e pelo seu povo, não pouparemos esforços para firmar as nossas relações bilaterais em sólidas bases de confiança, de solidariedade e de boa vizinhança (…).»
O resto do discurso é um longo e fastidioso enaltecimento da colonização marroquina do Sahara Ocidental. Com um ponto interessante: «a implementação operacional da regionalização avançada contribui para o surgimento de uma verdadeira elite política, que garante uma representação democrática eficaz dos habitantes do Sahara e que, num clima de liberdade e estabilidade, os coloca em condições de exercer o seu direito a uma gestão autónoma dos assuntos locais e a um desenvolvimento integrado da região.»
A Frente POLISARIO aproveitou a oportunidade dada pelo rei para chamar, mais uma vez, a atenção para o seu carácter afunilado, um obstáculo à procura de uma solução «realista» para o conflito. Num comunicado tornado público no dia seguinte ao do discurso, afirma: «Não existem princípios ou referências para a resolução do conflito no Sahara Ocidental que não sejam os definidos na Carta e nas resoluções das Nações Unidas e da União Africana (UA), como um problema de descolonização, caso contrário, é (...) um obstáculo aos esforços da ONU para resolver o conflito».
E volta a afirmar que, condenando estas práticas de dominação, está preparada no entanto para implementar a decisão da UA e trabalhar com o Reino de Marrocos para resolver a disputa como dois membros da organização continental.
Abdelkader Taleb Omar, embaixador da República Árabe Saharauí Democrática na Argélia, ao participar num fórum organizado pelo diário argelino El-Chaab apontou para as contradições do discurso de 6 de Novembro, nomeadamente quando declara o apoio aos esforços do Secretário-geral da ONU e do seu emissário pessoal Horst Köhler e fixa, em contrapartida, condições prévias à resolução do conflito como o limitar a discussão à proposta marroquina de “autonomia”. «As negociações significam a procura de soluções conformes às referências reconhecidas pelo direito internacional», disse.
Citou outra contradição: a afirmação do empenhamento de Marrocos na UA e a recusa em permitir a visita de uma delegação desta estrutura continental à capital do Sahara Ocidental no âmbito da cooperação com a MINURSO.
O embaixador valorizou as posições dos E.U.A. no Conselho de Segurança, «pois contrariamente a Washington, que quer dar às missões da ONU alguma credibilidade, a França procura manter o status quo para servir os interesses de Marrocos». «Todos os que tentam entravar uma solução rápida e duradoura para o conflito não fazem mais do que glorificar a colonização e promover a guerra», acrescentou.
Em fins de Novembro o Bureau Permanente do Secretariado Nacional da Frente POLISARIO anunciou a composição da delegação negociadora que participará no encontro de Genebra. A delegação será presidida pelo presidente do Parlamento saharauí, Jatri Adduh, e integrará o presidente da Comissão de Relações Internacionais da Frente POLISARIO, Mhamed Khaddad; a Secretária-geral da União Nacional das Mulheres Saharauís, Fatma Mehdi; o representante da Frente POLISARIO em Nova Iorque, Sidi Mohamed Omar e o conselheiro do Secretariado Geral da Frente POLISARIO, Mohamed Ali Zerwal.
O Bureau renovou o compromisso da parte saharauí e a sua disposição de participar num processo de negociações de boa-fé e sem condições prévias. Expressou a esperança de que os esforços da comunidade internacional tenham êxito em permitir ao povo saharauí exercer o seu direito inalienável à livre determinação e independência.
 

LOBBY MARROQUINO CONDICIONA LEGALIDADE EUROPEIA

A batalha jurídica em torno da extensão ao Sahara Ocidental dos acordos UE-Marrocos tem vindo a agudizar-se, com a descoberta de compromissos de eurodeputados com os lobbies marroquinos.

MEP Patricia Lalonde

 
Entre 19 e 20 de Outubro decorreu em Gonfreville l’Orcher (Normandia/França) uma conferência internacional abordando a soberania sobre os recursos naturais e a aplicação do direito internacional ao caso do Sahara Ocidental.
Os acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) em 21 de Dezembro de 2016 e 27 de Fevereiro de 2018 vieram mudar as relações de parceria entre Marrocos e a União Europeia (UE). Tanto no que toca à liberalização das trocas comerciais como à renovação do acordo de pescas, ao decidir que o Sahara Ocidental não faz parte do Reino de Marrocos e que o território do Sahara Ocidental deve ser considerado como “uma parte terceira” e que a sua população deve poder dar o seu consentimento a todo o acordo com a UE.
A conferência reuniu um largo espectro de especialistas, académicos e responsáveis associativos que durante dois dias abordaram as manobras das instituições europeias, Comissão e Conselho, para contornar o conteúdo destes acórdãos a fim de preservar as relações com Marrocos e não prejudicar os seus interesses nem os dos 27 Estados membros da UE.
Os conferencistas chamaram a atenção para o facto de os elementos da Comissão encarregues do assunto se empenharem em contestar a representatividade da Frente POLISARIO e as decisões do TJUE, ao mesmo tempo que procuram o apoio de associações jurídicas marroquinas.
Entre as acções previstas pelos participantes está o acompanhar dos trabalhos do intergrupo do Parlamento Europeu (PE) «Paz no Sahara Ocidental», a fim de contribuir para que no momento do voto pela renovação dos acordos UE-Marrocos, em Janeiro de 2019, se adoptem as decisões respeitadoras da legalidade europeia e do direito internacional.
Em 5 de Novembro passado a eurodeputada francesa Patricia Lalonde do grupo liberal apresentou na Comissão de Comércio Internacional do PE (INTA) o seu relatório sobre a extensão do acordo comercial aos territórios do Sahara Ocidental ocupados por Marrocos. Justificou a extensão pelos benefícios que traria às «populações locais» e pelo desenvolvimento do território que assim seria promovido. Reivindicou ter testemunhado em primeira mão esse desenvolvimento. Mas nunca se referiu ao querer da população do território.
O Western Sahara Resource Watch (WSRW) chama a atenção para o facto das preferências comerciais concedidas a Marrocos só se aplicarem à parte do Sahara Ocidental que é ocupada por Marrocos e não à parte sob controlo da Frente POLISARIO, a leste da barreira militar. A deputada Lalonde não abordou esta questão nem as implicações deste redesenhar de fronteiras e como ele se coaduna com o dever da UE de respeitar a integridade territorial do Sahara Ocidental. No debate que se seguiu à apresentação do relatório dois pontos foram objecto de crítica: o povo do Sahara Ocidental não tinha dado o seu consentimento ao proposto acordo comercial para o seu território e não estavam previstos mecanismos que permitissem clarificar a verdadeira origem dos produtos exportados do território. Alguns eurodeputados questionaram directamente a relatora. «O TJUE pediu o consentimento do povo do Sahara Ocidental. Então, o que disse a Frente POLISARIO?» «A MEP Lalonde diz que está em contacto com o enviado da ONU para o Sahara Ocidental. O que diz ele? Esta proposta alimentará o conflito ou ajudará a resolvê-lo?». Uma das três eurodeputadas que fez parte do grupo que se deslocou ao território, mas ficou com uma opinião diferente da de Patricia Lalonde, comentou: «Penso que muito poucos de nós considerariam normal estabelecer um acordo comercial com a Rússia para a Crimeia».
Já a representante da Comissão, Sabine Henzler, disse que não é por a ONU considerar a Frente POLISARIO como o representante político do povo do Sahara Ocidental que a POLISARIO pode ser considerada o representante em assuntos de comércio, considerando que a Comissão fez «tudo o que é possível e viável» para ter o consentimento do povo através de um exercício de consulta.
A 23 de Novembro veio a saber-se que a relatora Patricia Lalonde é um dos membros do Conselho de Administração (CA) da Fundação EuroMedA, que se apresenta como uma fundação internacional de utilidade pública, sediada em Bruxelas nos escritórios do gabinete de lobby Hill + Knowlton Strategies e cujo principal cliente é o Estado marroquino. O seu vice-presidente é Salaheddine Mezouar, antigo MNE de Marrocos. Do CA fazem igualmente parte outros ministros e altos funcionários do Ministério da Agricultura de Marrocos, assim como os eurodeputados Frédérique Ries, belga (ALDE), e a romena Ramona Manescu (PPE).
«O papel da eurodeputada Lalonde enquanto membro do conselho de administração desta fundação levanta sérias dúvidas quanto à legitimidade das suas funções de relatora parlamentar sobre o acordo comercial proposto para o Sahara Ocidental ocupado. As suas afirmações só podem ser entendidas como tendenciosas» comentou o WSRW.
No âmbito desta batalha pelo direito internacional o Presidente do Parlamento saharauí, Jatri Adduh, deslocou-se a Estrasburgo com o objectivo de reiterar a posição da Frente POLISARIO contra os intentos do PE de eludir as sentenças do TJUE. A delegação era composta também pelo ministro delegado da POLISARIO junto da UE, Mohamed Sidati, e os deputados Salek Elmehdi e Chaba Seini. A delegação manteve encontros e consultas com os legisladores europeus durante as sessões do Parlamento Europeu.
Jatri Adduh afirmou que a Frente POLISARIO continuará a sua batalha legal nos tribunais contra quem ousar explorar as riquezas naturais saharauís e, se os Governos europeus renovarem os acordos comerciais agrícola e de pesca com Marrocos, recorrerá de novo ao TJUE.
No âmbito desta batalha jurídica contra o saque dos recursos naturais do Sahara Ocidental promovido pelo regime colonial marroquino, a Frente POLISARIO entregou, em 31 de Outubro, uma intimação à Companhia Francesa de Seguros para o Comércio Externo (COFACE) para que cessasse todas as suas actividades no território, submetendo-se aos acórdãos do TJUE.
M'hamed Khaddad, presidente da Comissão de Relações Internacionais da Frente POLISARIO, informou que seis outros grupos franceses exercendo ilegalmente as suas actividades no Sahara Ocidental foram objecto de acções idênticas. São eles: o BNP Paribas, a Société Générale, o Crédit Agricole, a Axa Assurances, a Transavia e o grupo UCPA. As queixas apresentadas baseiam-se no «crime de colonização» previsto pelo artigo 461-26 do Código Penal francês.