quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Boletim nº 104 - Janeiro 2022

EUCOCO: «O TEMPO DO COLONIALISMO DEVE SER ELIMINADO»

Realizou-se em Las Palmas, Ilhas Canárias, nos passados dias 10 e 11 de Dezembro, a 45ª Conferência Europeia de Apoio e Solidariedade com o Povo Saharaui, promovida desde 1975 pela EUCOCO - a Coordenação Europeia de Solidariedade. Como se escreveu na sua Resolução final, «O tempo do colonialismo deve ser eliminado para sempre das relações entre as nações e a última colónia em África deve poder desfrutar da sua independência sem demora.»

O direito internacional tem de ser respeitado

Depois de um ano sem realização devido aos constrangimentos da pandemia, a Conferência voltou a ser organizada, desta vez nas Canárias, o lugar europeu mais próximo do Sahara Ocidental. Esta é também uma região claramente solidária com o povo saharaui, como exprimiram alguns dos seus representantes oficiais na abertura do evento: «Somos muitos os canários que vivemos a angústia do povo saharaui e a vergonha das atitudes do governo de Espanha»; «Canárias por unanimidade: exigir ao governo de Espanha e à União Europeia que pressionem a ONU para resolverem o conflito. A lei tem de se cumprir».
A escolha do dia 10 de Dezembro para o início dos trabalhos não foi fortuita, uma vez que é o Dia Internacional dos Direitos Humanos. Foi a primeira Conferência após o recomeço da guerra em 13 de Novembro de 2020 e este novo cenário marcou os debates deste ano, que decorreu sob o lema "Estado de Guerra no Sahara Ocidental: responsabilidade do governo de Espanha, da União Europeia e das Nações Unidas".
Apesar da situação sanitária que vivemos impor certas restrições organizativas, como a limitação do número de participantes, o evento contou com a presença de mais de duas centenas de delegados vindos dos quatro cantos do mundo. A AAPSO (Associação de Amizade Portugal-Sahara Ocidental) foi uma das organizações de solidariedade europeias que participou na iniciativa.
A delegação oficial da República Árabe Saharaui Democrática (RASD) foi chefiada pelo seu Primeiro-ministro, Buchraya Hamudi Beyun, acompanhado pela ministra da Saúde, Jira Bulahi; pela ministra da Cooperação, Fatma El Mehdi; pelo delegado para a Europa, Oubi Bachir; pelo delegado saharaui para Espanha, Abdulah Arabi.
Antes do início da Conferência, reuniram-se os parlamentares presentes e, já durante os trabalhos, os juristas participantes. Os primeiros, que incluíam representantes de grupos parlamentares de apoio ao povo saharaui constituídos nos órgãos legislativos do Estado espanhol, entre outras decisões relativas à coordenação de acções futuras, apontaram o mês de Março como a altura para organizar em Navarra uma Conferência Parlamentar de Apoio ao Povo Saharaui. Os segundos discutiram a estratégia apresentada pelo grupo de "Juristas Internacionais pelo Sahara Ocidental" que planeia iniciar acções perante os tribunais e várias administrações, com relevo para Espanha, enquanto potência administrante, a fim de apoiar o povo saharaui na sua luta pela autodeterminação e independência.
A agenda de trabalho começou com uma conferência de imprensa do Primeiro-ministro da RASD, Hamudi Bucharaya Beyun, onde apresentou a posição da RASD relativamente ao novo contexto que o povo saharaui está a viver, descrevendo a situação actual do conflito como um «momento decisivo». Segundo ele, o rompimento do acordo de paz de 1991 deve-se à «obstrução de Marrocos» à realização do referendo de autodeterminação acordado por ambas as partes. Uma situação tornada possível, disse, pela «falta de firmeza por parte das Nações Unidas» que «encorajou» Marrocos.
Após a sessão de abertura e as mensagens de solidariedade das várias delegações internacionais, os trabalhos da 45ª edição centraram-se na elaboração de um plano de acção em consonância com os novos desafios. Os participantes organizaram-se em quatro grupos de trabalho (GT) onde elaboraram um roteiro para o ano 2022.
O GT “Política e Informação" constatou que o reinício das hostilidades no terreno tinha criado uma situação nova e foi acompanhado por uma ofensiva política e diplomática da Frente POLISARIO; saudou o acórdão do Tribunal Geral da União Europeia sobre os acordos comerciais UE-Marrocos; e deliberou encorajar tomadas de posição mais claras por parte de países europeus sensíveis aos direitos do povo saharaui, assim como lutar contra as políticas coniventes com o regime marroquino de ocupação.
O GT "Consolidação do Estado saharaui" reiterou a solidez das instituições da RASD, Estado fundador da União Africana e entidade «capaz de assumir a gestão completa do território nacional»; testemunhou o seu apoio a todos quantos vivem nos Acampamentos e na zona libertada nesta fase de guerra, que torna tudo ainda mais difícil; e mencionou a importância da geminação entre cidades europeias e saharauis como uma das iniciativas a aprofundar.
O GT "Direitos Humanos" voltou a insurgir-se contra o facto de não haver qualquer monitorização da violação de direitos humanos no Sahara Ocidental por parte das Nações Unidas, através da MINURSO, que se mantém como a única Missão de Paz da ONU que não contempla esta vertente nas suas responsabilidades; voltou a reclamar a aplicação do direito humanitário internacional; e apelou a que este muro de silêncio construído por Marrocos seja quebrado pela sistemática e objectiva descrição e divulgação de todos os abusos cometidos pelo poder ocupante e pela expressão de solidariedade para com as vítimas por parte de entidades públicas e organizações da sociedade civil.
O GT "Recursos Naturais" apoiou a estratégia de batalha legal contra a pilhagem dos recursos naturais, coordenada e liderada pela Frente POLISARIO; e reafirmou a importância de se darem a conhecer as vitórias parciais que se vão registando – divulgadas pela Western Sahara Resource Watch – assim como de manter a condenação activa das empresas que continuam a aproveitar-se ilegalmente das riquezas saharauis, para que deixem de o fazer, como já se verificou várias vezes.
Nos grupos de trabalho foram constituídas comissões de acompanhamento que assegurarão a implementação das decisões tomadas.
A 46ª Conferência terá lugar, em princípio, na Alemanha.

VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: «CONTINUAREMOS A RESISTIR»

A prática sistemática de violação dos direitos humanos por parte das autoridades coloniais marroquinas não tem conseguido quebrar a resistência saharaui à ocupação da sua pátria. 

Sultana Khaya

Em 21 de Novembro passado o representante da República Árabe Saharaui Democrática (RASD) na Comissão dos Direitos Humanos e dos Povos da União Africana (UA), Weddad El-Mostafa, apelou a uma intervenção urgente daquela Comissão para pôr fim às práticas de violação dos mais elementares direitos por parte das autoridades de ocupação marroquinas. Citou, como exemplo, a situação da activista Sultana Khaya e da sua família, que foram colocadas sob prisão domiciliária há mais de um ano, onde sofreram todo o tipo de intimidação e abuso, incluindo violação. El-Mostafa salientou a necessidade de implementar urgentemente a resolução do Conselho Executivo da UA que apela ao envio pela Comissão de uma missão aos territórios saharauis ocupados para investigar as violações dos direitos humanos e informar o Conselho.
Esta preocupação de alertar para a situação dos direitos humanos nos territórios ocupados tem sido um dos campos de intervenção das organizações saharauis que a sofrem, como é o caso da Instância Saharaui Contra a Ocupação Marroquina (ISACOM). O jogo de futebol entre a Argélia e Marrocos, disputado em 11 de Dezembro, foi o detonador de uma nova vaga repressiva.
Conforme conta a agência SPS, «Em comunicado divulgado no dia 14 de Dezembro, a ISACOM destaca a informação publicada pelo órgão de comunicação social saharaui Fundação Nushatta, que noticiou que "a polícia marroquina lançou a sua campanha de assédio e detenções contra civis saharauis nas zonas ocupadas do Sahara Ocidental antes do jogo de futebol com a detenção do presidente da Fundação Nushatta, Lwali Lahmad".» Segundo a ONG, «testemunhas oculares relataram que agentes policiais das autoridades de ocupação marroquinas prenderam, após o final do jogo, vários jovens que celebravam a vitória da equipa argelina e os espancaram, arrastando-os pelas ruas.»
Para a SPS estes acontecimentos «lembram-nos incidentes semelhantes que resultaram na morte da jovem saharaui Sabah Othman Hmida, depois de ter sido atropelada por um carro pertencente a uma das forças repressivas marroquinas a 20 de Julho de 2019, depois de a equipa nacional argelina ter ganho a Taça Africana das Nações.»
A ISACOM termina o seu comunicado «convidando as Nações Unidas e o Comité Internacional da Cruz Vermelha a assumirem as suas responsabilidades e a abandonarem a sua inacção, pressionando Marrocos a respeitar os seus compromissos em matéria de direitos humanos.»
Dias depois de ser libertado pela polícia Lwali Lahmad foi entrevistado por Oscar Rickett para o Middle East Eye (MEE). O jornalista descreve o ambiente que se vivia na capital do Sahara Ocidental antes e logo após o jogo. «Nas horas que antecederam a partida de sábado da Taça Árabe da FIFA entre a Argélia e Marrocos, Laayoune estava mortalmente sossegada. As autoridades marroquinas tinham emitido um recolher obrigatório (...), com cafés, restaurantes e qualquer local onde se pudesse ver o jogo de futebol, obrigatoriamente fechados. Depois a Argélia, saudada pelos saharauis pelo seu apoio a um Sahara Ocidental independente, venceu Marrocos, a potência ocupante. As pessoas saíram às ruas para festejar.»
Nesta conversa com o MEE, Lahmad descreve os acontecimentos que envolveram a sua prisão antes do jogo, as circunstâncias em que a mesma foi realizada e quem chefiava os agentes que o prenderam. Descreve também as condições em que o conduziram à sede da polícia e a brutalidade de que foi alvo durante a viagem e, depois, na própria esquadra: «fotografias enviadas para o MEE atestam o nível de violência que lhe foi infligido, uma vez que se podem ver equimoses em todo o seu corpo. (…). Libertado da sede da polícia às 2h30 da manhã, Lahmad regressou a casa, onde tem estado desde então. Permanece sob vigilância e ainda não pôde consultar um médico. O jornalista saharaui diz que nunca foi emitido um mandado de captura ordenado pelo tribunal e que nunca lhe foi dada uma razão para a sua detenção. Diz que em momento algum lhe foi dada uma oportunidade de falar com um advogado.»
Oscar Rickett informa-nos, ainda, que «Nem o Ministério dos Negócios Estrangeiros marroquino nem a embaixada de Marrocos em Londres responderam ao pedido do MEE sobre o caso de Lahmad.»
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A Federação Internacional dos Direitos Humanos lançou em 23 de Dezembro um alerta urgente contra a «prisão arbitrária e os mau tratos» de que Lwali Lahmad foi alvo.
Relata depois o «padrão de abuso» a que as mulheres saharauis são sujeitas pelas forças de segurança marroquinas, particularmente as que se empenham na defesa dos direitos humanos. Lembra que «Em Julho, Mary Lawlor, relatora especial da ONU sobre a situação dos defensores dos direitos humanos, apelou a Marrocos para "deixar de visar os defensores dos direitos humanos e os jornalistas que defendem os direitos humanos relacionados com o Sahara Ocidental".» E em Novembro, a Amnistia Internacional «relatou que as forças de segurança marroquinas tinham invadido a casa da conhecida activista dos direitos das mulheres saharauis Sultana Khaya, violando-a e abusando sexualmente das suas irmãs e da sua mãe de 80 anos de idade.»
Termina dando a palavra às combatentes da liberdade saharauis: «Vamos continuar a lutar. Continuaremos a resistir».
Em finais de Dezembro Mary Lawlor voltou a insistir na denúncia desta situação: «Sultana disse não ter sido acusada de qualquer crime e que gostaria de ter a oportunidade de responder a quaisquer alegações que lhe sejam dirigidas. Em Junho de 2021 juntei-me a outros peritos independentes da ONU para levantar a questão do seu tratamento junto das autoridades marroquinas, observando que Sultana tem sido uma proeminente Defensora dos Direitos Humanos desde há muitos anos.»
De forma quase coincidente, no dia seguinte à ocorrência destes acontecimentos desembarcou em El Aaiún uma delegação da embaixada dos EUA em Rabat para encontros com várias instituições marroquinas e saharauis para abordar um leque diverso de assuntos, que incluíam áreas económicas e sociais assim como a situação dos direitos humanos. David Fisher, conselheiro político, e Mohamed Amin Messaoudi, assessor da direcção de assuntos políticos da embaixada, encontraram-se no 16 de Dezembro com uma delegação da ISACOM presidida por Aminetou Haidar. A reunião demorou mais de uma hora. Não foi divulgado por parte do Departamento de Estado qualquer comunicado sobre este encontro.
Tão preocupados com as violações dos direitos humanos pelas autoridades de Pequim, tão despreocupados com as violações dos direitos humanos pelas autoridades de Rabat!


 


 


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