sexta-feira, 4 de agosto de 2023

ELEIÇÕES EM ESPANHA: O QUE VAI MUDAR?

(Boletim nº 123 - Agosto 2023)

A relevância da questão saharaui no debate eleitoral, pelas suas implicações na política externa de Espanha, foi central na campanha, como salientaram analistas e comentadores.

Candidatos (imagem: El Viejo Topo)

Como escreve o jornalista Miguel Muñoz, «Em termos de política internacional, as relações com Marrocos, com a Argélia e a posição sobre o Sahara Ocidental foram das questões mais polémicas durante a última legislatura. Esta questão está incluída nos programas eleitorais com diferentes graus de profundidade e especificidade. No que respeita aos partidos a nível estatal, das quatro principais forças políticas apenas o Sumar é explícito quanto ao direito à autodeterminação do povo saharaui. Os partidos soberanistas como ERC [Esquerda Republicana Catalã], PNV [Partido Nacionalita Basco], BNG [Bloco Nacionalista Galego] e EH Bildu [Euskal Herria Bildu/Reunir Euskal Herria] também incluem este direito.»
Ainda antes da campanha a Frente POLISARIO esclareceu a sua posição: «A Frente POLISARIO já definiu claramente as suas linhas e exigências para a formação que irá chefiar a próxima legislatura. Em entrevista à agência EUROPA PRESS, Abdulah Arabi, delegado da Frente POLISARIO em Espanha, reiterou que a exigência ao novo governo será a de "inverter esta viragem que contradiz a legalidade internacional e a responsabilidade de Espanha". Arabi sublinhou que a Frente POLISARIO exigirá a qualquer governo que cumpra as suas responsabilidades e obrigações.»
Estas eleições não foram só acompanhadas pelas populações de Espanha. Dois governos vizinhos também as acompanharam atentamente:
«As declarações dos principais líderes do PSOE e do PP na véspera das eleições de 23 de Julho têm dois espectadores estrangeiros muito interessados: Marrocos e Argélia. Em ambos os países, tudo o que se diz sobre eles e sobre o futuro das relações diplomáticas é seguido com grande atenção, porque os pode afectar. (…).»
«Nas últimas semanas, (...), o interesse é ainda maior, uma vez que Marrocos receia que uma eventual vitória do PP conduza a uma inversão do apoio ao plano de autonomia para o Sahara como "a base mais sólida, credível e realista" para uma solução, enquanto a Argélia acolheria com agrado essa ocorrência. (…).»
«Em particular, a atenção centra-se no que dizem Sánchez e o seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, José Manuel Albares, por um lado, e no que dizem o líder do PP, Alberto Núñez Feijóo, e outros altos responsáveis do seu partido, por outro, relativamente à sua posição sobre estes dois países vizinhos, com os quais existem relações históricas, com altos e baixos, mas que são estratégicos para Espanha. (…).»
«Mas se a posição do Governo [PSOE] é conhecida e se tanto a Moncloa [sede do governo em Madrid] como o Ministério dos Negócios Estrangeiros se esforçaram por sublinhar os benefícios da nova fase das relações com Marrocos, que se traduziu numa redução da imigração e num aumento das trocas comerciais, o que mais interessa em Rabat e em Argel é o que diz o PP.»
Segundo o jornalista Alfonso Lafarga, «No seu programa eleitoral, o Partido Popular propõe apoiar as Nações Unidas no Sahara Ocidental com o objectivo de alcançar "uma solução política justa, duradoura e aceitável para as partes", mas sem referência ao direito à autodeterminação do povo saharaui (…).»
«Com as eleições de 23-J, o Sahara Ocidental regressou ao programa eleitoral do Partido Popular, do qual desapareceu nas eleições de 28 de Abril e 10 de Novembro de 2019, com Pablo Casado como presidente. (…).»
«No programa de 23-J, o PP afirma que a Espanha precisa de uma política externa que responda aos valores comuns da nossa sociedade, que é profundamente pró-europeia, e que os diferentes governos souberam manter um equilíbrio razoável entre Marrocos e a Argélia "sem esquecer as nossas responsabilidades para com o povo saharaui".»
Questionado sobre a reviravolta do PSOE, «o líder do PP afirmou sempre que não conhece os termos em que esta posição foi adoptada e os acordos que foram alcançados com Marrocos desde então, primeiro na reunião com o Rei Mohammed VI, a 7 de Abril de 2022, e depois na Reunião de Alto Nível (RAN) em Rabat, em Fevereiro deste ano.»
«Foi esta a sua resposta numa entrevista recente (...). Segundo ele, quando se encontrou com o primeiro-ministro marroquino, Aziz Ajanuch, em Maio de 2022, em Roterdão, este perguntou-lhe se ia manter os acordos do actual governo e ele respondeu-lhe que não sabia quais eram, pelo que não discutiram mais o assunto.»
Para Lafarga «o programa eleitoral do PSOE (...) estabelece uma nova fase nas relações bilaterais com Marrocos, que apoia nas suas reivindicações sobre o Sahara Ocidental, mas não tem em conta a Argélia, que nem sequer menciona e com a qual a Espanha atravessa uma grave crise diplomática e económica.»
«Relativamente ao Sahara Ocidental, o partido chefiado por Pedro Sánchez limita-se a dizer que continuará a apoiar o enviado pessoal do Secretário-geral da ONU "para chegar a uma solução mutuamente aceitável no quadro da ONU".»
«No ponto "Relações bilaterais estratégicas com os nossos vizinhos", o PSOE afirma, no seu programa eleitoral, que continuará a aprofundar a "nova etapa das nossas relações bilaterais com Marrocos", no âmbito da qual foram assinados cerca de vinte acordos "para reforçar a cooperação na luta contra o tráfico de seres humanos e o terrorismo, a cooperação migratória ou a promoção de empresas exportadoras e empresas espanholas em Marrocos".»
Não surpreende, assim, que responsáveis marroquinos apelassem ao voto no PSOE, como o fez a Srª Aicha El Gourgi. «Numa carta, a deputada marroquina residente na Catalunha pede aos seus compatriotas que votem em massa no PSOE.» Apresentando-se como Secretária Regional da USFP (União Socialista das Forças Populares), um partido membro da Internacional Socialista, apelou aos «espanhóis de origem marroquina» encorajando-os «a exercer o seu direito de voto e a votar maciçamente no Partido Socialista Operário Espanhol e nas suas delegações territoriais nas próximas eleições», lembrando-lhes que «No âmbito internacional, o Partido Socialista de Espanha tem defendido os valores da cooperação, solidariedade, respeito mútuo e boa vizinhança baseada no diálogo».
A experiência ensina-nos que as campanhas eleitorais convidam ao esforço partidário de demarcação de posições, procurando mostrar que “eu sou muito diferente (e melhor!) que ele”, diferenciação esta que depois, na prática política, se esbate. Um exemplo no que ao Sahara Ocidental diz respeito: «Os eurodeputados do PP e do PSOE recusaram-se a assinar uma carta que pede ao presidente da FIFA, Giovanni Infantino, que retire o Sahara Ocidental do programa de Marrocos para acolher o Campeonato do Mundo de Futebol de 2030 (…). "O Campeonato do Mundo não pode contribuir para legitimar uma ocupação ilegal", acrescenta o documento. "Caso contrário, a FIFA tornar-se-ia cúmplice desta situação", conclui. »
Já o Sumar tem tido uma posição clara quanto à questão. «Sob o título "Uma solução justa para o Sahara Ocidental, a Palestina e a Ucrânia", as propostas relativas ao conflito saharaui são formuladas do seguinte modo:»
«- Reverteremos rapidamente a mudança de posição adoptada em 2022 sobre o Sahara Ocidental e utilizaremos todos os canais de influência no conflito para apoiar plenamente o direito à autodeterminação do povo do Sahara Ocidental, tanto no âmbito das Nações Unidas, promovendo o trabalho da MINURSO, como nos organismos regionais e nas relações bilaterais com a sua vizinhança meridional.»
«- Promoveremos de forma pró-activa medidas que facilitem a vida da população saharauí onde quer que se encontre, seja em Tindouf, no Sahara Ocidental ocupado ou em Espanha, promoveremos o trabalho das organizações de direitos humanos que trabalham no terreno e aumentaremos as dotações de ajuda humanitária aos campos de refugiados saharauís.»
«- Trabalharemos junto da União Europeia para defender o cumprimento das decisões da justiça europeia relativamente ao Sahara Ocidental e, consequentemente, para rever os vários acordos entre a União Europeia e Marrocos que possam afectar o Sahara Ocidental.»
Das restantes forças políticas concorrentes às eleições, o VOX, «que criticou duramente Sánchez pela sua mudança de posição sobre o Sahara, esquece completamente o conflito no seu programa. Não há uma única menção no seu documento de 178 páginas.» Mas pede a «suspensão imediata do acordo agrícola entre Marrocos e a União Europeia, devido aos seus "enormes prejuízos económicos para a produção agro-alimentar espanhola", bem como "a imposição de tarifas sobre os produtos agrícolas provenientes de Marrocos".»
Dias depois das eleições, Tesh Sidi, eleita deputada por Madrid nas listas de Sumar, foi entrevistada pelo jornal El Independiente: «Sidi confessa ter recebido "em privado" expressões de apoio das bases saharauis mas também marroquinas. "A grande maioria assim o sente. As pessoas estão muito contentes. Em Torrevieja tive a sorte de encontrar dois jovens marroquinos que estavam muito contentes. Colocar os direitos humanos no centro inclui o povo marroquino e o povo saharauí", salienta a activista. "Que os direitos humanos e as políticas anti-racistas estejam no centro na próxima legislatura e ocupem a agenda política é fundamental", afirmou, criticando fortemente a utilização de uma retórica anti-marroquina na campanha. "O racismo contra outro povo nunca é a solução.


 


MARROCOS-ISRAEL: «O FACTO CONSUMADO NÃO DETERMINA A HISTÓRIA»

(Boletim nº 123 - Agosto 2023)

O Estado de Israel tem vindo ter um papel crescentemente interventivo na região do Sahel graças à sua aliança com o regime marroquino promovida pela ex-administração Trump e mantida pela administração Biden. O reconhecimento da ocupação marroquina do Sahara Ocidental é mais um passo.

A força contra o direito internacional

Esta aliança abrange um largo leque de áreas, desde a segurança às actividades económico-financeiras. Um exemplo desta última é a exploração dos recursos naturais do Sahara Ocidental por empresas israelitas. Em 3 de Junho a Frente POLISARIO denunciou a assinatura de um contrato entre a empresa israelita NewMed Energy e as autoridades marroquinas de ocupação «para a exploração e produção de gás natural» nas águas territoriais do Sahara Ocidental, frente à localidade de Bojador, violando as decisões dos tribunais da União Europeia (UE), nomeadamente a sentença de 29 de Setembro de 2021 que «confirmou os direitos de soberania do povo saharaui sobre as águas do Sahara Ocidental e os seus recursos naturais».
O jornalista Saïd Boucetta cita a MintPress News (MPN) que além da NewMed Energy, refere a Ratio Petroleum, o Selina Group e a Halman-Aldubi Technologies, como agentes activos no saque das riquezas do Sahara Ocidental. Além disso, segundo Boucetta, a MPN «confirmou a compra, em 2014, de drones pelo exército de ocupação marroquino à entidade sionista. Estas armas sofisticadas, entregues em 2020, são utilizadas nos bombardeamentos do exército marroquino contra o Exército de Libertação do Sahara Ocidental. (…) afirmando que, em 2021 e 2022, Marrocos terá comprado um verdadeiro arsenal a Israel. (…). O sítio noticioso identificou "drones utilizados para a vigilância e a recolha de informações no Sahara Ocidental, drones kamikaze e o sistema de intercepção de mísseis e anti-aéreos Barak MX", acrescentando que a aliança militar já não é secreta.»
Não surpreende assim que as forças militares israelitas tenham participado, pela primeira vez, na African Lion, as maiores manobras militares no continente africano, cuja 19ª edição teve lugar na região de Tan Tan no sul de Marrocos. Organizada pelos EUA através da OTAN e para a qual foram convidados 18 países não-membros da aliança.
Neste quadro, o reconhecimento pelo Estado de Israel da soberania de Rabat sobre o Sahara Ocidental anunciado a 17 de Julho surge como “natural”. Por todo o trabalho de preparação desenvolvido pelas administrações dos EUA, de que os acordos de Abraham são a expressão diplomática e mediática, e pelas ilegalidades governativas que os dois regimes desenvolveram e praticam há longo tempo: as ocupações da Palestina e do Sahara Ocidental, a violação do direito internacional que tais ocupações representam, e as violações dos direitos humanos com que o fazem.
Como relata DemocracyNow: «Em declarações ao Middle East Eye, o activista Mohammed Elbaikam, baseado no Sahara Ocidental, afirmou que "Marrocos utiliza os mesmos instrumentos e métodos que Israel para reprimir os palestinianos, ocupando-lhes as suas terras e expulsando-os, roubando-lhes as suas riquezas e controlando-os".»
Esta relação tem contribuído para envenenar ainda mais a unidade africana como, aliás, ficou bem patente na 36ª Cimeira da União Africana (UA). Em causa estava a resolução, em Julho de 2021, do Presidente da Comissão da UA, o chadiano Moussa Faki Mahamat, que concedeu a Israel o estatuto de observador na organização pan-africana sem consultar os outros Estados, o que provocou um clima de tensão e mal-estar entre os Estados-membro, obrigando a adiar a decisão final para a Cimeira seguinte, em 2022. Mas aqui voltou a manifestar-se uma forte oposição, em que «24 países manifestaram publicamente a sua recusa em ver Israel aderir à organização como observador», entre os quais «o Senegal, os Camarões, o Congo, a Nigéria, o Ruanda».
As Nações Unidas reagiram prudentemente a este reconhecimento israelita. «A nossa posição sobre a questão do Sahara Ocidental mantém-se inalterada» comentou Stephen Dujarric, o porta-voz do Secretário-geral, em conferência de imprensa.
Os EUA solidarizaram-se com a iniciativa: «"O restabelecimento das relações entre Marrocos e Israel foi inequivocamente positivo para a região. E estamos ansiosos por trabalhar com estes parceiros próximos para expandir a paz", disse o porta-voz do Departamento de Estado, Matthew Miller, numa conferência de imprensa.»
«Miller evitou comentar a mudança de Israel no Sahara Ocidental e limitou-se a lembrar que os Estados Unidos reconhecem a soberania de Marrocos sobre o território desde 2020, quando Donald Trump ocupava a presidência. "Os Estados Unidos deram esse passo em Dezembro de 2020 e isso não mudou", observou.»
Como comentou Santiago González Vallejo, membro do Comité de Solidaridad con la Causa Árabe, sobre as relações entre a questão saharaui e a questão palestiniana:
«(...). Os Estados árabes do Médio Oriente apoiaram, em geral, Marrocos na sua anexação do Sahara ou, pelo menos, não quiseram envolver-se na disputa argelino-marroquina, o que facilitou a política marroquina. Além disso, Marrocos e os seus vários reis apoiaram a OLP e afirmaram ser defensores da Jerusalém palestiniana, com dádivas regulares.»
«A deriva do apoio formal de Marrocos à causa palestiniana era justificado pelo facto de muitas organizações civis pró-palestinianas não serem muito activas, se é que o eram, com a causa saharaui, e por as próprias organizações palestinianas não quererem reconhecer o paralelo entre a ocupação israelita e a ocupação marroquina.»
«Agora, a OLP e a própria Autoridade Palestiniana, institucionalmente débil, estão confrontadas com o dilema entre aceitar a retórica e as dádivas marroquinas – e aceitar um facto consumado, conformar-se que outros sofram o mesmo que eles próprios têm sofrido – ou defender o direito internacional em toda a parte. O mesmo se aplicando à frágil sociedade civil marroquina que defende os direitos humanos e a democratização de Marrocos.»
«A sociedade civil europeia já decidiu isto antes. Há alguns meses, foi lançada uma Iniciativa Cidadã Europeia que recolheu 277.000 assinaturas, das quais cerca de 24.000 de cidadãs e cidadãos de Espanha, apelando à proibição do comércio entre a UE e os colonatos nos Territórios Ocupados. Em abstracto. Não se referia a palestinianos ou saharauis. Se a ocupação é ilegal, como diz o direito internacional, então o comércio com os territórios sob ocupação deveria ser ilegal. (…).»
«Os surtos de violência armada e de resistência civil continuarão. O sofrimento será longo. A lei está com uns, a força, por enquanto, com outros. O mundo colonial e pós-colonial está repleto de múltiplos exemplos. Não há dilema. Temos de apoiar o direito e a coerência, o lado bom da justiça e da história, face ao cinismo e aos dois pesos e duas medidas. O facto consumado não determina a história. É essa a grandeza da resistência.»