domingo, 5 de dezembro de 2021

Boletim nº 103 - Dezembro 2021

 

ESPANHA: O FRANQUISMO CONTINUA VIVO

Em 16 de Novembro passado as autoridades do Estado espanhol entregaram à polícia marroquina Faisal Bahloul, um conhecido activista pela independência do Sahara Ocidental.

Faisal Bahloul

«O activista saharaui, de 44 anos, foi detido a 30 de Março em Basauri [País Basco]. Na altura, foi noticiado que era muito activo nas redes sociais, com cerca de 30.000 seguidores, e que postava mensagens "inflamatórias" contra os ocupantes do Sahara Ocidental.»
Segundo a agência espanhola EFE em Rabat, na altura da detenção o Ministério do Interior de Espanha informou que Faisal, que foi preso por ordem do tribunal, se radicalizara e utilizava as redes sociais para encorajar acções "terroristas e violentas" contra o povo e as instituições marroquinas em Espanha e no estrangeiro.
Fontes familiares afirmam que ele tinha residência legal em Espanha até 2024 e que estava pendente de um pedido de asilo em França, pedido este válido até 15 de Dezembro de 2021. Marrocos acusa-o de envolvimento nos acontecimentos ocorridos durante o desmantelamento do campo de Gdeim Izik, nos arredores de El Aaiún, em Novembro de 2010.
Segundo a EFE, «a investigação começou em Dezembro de 2020, quando a polícia espanhola tomou conhecimento da actividade de um indivíduo que publicou ameaças extremamente graves e violentas através de redes sociais.»
A Associação das Famílias dos Presos e Desaparecidos Saharauis (AFAPREDESA) acusa Madrid de ter violado a IV Convenção de Genebra e a Convenção contra a Tortura ao entregar Faisal Bahloul a Marrocos. Em comunicado, a associação considera que a Espanha violou as suas obrigações como poder administrante do território do Sahara, tal como estabelecido nos artigos 73 e 74 da Carta das Nações Unidas. Em apoio desta afirmação, cita a decisão de 4 de Julho de 2014 da Câmara Criminal da Audiência Nacional, então presidida pelo actual Ministro do Interior, Fernando Grande Marlaska, que determina que a Espanha, de acordo com as resoluções das Nações Unidas, continua a ser de jure, embora não de facto, o poder administrante do Sahara Ocidental e, até que a descolonização esteja concluída, tem as obrigações estabelecidas nos artigos 73º e 74º da Carta das Nações Unidas, incluindo a prestação de protecção, abrangendo a jurisdicional, aos seus cidadãos.
Para a AFAPREDESA a entrega do activista saharaui às autoridades marroquinas, efectuada por polícias espanhóis no aeroporto de Casablanca, constitui uma grave violação do Artigo 3 da Convenção contra a Tortura, que proíbe «a expulsão, regresso ou extradição de uma pessoa para outro Estado onde existam motivos substanciais para acreditar que ela correria o risco de ser sujeita a tortura». Salienta que o Executivo está consciente da existência de «violações manifestas, flagrantes ou maciças dos direitos humanos pelo Reino de Marrocos contra o povo saharaui, tanto no passado como no presente», e especifica o caso de genocídio, «uma verdade jurídica reconhecida pelo Despacho n.º 1/2015 para a acusação de 11 altos comandantes civis e militares marroquinos emitida em 19 de Abril de 2015 pelo Juiz Pablo Ruz».
A este respeito, regista a resolução da Comissão contra a Tortura da ONU sobre o prisioneiro Naama Asfari, pelo qual Marrocos foi condenado, e as decisões do Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária, como a de Agosto de 1996 sobre 10 jovens saharauis condenados a penas de prisão que vão de 18 meses a 10 anos «por participarem no exercício pacífico do seu direito à liberdade de opinião e de expressão»; outro de 1996, relativo à detenção de cinco jovens por se terem manifestado, e um de Fevereiro de 2021, relativo ao jornalista Walid El Batal, arbitrariamente privado da sua liberdade em violação da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
E inclui uma Acção Urgente adoptada em Junho de 2021 mandatada por um grupo de Relatores Especiais da ONU sobre alegações de agressões físicas e sexuais, assédio, ameaças e rusgas a jornalistas e defensores dos direitos humanos e membros da ISACOM (Instância Saharaui Contra a Ocupação Marroquina), incluindo as irmãs Sultana e Luaara Khaya, sob cerco domiciliário e sujeitas a agressões físicas e sexuais e intimidação.
Não é a primeira vez que as autoridades do Estado espanhol entregam à polícia de Marrocos cidadãos do Sahara Ocidental. «Há cinco anos, um jovem saharaui foi preso em Sevilha pela polícia espanhola por ter criticado duramente o regime de Mohamed VI em grupos de WhatsApp; as autoridades espanholas fizeram então as mesmas acusações: "preparar acções terroristas contra os interesses marroquinos em Espanha e ameaçar a vida do próprio rei Mohamed VI".
«Outro caso semelhante mas mais grave, ocorreu a 17 de Janeiro de 2019 quando o governo de Espanha entregou às autoridades marroquinas Husein Uld Bachir Uld Brahim (alias Saddam)».
«O estudante saharaui Husein Bachir Brahim chegou a 11 de Janeiro de 2019 a Lanzarote, num barco, fugindo da perseguição marroquina. No dia 14 declarou no tribunal de instrução de Arrecife que procurava asilo político por ser um activista dos direitos humanos e ser perseguido. O juiz ordenou a sua admissão e três dias mais tarde foi entregue a Marrocos pelo Ministério do Interior. Bachir, membro do grupo de estudantes saharauis conhecido como "El Ouali's Companions", detido em 2016 em Marraquexe, foi condenado a 12 anos de prisão.» 
As autoridades de Madrid conhecem a situação política e social em Marrocos e nos territórios ocupados do Sahara Ocidental. Conhecem as práticas do seu regime no campo da violação dos direitos humanos, práticas estas amplamente denunciadas por organizações internacionais de defesa dos Direitos Humanos e por organismos das Nações Unidas. Estas cumplicidades com o regime de Rabat extravasam questões de segurança e interesses económicos. Alertam-nos para que a herança recente do franquismo ainda está viva em Espanha.

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Boletim nº 102 - Novembro 2021

ONU: «UM PASSO EM FRENTE, DOIS PASSOS À RECTAGUARDA»

No mês passado interrogámo-nos aqui se a ONU estaria a iniciar uma nova dinâmica para a questão do Sahara Ocidental. Porém, os sinais que nos chegam não nos dão esperança quanto a essa possibilidade.

ONU: direito internacional ignorado

Mais do que em anos anteriores, as semanas que antecederam a votação da resolução anual do Conselho de Segurança sobre o Sahara Ocidental foram férteis em declarações públicas de vários actores, tanto estatais como não-governamentais. Este facto reflecte as novas situações, quer no terreno – com a quebra do cessar-fogo e o recomeço das hostilidades - quer no campo diplomático.
A nomeação do novo chefe da MINURSO, o russo Alexander Ivanko, e do novo Enviado Pessoal do Secretário-geral das Nações Unidas, Staffan de Mistura, vieram criar alguma expectativa quanto ao retomar do processo de descolonização do território. Os EUA, através do Secretário de Estado Anthony Blinken, saudaram a nomeação «do novo Enviado Pessoal das Nações Unidas para o Sahara Ocidental», enfatizando que Washington apoia totalmente o processo político dirigido pela ONU para promover «um futuro pacífico e próspero para o povo do Sahara Ocidental e da região».
A União Europeia também se congratulou com esta nomeação. «Estamos confiantes de que, como diplomata abalizado com longa experiência na região e em negociações internacionais, De Mistura contribuirá para dar um novo impulso ao processo dirigido pela ONU no Sahara Ocidental. (…). Também encorajamos todas as partes a cooperar com o Enviado para chegar a uma solução, de acordo com as resoluções do Conselho de Segurança e os princípios e propósitos da Carta das Nações Unidas.»
A Frente POLISARIO reagiu pela voz do MNE da RASD, Mohamed Salem Ould Salek. «Se o Enviado Especial De Mistura conseguir fixar uma data para o referendo ou desenvolver um plano prático para acabar com as manobras e a prevaricação que têm dificultado os esforços da ONU para descolonizar o Sahara Ocidental, a história recordará que ele e o SG da ONU conseguiram pôr em marcha o comboio internacional da legalidade no Sahara Ocidental, a fim de permitir ao povo saharaui exercer o seu direito à autodeterminação (…). Esta abordagem poderia abrir vastas perspectivas para uma paz justa e final na região».
O ministro saharaui acrescentou que «há quem se torne muito inovador, inventando qualidades e atributos completamente novos, a fim de evitar a evocação do direito à autodeterminação, com o objectivo de (...) alterar o mandato da MINURSO, ou mesmo alterar a natureza da questão do Sahara Ocidental, como uma questão de descolonização».
No dia 13 de Outubro, o porta-voz das Nações Unidas anunciou que Staffan de Mistura assumiria funções em 1 de Novembro, altura em que estabeleceria o calendário para o lançamento de negociações directas entre Marrocos e a Frente POLISARIO, aproveitando para visitar a região. Nesse dia o Conselho de Segurança reuniu à porta fechada para debater a situação no Sahara Ocidental e ouvir o relatório de Alexander Ivanko. Dias antes tinha sido divulgado o relatório anual do Secretário-geral sobre a situação no território.
Escreve Salem Mohamed no El Confidencial Saharaui: «A ONU, (...), publicou o relatório anual do Secretário-geral da ONU sobre o conflito, mas apesar da ruptura do cessar-fogo e do regresso às hostilidades, o relatório é omisso em quase tudo; não denuncia a violação marroquina do cessar-fogo apesar de o constatar, equipara a potência ocupante ao povo que submete, ignora os Acordos de Abraão que utilizaram o Sahara Ocidental como moeda de troca na normalização israelo-marroquina, (...). A ONU torna cada vez mais difícil levar a sério o seu trabalho e alarga assim o fosso em relação aos saharauis. (…). O relatório como um todo deixa muito a desejar, uma tentativa de minimizar a gravidade do conflito e a responsabilidade de Marrocos no romper do cessar-fogo. (…).
«O relatório de 21 páginas do Secretário-geral da ONU sobre a descolonização do Sahara Ocidental apenas menciona "a autodeterminação dos saharauis" uma vez no documento, no final do parágrafo 85. Os saharauis não precisam de inimigos se tiverem a ONU. Se António Guterres quer realmente que os saharauis levem a sério as suas palavras, é melhor começar a levar a sério as siglas e tarefas da MINURSO, as resoluções da sua organização e a pressionar a parte que descaradamente impede a conclusão pacífica do conflito, obrigando-a a cumprir as suas obrigações voluntariamente assinadas, caso contrário as suas palavras carecem de validade, tal como a atitude da ONU no Sahara Ocidental carece de exemplos que reflictam o compromisso que pede às outras partes. Por outras palavras, a impunidade marroquina e a passividade da ONU formaram um cocktail letal que não só hipotecou o futuro dos saharauis, mas também o desenvolvimento de toda a região do Norte de África, ajudando a inflamar uma das poucas regiões estabilizadas do mundo. (…).»
Dias depois, numa conferência de imprensa realizada nos acampamentos de refugiados, Brahim Ghali abordou a necessidade de uma renegociação do acordo de cessar-fogo assinado sob os auspícios da ONU em 1991 porque, na sua opinião, deve adaptar-se «às novas circunstâncias». Ghali advertiu, no entanto, que o referendo de autodeterminação aceite na altura continua a ser uma linha vermelha para o povo saharauí. «É preciso lembrar que a nomeação do novo Enviado Pessoal da ONU não é um fim em si mesmo. O objectivo é a descolonização do Sahara Ocidental», destacou.
«Mas, ao mesmo tempo, o Conselho de Segurança não conseguiu impor o respeito pelo direito internacional. De Mistura chega num momento especial, marcado pela quebra do cessar-fogo e o regresso à guerra», declarou. «É um novo cenário que exige um novo tratamento por parte do Conselho de Segurança para reparar os erros desses 30 anos. O Conselho de Segurança deve estar ciente do perigo que a região enfrenta. Pensar no regresso ao antigo cenário será um grave erro de cálculo», alertou.
Esta preocupação está presente na carta que Ghali enviou a António Guterres: «a Frente POLISARIO condenou veementemente o silêncio cúmplice do Secretariado-geral das Nações Unidas e a sua decisão injustificada de não chamar as coisas pelos seus nomes e de não identificar o Estado ocupante marroquino como directo e único responsável pela violação do cessar-fogo. (…). Ao contrário da versão selectiva e limitada dos acontecimentos de 13 de Novembro de 2020, conforme referido no relatório (S / 2021/843, parágrafo 13 em particular), é inegável que foi a potência ocupante marroquina que violou o cessar-fogo de 1991 e os acordos militares relacionados, incluindo o Acordo Militar No. 1, (…).»
Esta mesma posição foi assumida dias mais tarde por Amar Belani, embaixador argelino encarregado da Questão do Sahara Ocidental e do Magrebe no Ministério dos Negócios Estrangeiros da Argélia, que em declarações à imprensa considerou «A súbita violação do cessar-fogo por Marrocos e a anexação ilegal da zona tampão de Guerguerat é uma violação flagrante dos acordos militares», pelo que «O Conselho de Segurança deve abordar mais do que nunca a questão do Sahara Ocidental de uma maneira clara e responsável, porque a questão está relacionada com a segurança e estabilidade da região». O embaixador lembrou que «A Argélia nunca se comprometeu a fazer parte da chamada mesa-redonda sobre o Sahara Ocidental. (…). Reafirmamos a nossa rejeição oficial e irreversível da chamada fórmula da mesa-redonda.»
Dias mais tarde o embaixador teve a oportunidade de conversar telefonicamente com o Vice-ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Sergueï Vershinin, tendo o Sahara Ocidental sido um dos temas abordados. «Os dois países estão mais do que nunca sintonizados no mesmo comprimento de onda» retrata o redactor do sítio TSA.
«Os dois homens tiveram "uma troca de pontos de vista" sobre o conflito no Sahara Ocidental "à luz da discussão do projecto de resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas que visa prorrogar o mandato da MINURSO”, indica o Ministério das Relações Exteriores da Rússia, citado pela agência Tass. (…).
«Apesar das negativas marroquinas, vários acontecimentos que se sucederam nas últimas semanas sugerem que as relações entre o reino e a Rússia estão muito tensas precisamente devido às posições desta última sobre a questão do Sahara Ocidental.
«No início de Outubro, Marrocos suspendeu todas as ligações aéreas com a Rússia, oficialmente por causa do ressurgimento da pandemia COVID-19 neste país. No dia 11 do mesmo mês, Moscovo decidiu adiar indefinidamente o fórum económico russo-árabe marcado para 28 de Outubro em Marrocos.»
No dia 29 de Outubro foram concluídos os debates sobre a MINURSO e aprovada a resolução que prorroga o seu mandato por mais um ano, ao mesmo tempo que define, politicamente, o conteúdo da missão do novo Enviado Pessoal do Secretário-geral, Staffan de Mistura. Importa desde já identificar algumas questões essenciais que foram alvo de posicionamentos diferentes e de polémica:
  • a linguagem diplomática da resolução: reitera-se a fórmula «para chegar a uma solução política realista, exequível, duradoura e mutuamente aceite, baseada no compromisso», que «proporcione a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental no contexto das disposições consistentes com os princípios e objectivos da Carta das Nações Unidas», insistindo várias vezes na necessidade de realismo e espírito de compromisso;
  • a pré-determinação do formato negocial: num processo que se quer «sem condições prévias», propõe-se o sistema de mesas-redondas em que os dois poderes – ocupante e ocupado, Marrocos e a Frente POLISARIO – são colocados em pé de igualdade com os seus dois vizinhos, a Argélia e a Mauritânia;
  • mais uma vez, a não inclusão da monitorização dos direitos humanos no mandato da MINURSO, que continua a ser a única missão de paz da ONU que exclui esta vertente, por oposição clara de Marrocos e da França.
Lendo as cinco páginas da resolução fica patente o seu alinhamento com as acções e teses marroquinas, em detrimento da reafirmação dos princípios do Direito Internacional e da própria ONU. 

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Boletim nº 101 - Outubro 2021

ONU: NOVA DINÂMICA PARA A QUESTÃO DO SAHARA OCIDENTAL?

Ao fim de uma longa espera as Nações Unidas conseguiram, finalmente, nomear um novo Enviado Pessoal do Secretário-geral para o processo de descolonização do Sahara Ocidental.

Staffan de Mistura

Em Maio de 2019 Horst Köhler, o Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU para a questão do Sahara Ocidental, apresentou a sua demissão do cargo invocando «razões de saúde». Ao longo deste tempo de espera foram várias as ocasiões em que responsáveis políticos insistiram junto de António Guterres sobre a urgência de encontrar um substituto e sobre o impacto negativo dessa demora na resolução do conflito. Finalmente em 15 de Setembro Guterres apresentou aos membros do Conselho de Segurança o nome proposto para Enviado Pessoal: Staffan de Mistura.
O sítio El Confidencial Saharaui relembra-nos o caminho percorrido. A Frente POLISARIO tinha dado o seu acordo ao nome proposto logo em Abril mas Marrocos, em Maio, rejeitou-o. «A rejeição marroquina levou o Secretário-geral da ONU a declarar, em Madrid, a 2 de Julho de 2021, que tinha apresentado 13 nomes mas sem ter conseguido o consenso das duas partes e apelou a ambas para acolherem o seu próximo candidato.
«Fontes bem informadas indicam que, após a rejeição marroquina, a administração de Joe Biden pressionou Marrocos por todos os meios para obrigar a reconsiderar a sua posição e aceitar a candidatura de Staffan de Mistura. Hoje confirma-se que a pressão dos EUA valeu a pena. (…).
«Staffan de Mistura é um diplomata italo-sueco. Nascido em 1947, filho de pai italiano e de mãe sueca, sob a sua aparência aristocrática, os seus fatos de bom corte, esconde-se um diplomata poliglota acostumado a missões delicadas (...).
«Durante mais de 40 anos serviu incansavelmente a ONU (...), e lutou contra regimes como os do Líbano, Somália, Sudão, Ruanda ou Balcãs. Os seus últimos cargos foram como enviado especial da ONU no Iraque de 2007 a 2009, no Afeganistão de 2010 a 2011 e na Síria de 2014 a 2018.
«De Mistura prioriza a "flexibilidade" e a "criatividade do mediador" quando a situação se torna crítica. A palavra "impossível" nunca fez parte do seu vocabulário.»
Os sinais de pressão da administração norte-americana puderam ser lidos no discurso de Biden na 76ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas agora realizada. A jornalista Teresa de Sousa chamou precisamente a atenção para isso quando lembrou que Biden «disse que era preciso (...) impedir que alguns países imponham a sua vontade a outros pela força ou pela intimidação e combater as violações grosseiras aos direitos humanos (...).»
1
Público, «O mundo não é só Europa», 22 de Setembro 2021, p. 3.
.
Em finais de Agosto foi também nomeado o diplomata russo Alexander Ivanko como novo chefe da MINURSO, em substituição do canadiano Colin Stewart cujo mandato tinha terminado em Junho passado. Tendo servido como Chefe de Gabinete da MINURSO desde 2009, Alexander Ivanko tem mais de 30 anos de experiência em assuntos internacionais, manutenção da paz e jornalismo, de acordo com uma declaração da ONU. Anteriormente foi porta-voz da ONU na Bósnia-Herzegovina (1994-1998) e Director de Informação Pública para a Missão da ONU no Kosovo (2006-2009). Ivanko iniciou a sua carreira no jornalismo, trabalhando como correspondente no Afeganistão e nos Estados Unidos da América para um jornal russo. Foi também conselheiro principal do Representante para a Liberdade dos Media da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (1998-2005). Tem um mestrado em jornalismo pela Universidade Estatal de Moscovo e é fluente em russo e inglês.
No dia 21 de Setembro o MNE marroquino Nasser Bourita recebeu em Rabat Alexander Ivanko, o que constituiu uma novidade pois há três anos que se recusava reunir com funcionários ou pessoal diplomático da MINURSO. «“Ivanko está familiarizado com as complexidades do conflito do Sahara Ocidental e os obstáculos que Marrocos coloca para bloquear qualquer solução pacífica. (...).»
Em entrevista à agência noticiosa marroquina MAP, em 17 de Setembro, comentada por El Confidencial Saharaui, o embaixador de Rabat junto das Nações Unidas, Omar Hilale «classificou a ocupação de um país estrangeiro como uma "disputa regional", qualificou a Frente POLISARIO como "um grupo armado argelino" e finalmente impôs condições para a participação em futuras negociações, exigindo que só fossem consideradas as resoluções a partir de 2007. (…). “De Mistura pode contar com a cooperação e o apoio inabaláveis de Marrocos na aplicação da sua facilitação para a solução deste litígio regional, de acordo com as resoluções do Conselho de Segurança desde 2007, em particular as resoluções 2440, 2468, 2494 e 2548, que consagraram o Processo de Mesa Redonda com os seus quatro participantes [Marrocos, Frente POLISARIO, Mauritânia e Argélia] e as suas modalidades. (…).” A encerrar a entrevista, o embaixador marroquino reconheceu que Marrocos não cumprirá com o direito internacional nem com as resoluções da ONU ou com o Acto Constitutivo da União Africana, pois que a única solução é a autonomia dentro de Marrocos.»
O Conselho de Segurança reunirá neste mês de Outubro para discutir o relatório do Secretário-geral e a prorrogação do mandato da MINURSO. Veremos qual será o impacto, se algum, que estas nomeações terão no desenrolar do processo de descolonização.

sábado, 4 de setembro de 2021

Boletim nº 100 - Setembro 2021

EDITORIAL

Cem números deste boletim representam 8 anos da solidariedade portuguesa para com o povo saharaui – desde Março de 2013 até este Setembro de 2021. A perseverança é para celebrar, mas o demasiado longo e injusto caminho que as e os saharauis se têm visto obrigados a percorrer na defesa dos seus direitos só nos pode indignar.

O esforço tem sido o de ir tentando compreender os acontecimentos, tanto do lado saharaui, como do lado do colonizador marroquino, assim como as suas repercussões regionais e as exigências políticas e éticas que colocam ao resto do mundo. Baseados na nossa própria experiência colonial, enquanto portugueses e no processo de Timor-Leste, em que nos empenhámos fortemente, vemos como um mesmo regime oprime dois povos vizinhos, que poderiam viver em paz e solidariamente. As aspirações expansionistas daqueles que detêm o poder político e económico nunca deram bons resultados. Provocam sofrimentos incontáveis e comprometem o futuro de gerações, a troco de efémeras conquistas.
A Europa, espaço geográfico onde nos inserimos, tem particulares responsabilidades, porque a Espanha colonizou o Sahara Ocidental e não assumiu a descolonização, porque a União Europeia escolheu dar força ao regime que governa Marrocos e ignorar o povo saharaui. A ONU, que em 1960 garantiu o fim do colonialismo e que desde 1991 mantém no terreno a Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental, criada no quadro de um acordo ratificado por todas as partes (incluindo Marrocos) de que o referendo deveria realizar-se a curto prazo, tem demonstrado, mais uma vez, como se submete à relação de forças mundial.
Nenhum destes obstáculos tem desmobilizado o povo saharaui. Num território ocupado e isolado do mundo pela força, as e os defensores dos direitos humanos – começando pelo direito à autodeterminação – não cessam de encontrar formas de demonstrar as suas convicções, sabendo que se expõem à repressão desproporcionada. Na frente de batalha, que se reacendeu em Novembro passado, a mensagem é de luta e persistência. Nos acampamentos de Tindouf, como reconheceu em Abril último Christopher Ross (ex-Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU para o Sahara Ocidental), «a Frente POLISARIO conseguiu organizar e prover as necessidades de um grande número de refugiados (...) nas últimas décadas». Na arena internacional e diplomática, a reivindicação dos princípios mantém-se firme.
É pela justiça que agimos. Enquanto cidadãs e cidadãos, fazendo parte de uma rede solidária com organizações activas em todos os continentes, não descansaremos enquanto o povo do Sahara Ocidental não puder exprimir a sua vontade, através de um referendo livre e justo.
Se é leitor/a do nosso boletim, faça-nos chegar a sua opinião sobre este meio de conhecer melhor o mundo em que vivemos, através da lente com que acompanhamos e nos solidarizamos com o processo de libertação saharaui (aapsaharao@gmail.com).

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Boletim nº 99 - Agosto 2021

SAHARA OCIDENTAL PRESENTE NA XIII CIMEIRA DA CPLP

Até agora, o Sahara Ocidental tinha estado ausente na Cimeira de Países de Língua Portuguesa (CPLP). Na Cimeira de Chefes de Estado e de Governo que celebrou em Luanda (16-17 de Julho) os 25 anos da Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa, os direitos do povo saharaui irromperam.

Colonização em causa

Os nove Estados que compõem a CPLP são muito diferentes e a trajectória da sua relação com a questão saharaui espelha as suas forças e fraquezas.
Portugal nunca reconheceu a RASD, mas não ousa desafiar abertamente o Direito Internacional. Como foi expresso pelo Gabinete do Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros de Portugal, em 16 de Fevereiro de 2021, em resposta a uma questão escrita entregue pelo PAN na Assembleia da República: «A posição portuguesa sobre o Sahara Ocidental assenta na defesa de uma solução justa, duradoura e mutuamente aceitável, que permita a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental, no quadro das negociações lideradas pela ONU, das resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas e dos princípios da Carta das Nações Unidas». É esta a retórica da Europa, e até dos Estados Unidos, cujo Sub-secretário de Estado para os Assuntos do Médio Oriente, Joey Hood, afirmou no comunicado final da sua recente visita oficial a Rabat (28 de Julho), depois de ter passado pela capital argelina: «No que diz respeito ao Sahara Ocidental, apoiamos um processo político credível liderado pelas Nações Unidas para estabilizar a situação e assegurar a cessação das hostilidades. Mantemos consultas com as partes sobre como melhor poderemos acabar com a violência e por fim chegar a um acordo duradouro». Nem mais uma palavra, nem uma alusão à decisão de Trump de reconhecer a soberania de Marrocos sobre o Sahara Ocidental, nos últimos dias do seu mandato.
O Brasil segue o padrão “ocidental”, mas a América Latina está dividida. Em 27 países que reconheceram a RASD, maioritariamente na década de 1980, 11 mantêm a mesma posição, sete dos quais acolhem embaixadas saharauis: Costa Rica, Cuba, Equador, México, Nicarágua, Panamá, Uruguai e Venezuela.
Todos os Estados africanos membros da CPLP reconheceram a RASD, entre 1976 e 1979. Mas os mais frágeis, a troco de contrapartidas significativas por parte de Marrocos, suspenderam ou cancelaram essa posição. No entanto, Angola e Moçambique estão entre os países africanos que continuam a reconhecer a RASD e, tal como a África do Sul, a Argélia, o Chade, a Etiópia, o Gana, o Quénia, a Nigéria, a Tanzânia, e o Uganda, acreditam embaixadores saharauis.
Timor Leste é um caso único, porque acompanhou a par e passo a luta saharaui: ambas as colónias inscritas na lista das Nações Unidas de “territórios não-autónomos” pendentes de descolonização na década de 1960, foram invadidas pelo respectivo recém-descolonizado vizinho no final de 1975, proclamaram unilateralmente o seu Estado independente e ambas lutaram pelo direito à autodeterminação. Em 1991, aquando da assinatura do cessar-fogo entre a Frente POLISARIO e Marrocos, que incluía o compromisso de realização de um referendo, pensou-se que o Sahara Ocidental daria o primeiro passo. Afinal, foi em Timor Leste que se concretizou a “consulta popular” que abriu as portas à afirmação da opção pela independência (1999), formalmente celebrada em 2002. Foi logo nessa altura que Díli reconheceu a RASD e se prontificou a receber uma embaixada saharaui, que se mantém até agora.
Enquanto estes três países – Timor Leste, Angola e Moçambique – apoiavam no interior da Cimeira os direitos do povo saharaui, 22 organizações da sociedade civil de seis Estados membros da CPLP, entre as quais três plataformas nacionais, exigiam o referendo de autodeterminação para a última colónia de África. «Que sejam os e as saharauis a escolher o seu futuro», terminava a Declaração subscrita por organizações de Angola, Brasil, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e Timor Leste.
«Com enorme respeito pela forma determinada e corajosa como o povo saharaui tem sobrevivido e tem continuado a lutar durante estas mais de quatro décadas, em condições extremas», as organizações afirmavam não aceitar «a contemporização de uma parte da comunidade internacional, e das Nações Unidas, com as práticas políticas, diplomáticas, económicas e de segurança da potência ocupante, o Reino de Marrocos», ao mesmo tempo que reconheciam «os governos que, mantendo-se fiéis ao princípio de autodeterminação de todos os países e povos coloniais, de acordo com a Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral da ONU, de 1960, têm demonstrado o seu apoio político, diplomático e económico às exigências da luta do povo do Sahara Ocidental e do seu legítimo representante, a Frente POLISARIO» e se regozijavam «com a progressiva tomada de consciência de organismos internacionais, empresas, instituições académicas e de cidadania que recusam a realpolitik de curto prazo e dão prioridade aos direitos dos povos saharaui e marroquino».
Por fim, reiteravam que «querem ser uma parte cada vez mais activa do movimento de solidariedade para com o povo do Sahara Ocidental e exigem justiça nas relações internacionais, porque ela é a base da paz e do desenvolvimento, acreditando que terminar o processo de descolonização inacabado do Sahara Ocidental é vital, e que o Direito Internacional aponta um caminho claro: como no caso de Timor-Leste, realize-se um referendo livre e justo, sob supervisão da ONU.»
Em 2012, o então embaixador de Marrocos junto das instituições da ONU em Genebra expressava uma grande preocupação, numa carta enviada ao seu governo, relativamente à pró-actividade do novo embaixador da República Árabe Saharaui Democrática (RASD) na União Africana, em Adis Abeba. Isto ocorreu no período que mediou entre a saída voluntária de Marrocos da OUA, em 1984 (em protesto pela admissão da RASD como membro de pleno direito da organização continental) e a sua admissão na União Africana (UA), a seu pedido, em 2017. Talvez neste Julho Rabat tenha tido um novo sobressalto, no contexto das múltiplas variáveis que explodem hoje no âmbito da sua política externa.

segunda-feira, 5 de julho de 2021

Boletim nº 98 - Julho 2021

UE – MARROCOS: GUERRAS DO ALECRIM E DA MANJERONA?

As relações entre Marrocos e a União Europeia — particularmente a Espanha e a Alemanha — não mostram ainda sinais de apaziguamento, embora ambas as partes reconheçam que só têm a ganhar com a ultrapassagem do actual “desentendimento”.

Relações em crise

Recapitulemos. No dia 18 de Abril Brahim Ghali, Secretário-geral da Frente POLISARIO e presidente da República Árabe Saharaui Democrática (RASD), foi internado numa clínica em Espanha a pedido do governo argelino para tratamento da covid19.
Rabat, que antes se tinha indisposto com Berlim por causa do Sahara Ocidental, desencadeou de imediato uma ofensiva contra as autoridades de Espanha. Um dos elementos mediaticamente mais marcantes foi a invasão em 17 de Maio do enclave de Ceuta por mais de 8.000 emigrantes marroquinos, reunindo homens, mulheres e crianças (cerca de 1.200 menores não acompanhados), que foram “encaminhados” pelas próprias autoridades marroquinas. Mas com este gesto transformaram um conflito com Espanha num conflito com a União Europeia, «um grave erro diplomático», segundo alguns observadores.
Bem sabemos que foi a UE que teceu as malhas em que agora ficou presa. Ao entregar à polícia marroquina a tarefa de controlar a passagem das suas fronteiras, a UE – e a Espanha em particular – ficou amarrada a um compromisso em que a questão ficou reduzida ao preço. Aliás, ainda o pico do litígio estava a decorrer e Madrid entregava a Rabat 30 milhões de euros para repor o controlo de fronteiras. Como escreveu Lucile Daumas: «A partir de 1995, com o lançamento do Processo de Barcelona e da Parceria Euro-Mediterrânica, a UE pressionou fortemente os países da margem sul para que assumissem a subcontratação do controlo das fronteiras. E a partir de 2006, data da primeira Cimeira Euro-Africana sobre Migrações, realizada em Rabat, esta imposição foi alargada a muitos países do continente africano.»
A degradação das condições sociais, económicas e políticas de Marrocos deveriam motivar as autoridades europeias a enfrentar a questão com uma outra lógica. O aumento do volume migratório nestes últimos anos é um bom indicador: 1.310 migrantes marroquinos chegaram a Espanha em 2016, em 2018 foram 10.816.
No dia 10 de Junho o Parlamento Europeu (PE) debruçou-se sobre o comportamento das autoridades marroquinas na “invasão de Ceuta”. Uma resolução de apoio ao Estado espanhol acordada pelos quatro principais grupos da câmara – Partido Popular, Socialistas, Liberais e Verdes – condenou a utilização por Marrocos da migração em geral e de menores em particular como instrumento de pressão política sobre a Espanha. A resolução foi aprovada por 397 votos a favor, 85 contra e 196 abstenções. Os eurodeputados defenderam que a pressão de Rabat não fará mudar a sua posição sobre o Sahara Ocidental, que «se baseia no pleno respeito pelo direito internacional, em conformidade com as resoluções do Conselho de Segurança da ONU e com o processo político liderado pela ONU para alcançar uma solução negociada justa, duradoura, pacífica e mutuamente aceitável para ambas as partes».
A Frente POLISARIO divulgou na ocasião um comunicado onde se congratula com a decisão tomada: «Nesta resolução, o respeito pelas convenções internacionais, a inviolabilidade das fronteiras internacionais e o respeito pela integridade dos Estados foram energicamente relembrados. Também neste espírito, a Frente POLISARIO espera que, com esta decisão, a União Europeia acabe definitivamente com a impunidade e a complacência para com Marrocos.»
Como diz o ditado popular, “o azar de uns é a sorte de outros”. Face a este diferendo, as autoridades de Rabat decidiram também fechar as comunicações marítimas com Espanha, pelo que o regresso dos migrantes marroquinos ao seu país durante o verão ficou bloqueado. Mantiveram-se, no entanto, as rotas a partir de portos em França e em Itália. Procurando reforçar as alternativas, os governantes marroquinos entabularam contactos com as autoridades portuguesas — como nos alertou o sítio blasfémias – para estudar a possibilidade de recorrerem ao porto de Portimão, «segundo anunciou num comunicado a Marinha Mercante, dependente do Ministério do Fomento [de Marrocos].»
«No passado domingo, 6 de Junho, o governo marroquino declarou cancelada a operação Paso del Estrecho ao excluir os portos espanhóis de Algeciras, Tarifa, Motril, Málaga, Almería e Ceuta das rotas marítimas deste verão, o que causou profundo mal-estar sobretudo no Região de Cádiz, onde se concentra o maior número de viajantes (…).
«O objectivo é transportar de barco 48 mil pessoas e 15 mil veículos por semana, chegando a um total de 650 mil pessoas e 180 mil veículos, o que é um quinto dos que viajam num ano normal.»
Ficamos a aguardar esclarecimentos das autoridades portuguesas sobre este negócio.

domingo, 6 de junho de 2021

Boletim nº 97 - Junho 2021

 

O SAHARA OCIDENTAL EM PEQUIM

Ao longo das várias décadas em que tem decorrido o processo de descolonização do Sahara Ocidental a China tem tido uma postura muito discreta. Apesar da sua participação na MINURSO e dos seus negócios com o ocupante.

Sahara Ocidental, uma questão secundária?

Mesmo quando começou a ser claro que competia com os Estados Unidos da América pela hegemonia global, nunca sobressaiu por tomar posições que, de alguma forma, se opunham ao discurso da potência cuja hegemonia desafiava.
Não que a sua política externa tivesse tido sempre este perfil. Nos anos sessenta, no auge da “Grande Revolução Cultural Proletária”, Pequim desencadeou campanhas “anti-imperialistas” e “anti-social-imperialistas” que envolviam o apoio aos movimentos de libertação, nomeadamente os africanos.
Como nos recorda
1
«China’s Balancing Act in the Western Sahara Conflict», Africana Studia nº 29, 1º semestre 2018, pp 145-156.
Hang Zhou, no início da década de 1970 a política externa chinesa entrou num processo de mudança que levou à retirada do apoio a estes movimentos.
Particularmente os seus programas de ajuda passaram a centrar-se nos «benefícios mútuos» e na «cooperação económica». Isto contribuiu, na opinião de Zhou, para o distanciamento da China relativamente à Frente POLISARIO, que se mantém até hoje. E cita a ausência de convite à República Árabe Saharaui Democrática para participar no Fórum de Cooperação China-África realizado em Pequim em Setembro de 2018.
Este distanciamento, porém, não tem impedido Pequim de, no quadro das Nações Unidas, se envolver activamente na dinâmica da MINURSO. Zhou refere que a China é «actualmente, de entre os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, o maior contribuidor de pessoal militar e o segundo contribuidor financeiro» da Missão. Recorda que por duas vezes o seu comando militar esteve entregue a oficiais superiores do Exército chinês: em 2007 ao Major General Zhao Jingmin e em Dezembro de 2016 ao Major General Wang Xiaojun. E chama a atenção para o facto de a diplomacia chinesa tentar conciliar o direito internacional com a realpolitik. «Não é possível abordar a actual posição da China relativamente ao Sahara Ocidental sem ter em conta as suas relações com Marrocos e a Argélia. (…) uma região – particularmente a ocupada pela POLISARIO – que aparece como economicamente pouco atractiva para os interesses de Pequim» e apresenta as estatísticas, retiradas do China Statistical yearbook (2012-2017), das relações comerciais China-Sahara Ocidental entre 2010 e 2017. Não nos é dito, porém, que universo é abrangido por estes dados. Em compensação, as ligações comerciais com Marrocos — o primeiro país do Magrebe a aderir, em Novembro de 2017, à iniciativa da ”Nova Rota da Seda” (“Belt and Road Initiative”) – têm vindo a crescer nos últimos anos, embora de uma forma ainda incipiente. Zhou cita o caso do Investimento Directo chinês (318 milhões de U$ dólares, valor de 2017), muito aquém dos três principais investidores estrangeiros: a França (21,8 mil milhões), os Emiratos Árabes Unidos (13,2 mil milhões) e a Espanha (5,24 mil milhões). Números que também nos ajudam a compreender a política destes países no processo de descolonização do Sahara Ocidental.
Mas a China tem tido o cuidado de manter laços com a Argélia, tendo-se tornado em 2013 o maior fornecedor do país, ultrapassando a França, sendo o seu 5º parceiro comercial no continente africano e o seu maior mercado para as empresas de construção chinesas naquele continente (em finais de 2017 haviam 61.491 trabalhadores chineses na Argélia, contra 627 em Marrocos).
Para Zhou, «na sua perspectiva de realpolitik, orientada pelos interesses, a China não vê na sua actual posição na questão do Sahara Ocidental qualquer problema nas suas relações, quer com Marrocos, quer com a Argélia.»
O sítio El Confidencial Saharaui abordou recentemente esta temática, sob o título: «A competição entre as potências globais está agora a ocorrer no Norte da África», um texto de Lehbib Abdelhay:
«Durante o seu mandato, o governo Trump colocou o conceito de competição estratégica com a República Popular da China (RPC), bem como com a Rússia, a um nível central da sua política externa, inscrevendo-o em vários documentos estratégicos. Essa abordagem foi também adoptada pelo novo governo Biden que parece ter reconhecido a necessidade de uma estratégia de "longo prazo" contra Pequim.
«Esta instabilidade tem naturalmente enormes implicações para os aliados da América, os quais têm todos relações com ambos os países. Nos últimos anos muitos deles tentaram equilibrar as duas relações, com vários graus de sucesso. Ainda assim, para alguns, esse equilíbrio está a tornar-se cada vez mais difícil de manter.
«Marrocos é um bom exemplo. Apesar dos seus laços políticos com Washington, o Reino tem tentado evitar envolver-se no que considera uma disputa estratégica bilateral entre os Estados Unidos e a China. As autoridades marroquinas às vezes até brincam, dizendo que Marrocos deveria reactivar o Movimento dos Não-Alinhados da era da Guerra Fria como uma forma de evitar a difícil escolha entre Washington e Pequim. A ansiedade de Rabat é especialmente compreensível, dado o crescente activismo económico da China em África, em geral, e os seus continuados investimentos nos últimos anos em Marrocos, em particular.
«No entanto, a estratégia económica mais ampla de Rabat está claramente a empurrá-lo na direcção oposta.
«Durante aproximadamente duas décadas, Marrocos aplicou uma abordagem comercial ambiciosa projectada para se transformar num centro de transbordo logístico chave para mercadorias que entram e saem da Europa, bem como um mediador de comércio em todo o continente africano. O produto dessa visão, concretizada pela primeira vez em 2002, é o porto e a zona industrial de Tanger-Med no norte do país.
«Localizada a cerca de 30 quilómetros a leste de Tânger, ao longo do Estreito de Gibraltar, Tanger-Med foi inaugurada em 2007 e desde então tornou-se um centro de comércio mundial. Hoje, Tanger-Med é o principal porto da África e do Mediterrâneo e o 24º porto de contentores do mundo.
«Actualmente opera quatro terminais independentes com capacidade para 7.000.000 de contentores/ano. Além disso, a construção de uma instalação adjacente, projectada para armazenar hidrocarbonetos para transbordo para a Europa Central e Oriental, está agora em andamento a cerca de 100 quilómetros a leste. Em particular, quando esse complexo, oficialmente conhecido como porto de Nador West Med, entrar em operação aproximadamente daqui a dois anos, terá o potencial de posicionar Marrocos como um antídoto potente para a profunda dependência actual da Europa da Rússia no que diz respeito às suas necessidades de energia.
«No entanto, Tanger-Med é muito mais do que um simples porto. É parte de uma "plataforma industrial" que se estende por 16 milhões de milhas quadradas e está projectada para integrar a cadeia de produção para as principais empresas globais adjacentes às rotas de exportação.
«A iniciativa foi classificada em segundo lugar de importância a nível mundial pelo Financial Times e abrange seis zonas distintas de actividade, incluindo uma zona de livre comércio, uma "cidade do automóvel" (dedicada à fabricação de peças) e a maior fábrica de automóveis de África, propriedade do fabricante francês Renault.
«Este empreendimento económico avassalador promete trazer grandes quantidades de novos negócios e investimentos a Marrocos nos próximos anos. De facto, as autoridades portuárias prevêem um aumento de novas actividades à medida que a pandemia diminuir e o comércio mundial recuperar.
«No entanto, essa mesma dinâmica pode tornar-se uma faca de dois gumes para Rabat. Nos Estados Unidos, o governo federal, o Congresso e o público em geral estão a prestar cada vez mais atenção ao desafio económico, político e estratégico representado pela China. Essa abordagem, por sua vez, foi ampliada pelo curso da pandemia do coronavírus, que expôs a dependência profunda (e doentia) dos Estados Unidos relativamente à China no quadro do comércio global e de bens vitais. À medida que os EUA começam a considerar seriamente "desvincular" as suas cadeias de abastecimentos globais da China, instalações versáteis como o Tanger-Med serão um apelo inevitável. Tudo isso tornará cada vez mais difícil para o governo marroquino ficar fora nos próximos anos da crescente competição global entre os Estados Unidos e a República Popular da China. Os funcionários de Rabat têm de entender essa nova dinâmica e preparar-se para ela.
«Por sua vez a Argélia, o seu rival histórico desde a “guerra da areia” em 1966, já tem um ambicioso projecto em andamento para construir o maior porto do Mediterrâneo, El Hamdania, em Tipaza.
«A Argélia quer reconquistar o seu lugar no sector marítimo a nível do Mediterrâneo e da África. No entanto, até agora, a maioria dos seus portos está inserida em centros urbanos, o que limita qualquer possibilidade de expansão da infra-estrutura.
«O projecto portuário de El Hamdania Center, na cidade costeira de Cherchell, província de Tipaza, na Argélia, já está em andamento. Durante o Conselho de Ministros de 28 de Fevereiro, o presidente argelino, Abdelmadjid Tebboune, fixou um prazo máximo de dois meses para se tomarem todas as providências necessárias ao efectivo início das obras.
«O megaprojecto, cujas obras estão previstas para sete anos, será financiado pelo Fundo Nacional de Investimentos (FNI) e um empréstimo de longo prazo do Exim Bank of China. Inclui três fases: o porto de águas profundas, as áreas de logística e industrial, bem como os acessos por rodovia e ferrovia. O seu custo está estimado em 3.300 milhões de U$ dólares.
«Considerada uma das “infra-estruturas marítimas mais importantes da região do Mediterrâneo e do continente africano”, este projecto teve início sob o mandato do ex-Presidente Abdelaziz Bouteflika.
«Em virtude de um memorando de entendimento concluído em 17 de Janeiro de 2016, a sua implementação foi confiada a uma joint venture constituída sob a lei argelina composta pelo Public Port Services Group e duas empresas chinesas, CSCEC (China State Construction Engineering Corporation) e CHEC (China Harbor Engineering Company). Esta joint venture, regida pela regra 51/49%, é responsável pela realização dos estudos, construção, operação e gestão desta infra-estrutura portuária.
«Para navios com um calado de 20 metros, este porto de águas profundas será construído não só para o comércio marítimo nacional, mas também como centro de comércio regional. Terá 23 docas com capacidade de processamento de 6,5 milhões de contentores e 25,7 milhões de toneladas/ano de carga geral.»
Dias depois voltaram ao tema, agora sob o título «A China considera a questão do Sahara Ocidental como uma questão completamente secundária», de onde seleccionámos os seguintes excertos:
«(...). Na sequência da intervenção, a 13 de Novembro, das Forças Armadas Reais de Marrocos (FAR) para assumir o controlo da passagem fronteiriça de El Guerguerat, o presidente da República Árabe Sarauí Democrática, Brahim Ghali, assinou um decreto que pôs fim ao compromisso da RASD com o acordo de cessar-fogo assinado em 1991. Situação que corre o risco de provocar uma conflagração generalizada nesta região, extremamente sensível para a estabilidade e segurança do Norte de África e do Sahel.
«Neste contexto, pode a China, que reforça cada vez mais as suas relações económicas e estratégicas com a Argélia e Marrocos, nomeadamente através do seu projecto da ”Nova Rota da Seda”, desempenhar um papel na união destes dois países com o objectivo de encontrar uma solução viável e aceitável para todas as partes no conflito no Sahara Ocidental?
«Em duas entrevistas concedidas à agência Sputnik, o ex-ministro argelino da Indústria e Comércio, Noureddine Boukrouh, também analista político com obra publicada, juntamente com o ex-coronel dos serviços de informação argelinos, Abdelhamid Larbi Chérif, afirmam que “Pequim não pode desempenhar esse papel” por várias razões.
«“A famosa profecia atribuída a Napoleão I, que alguns historiadores localizaram em 1816 em Santa Helena: 'Que a China durma, porque quando ela acordar o mundo tremerá', está a cumprir-se diante dos nossos olhos", lembra Boukrouh, sublinhando que "A China acordou, aqui estamos nós!"
«“A China ocupou o seu lugar no mundo moderno. É uma civilização milenar que tem contribuído para a marcha da humanidade ao longo da história e que muito tem feito em termos de civilização, cultura e descobertas”, continua, argumentando que “hoje, está a competir pelo lugar de primeira superpotência do mundo, à frente dos Estados Unidos.”
«Na mesma linha, o ex-ministro lembra que no Norte de África há dois países com um potencial significativo em termos de riquezas naturais e demográficas: a Argélia e Marrocos. "Como na Ásia, a China, que está a expandir-se em África até militarmente, como mostra a sua base no Djibouti, vendeu nos últimos anos muitas armas do mesmo tipo a Marrocos e à Argélia, simultaneamente."
«Noureddine Boukrouh acrescenta que “a China não tem escrúpulos, não se preocupa com questões de direitos humanos ou o direito dos povos à autodeterminação”.
«”Segue a política dos seus interesses e não busca a defesa de ideais universais, que não integram a sua visão do mundo e que considera prejudiciais à sua cultura e ao seu modo de conceber a política e as relações internacionais”, salientando que “está numa postura que serve a sua posição de Império do Meio”.
«Como apoio à sua visão, Boukrouh cita a abordagem diplomática da China no conflito israelo-palestiniano. "Como parte da sua rivalidade com os Estados Unidos, quando este saiu da região do Médio-Oriente, a China entrou com todo o seu peso e ofereceu-se para acolher Israel e a Autoridade Palestiniana para negociações de paz."
«“Como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, a China nunca votou contra Israel. Pelo contrário, sempre teve boas relações com o país, vende-lhe armas como vende ao seu pior inimigo, o Irão”, afirma: "fará exactamente o mesmo no Magrebe no que diz respeito à questão do conflito no Sahara Ocidental." Segundo ele, “os chineses consideram este conflito uma questão completamente secundária”.
«Por fim, Noureddine Boukrouh diz que “os chineses instalar-se-ão em Marrocos e na Argélia, mesmo no Sahara Ocidental, se a Frente POLISARIO os convidar, como parte de uma estratégia para conquistar novos espaços económicos e estratégicos vitais, sem que a questão da resolução do conflito figure na sua agenda.''
«“No contexto da grave crise económica e social que assola o mundo, agravada pelo impacto da pandemia de Covid-19, a Argélia e Marrocos precisam da China, que está disposta a emprestar dinheiro e a investir em muitos projectos estruturais [...]. É a sua forma de ver as coisas que se vai impor a estes países”, conclui. (...).»

sábado, 8 de maio de 2021

Boletim nº 96 - Maio 2021

 

CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU: «A OPÇÃO PELA INACÇÃO»

O Conselho de Segurança das Nações Unidas, sob a presidência do Vietname, reuniu à porta fechada no passado dia 21 de Abril para abordar o processo de descolonização do Sahara Ocidental. Nada buliu na quieta melancolia dos caminhos, como diria o poeta Augusto Gil.

Agir? Olhar para o lado?

A nomeação de um novo Enviado Pessoal do Secretário-geral (EPSG) para a questão do Sahara Ocidental terá sido um dos temas centrais da reunião. Há dois anos que se espera que António Guterres encontre um substituto para o ex-presidente da República da Alemanha, Horst Köhler, que em Maio de 2019 apresentou a demissão, invocando razões de saúde.
Vários têm sido os Estados a manifestar a sua preocupação pela demora nesta substituição. Um dos últimos a expressá-la, em 29 de Março, foi o novo Secretário de Estado norte-americano Antony Blinken que se encontrou virtualmente com Guterres e o «exortou a acelerar a nomeação de um novo Enviado (…), sublinhando o apoio dos EUA ao processo de negociações políticas entre» Marrocos e a Frente POLISARIO.
De vez em quando surgem nomes de potenciais candidatos ao cargo. O MNE da Argélia, Sabri Boukadoum, alertou mesmo para o facto de que «pelo menos dez candidatos (…) foram todos recusados por uma das duas partes no conflito.» Dias depois deste desabafo a Frente POLISARIO esclareceu a sua posição:
«Até agora, quatro enviados pessoais e quinze representantes especiais do Secretário-geral da ONU estiveram envolvidos no plano de paz da ONU no Sahara Ocidental. No entanto, Marrocos conseguiu, com impunidade, transformar os seus esforços de mediação em missões impossíveis por meio da sua procrastinação e obstrucionismo deliberados. (…).
«Quando o Secretário-geral conseguiu nomear como seu EPSG para o Sahara Ocidental o ex-presidente alemão Horst Köhler em Agosto de 2017, seis anos depois da paralisação das negociações directas entre os dois lados, o obstrucionismo de Marrocos encaminhou os esforços do presidente Köhler para uma missão impossível que o conduziu a apresentar a sua renúncia em Maio de 2019. (…).
«Para concluir, a Frente POLISARIO sublinha que a nomeação de um novo EPSG para o Sahara Ocidental, que deve ser imparcial, independente, competente para cumprir a sua missão com integridade, não é um fim em si mesmo. Pelo contrário, é apenas um meio para fazer avançar o processo de paz no sentido de alcançar o seu objectivo final, nomeadamente o exercício pelo povo saharauí do seu direito inalienável e inegociável à autodeterminação e independência.»
Um dos nomes que foi ventilado foi o de Luís Amado, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros do Primeiro-ministro António Guterres (as voltas que o mundo dá!) que nessa função se deslocou a Rabat em Setembro de 2006 no âmbito da preparação da IX cimeira luso-marroquina. Segundo a fonte que estamos a citar, «Os dois ministros [o de Marrocos e o de Portugal] vão ainda discutir questões da actualidade internacional como a situação no Médio Oriente, designadamente nos territórios palestinianos e no Líbano, a situação no Iraque e o conflito em torno do programa nuclear do Irão.» E o problema do Sahara Ocidental? «Questionado sobre a integração regional no Magrebe, comprometida pelo diferendo entre Marrocos e a Argélia devido ao conflito no Saara Ocidental, Luís Amado defendeu a necessidade de se "desenvolver um quadro de relacionamento entre a UE e aquela região, que permita ultrapassar ou pelo menos fazer baixar algumas tensões que existem".» Não nos surpreende que o currículo do ex-MNE tenha sido olhado com suspeição por parte da Frente POLISARIO, como noticiou o Expresso, que «rejeitou o nome do português Luís Amado para representante das Nações Unidas na mediação do conflito no Saara Ocidental, posição que se encontra desocupada há quase dois anos, avançou esta quinta-feira a agência France-Press (AFP).»
Outro tema central que se acreditava fazer parte da agenda era o recomeço das hostilidades, assunto que para Rabat é um “não-assunto”. No seu relatório prévio o Secretário-geral reconheceu e manifestou a sua preocupação pelos confrontos militares actualmente em curso e disse que a MINURSO irá exercer os seus esforços para a cessação das hostilidades. O Secretário-geral salientou que «a missão da MINURSO enfrenta agora grandes desafios após o recomeço da guerra e preocupações de segurança, especialmente em áreas próximas do muro militar».
Nas vésperas da reunião do Conselho de Segurança, o Ministério dos Negócios Estrangeiros saharaui divulgou um comunicado onde faz o ponto de situação do conflito.
«A República Saharaui considera que não é justo nem legal punir o povo saharaui, impedindo-o de gozar da sua liberdade, dos seus direitos inalienáveis e de ter o seu lugar entre os povos e nações e isto após trinta anos de cooperação activa e positiva com as Nações Unidas no quadro das suas responsabilidades e dos seus esforços para descolonizar o Sahara Ocidental, o último bastião do colonialismo em África.» E mais à frente: «Perante a obstrução marroquina ao referendo, da qual todos sabem a verdadeira razão que reside na convicção da outra parte de que lhe é impossível vencer, o Conselho de Segurança não tem, portanto, qualquer possibilidade de se eximir às suas responsabilidades. Consequentemente, a legalidade internacional na matéria deve ser aplicada sem demora e deve ser aberta a via para que o Estado saharaui ocupe o seu lugar natural entre os países ao nível das Nações Unidas, como já acontece ao nível da União Africana. É tempo de o Reino de Marrocos avançar para a paz com a República Saharaui e também com todos os seus vizinhos, de abandonar a política de ocupação e expansão, de agressão e chantagem. O Reino de Marrocos deve deixar de exportar as suas crises internas criando inimigos imaginários para ganhar tempo na tentativa condenada ao fracasso de legitimar a sua ocupação, porque o preço de tal política não trará a Marrocos senão mais pobreza, analfabetismo, subdesenvolvimento e privação.»
E a concluir:
«A consolidação da soberania da República Saharaui através da ocupação do lugar que naturalmente lhe pertence no seio das Nações Unidas, (...), é agora necessária em resposta à posição do ocupante marroquino que recusa o referendo de autodeterminação e é também essencial como condição necessária para garantir uma paz justa e definitiva que ofereça todas as condições de estabilidade, integração e segurança na região. Segurança esta constantemente ameaçada pela política do Reino de Marrocos que visa usar a droga como arma, empobrecer os jovens, excluí-los, empurrá-los para a imigração ilegal ou para as fileiras de grupos terroristas, como o confirmam todos os relatórios internacionais.»
Não foi tornada pública qualquer decisão desta reunião do Conselho de Segurança. Sidi M. Omar, representante da Frente POLISARIO nas Nações Unidas, lamentou que o Conselho tenha optado «pela inacção», não apresentando «resultados substantivos».

quinta-feira, 8 de abril de 2021

Boletim nº 95 - Abril 2021

A CORAGEM DE AFRONTAR A REPRESSÃO SILENCIADA

A repressão exercida pelo regime marroquino sobre a população saharaui extremou-se desde Novembro do ano passado. As denúncias desta situação e os apelos à intervenção, quer das Nações Unidas, quer de organismos internacionais como a Cruz Vermelha, têm-se multiplicado. Com pouco eco.

Sultana Jaya sob ameaça (espacioseuropeos.com)

A AAPSO foi uma das organizações que chamou a atenção para a situação que se vive nos territórios ocupados do Sahara Ocidental. Preocupação que, neste momento, não se restringe às organizações da sociedade civil. O Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido deu conta que o governo britânico acompanha a situação, «especificamente a relacionada com a defensora dos direitos humanos saharauí, Sultana Sid Ibrahim Jaya».
O diário El Pais publicou um artigo do seu correspondente em Rabat, Francisco Peregil, onde é abordada a situação dos que enfrentam o regime marroquino e as consequências dessa coragem. E nesse combate contra este regime retrógrado estão unidos marroquinos e saharauis. Traduzimo-lo a seguir na íntegra.
«Activistas saharauis denunciam um aumento da "repressão" por parte das autoridades marroquinas no Sahara Ocidental desde 13 de Novembro. Nesse dia houve uma troca de tiros entre o exército marroquino e membros da Frente POLISARIO na zona saharaui de El Guerguerat que quebrou o cessar-fogo estabelecido por ambas as partes desde 1991. A Frente POLISARIO decretou o estado de guerra e, desde então, vários activistas alertam para a vigilância de agentes marroquinos sobre as suas casas e a limitação dos seus movimentos no Sahara Ocidental.
A organização internacional Human Rights Watch (HRW) investigou o caso de Sultana Jaya, uma activista de 40 anos cuja casa na cidade de Bojador, no Sahara Ocidental, está sob vigilância pelas autoridades marroquinas há mais de três meses, de acordo com um comunicado da ONG divulgado no último dia 5. Isso indica que as forças da ordem impediram “sem qualquer justificação” que várias pessoas a visitassem na sua casa. Esta vigilância e a “violação do direito de associação na própria casa”, segundo a HRW, são “emblemáticas da intolerância” das autoridades de Rabat aos apelos à autodeterminação no Sahara Ocidental. A HRW solicitou informações sobre o caso à Delegação Interministerial de Direitos Humanos (DIDH) e este órgão respondeu por carta que "nem ela nem a sua família estão a ser submetidas a qualquer tipo de assédio ou vigilância".
Jaya disse a este jornal numa conversa telefónica no dia 5 que a sua casa, onde mora com a irmã, a mãe e outro activista, está sob vigilância desde 19 de Novembro de 2020. “Tornou-se numa prisão onde ninguém pode entrar ou sair”. Garante que mais de 20 pessoas a vigiam regularmente, com e sem uniforme. "Estamos em prisão domiciliária há 108 dias", disse ela. “Cada vez que tentamos sair ou documentar o que estamos a sofrer, somos vítimas de agressões físicas, humilhações e insultos”. Jaya afirma também sofrer uma “feroz campanha de difamação” nas redes sociais e nos meios de comunicação do Estado marroquino.
A HRW indica que, desde 19 de Novembro, Jaya deixou a sua casa "menos de uma dezena de vezes", para andar alguns metros, filmar membros das forças de segurança com o seu telemóvel e depois voltar para casa. Especifica que apenas uma vez se aventurou a caminhar 150 metros além de sua casa. Segundo contou a activista à organização, vários agentes cercaram-na naquele momento. “Não me prenderam nem me tocaram, mas senti-me ameaçada, temi pela minha vida e voltei para casa”, disse ela.
“PRESSIONAR” OS OPOSITORES
Eric Goldstein, responsável da HRW para o Médio Oriente e o Norte de África, destacou no referido comunicado que nada justifica o bloqueio de uma casa sem base legal. Para Goldstein, a vigilância sobre Jaya visa pressionar, "psicologicamente também", aqueles que se opõem à soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental.
O activista saharaui El Mami Amar Salem, de 42 anos, contou-nos numa conversa telefónica a partir da cidade de Dakhla, no sul do Sahara Ocidental, que no dia 18 de Fevereiro foi impedido de viajar para o Bojador, a três horas e meia de carro, por causa da polícia que o deteve com outro amigo. “Queríamos visitar Sultana [Jaya] para lhe mostrar a nossa solidariedade. A polícia já nos esperava no primeiro controle da cidade, acompanhada por agentes dos serviços de segurança. Pediram-nos a documentação do carro. E depois de duas horas e meia de espera, devolveram a documentação e impediram-nos de seguir”.
Um dos porta-vozes do grupo de jornalistas saharauis Equipe Media, que pede o anonimato, indica de El Aaiún que desde 13 de Novembro passado, "quando Marrocos quebrou o cessar-fogo", uma vintena de saharauis viram as suas casas serem colocadas sob vigilância durante dois meses. Todos eles residem em El Aaiún, a capital administrativa do Sahara Ocidental. “Entre eles encontrava-se a activista Aminatu Haidar. Agora, esses activistas continuam a ser vigiados, mas não por 24 horas; não como a Sultana”, diz a fonte citada.
A activista El Ghalia Djimi, de 60 anos, tem uma mensagem em espanhol no seu perfil no WhatsApp que diz: “Somos todos Sultana Jaya”. De El Aaiún, garante por telefone que várias viaturas policiais rodearam a sua casa no dia 6. Refere ainda que na passada segunda-feira, Dia Internacional da Mulher, em que várias mulheres saharauis se manifestaram em El Aaiún, foi seguida por uma motocicleta das oito da manhã até às duas da tarde.
Djimi afirma ter estado debaixo de "vigilância e perseguição policial" durante três meses, desde que a 20 de Setembro participou na criação da Instância Saharaui contra a Ocupação Marroquina [ISACOM]. “Tenho vídeos e matrículas dos carros que me seguiram. Deixaram de me perseguir desde 25 de Dezembro. Mas daquele dia em diante abriram um café ao lado da minha casa e os informadores marroquinos aparecem todas as tardes a fingir que estão a jogar. Reconhecemo-los porque, embora usem roupas civis, comunicam via rádio”.
Djimi explica que, se os activistas saharauis não reivindicam a autodeterminação, a situação pode parecer perfeita, “apesar da presença militar e policial nas ruas”. “Mas, assim que uma pessoa tenta falar, já sabe que a discriminação, a intimidação e a marginalização económica a aguarda. É o que acontece com Sultana e a sua família. Sou uma defensora pacífica dos direitos humanos e da autodeterminação do Sahara. Marrocos não deve obrigar-nos a aceitar a ocupação. Tem que ter a coragem de convencer os saharauís da sua presença no Sahara ocupado”.
A organização estatal Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), equivalente em alguns aspectos à instituição espanhola do Provedor de Justiça, foi consultada por este jornal sobre a situação no Sahara Ocidental a partir de 13 de Novembro. Uma porta-voz referiu-se a um breve comunicado que o CNDH publicou depois de Sultana Jaya ter denunciado nas redes sociais ter sido ferida numa vista em Fevereiro devido a uma pedra atirada por um polícia. O comunicado conclui dizendo que, devido às "versões contraditórias" sobre o ocorrido, o CNDH enviou uma carta ao Ministério Público na qual recomendava a realização de uma investigação sobre os factos denunciados. Este jornal tentou, sem sucesso, obter a versão das autoridades marroquinas através dos Ministérios do Interior e da Comunicação.
PROTESTO A FAVOR DE UM INTELECTUAL MARROQUINO PRESO DISPERSO PELA POLÍCIA
Polícias marroquinos dispersaram um protesto em frente ao Parlamento em Rabat na tarde de sexta-feira [5 de Março], no qual cerca de 50 manifestantes pediram a libertação do historiador e activista marroquino Maati Monjib, de 60 anos. Abdellatif El Hamamouchi, presidente da comissão de apoio ao intelectual, disse a este jornal que várias pessoas ficaram feridas. "Entre elas, eu, numa perna", disse.
Monjib está em greve de fome desde quinta-feira, 4 de Março, com o objectivo de lançar um "apelo de socorro" à opinião pública face à "perseguição e injustiça" que declara sofrer do Estado, de acordo com uma carta divulgada pelos seus advogados.
O historiador está preso desde 29 de Dezembro, acusado de "fraude e atentado à segurança do Estado". Monjib declara-se inocente e ressalta que a verdadeira causa da sua prisão são os seus artigos de crítica ao Estado.
A dispersão do protesto pelas forças da ordem foi filmada e divulgada nas redes sociais. Monjib cumprirá 11 dias de greve de fome nesta segunda-feira [15 de Março]. "Receamos pela sua vida", disse Hamamouchi. “Ele é diabético e sofre de arritmias cardíacas. Já perdeu cinco quilos. E disse aos seus advogados que não vai desistir da greve de fome".»
Face ao movimento internacional de solidariedade o historiador marroquino acabou por ser libertado no passado dia 24 de Março. Foi, entretanto, para a Alemanha por motivos de saúde onde confirmou à comunicação social as perseguições que sofreu por parte das autoridades de Rabat.

sexta-feira, 5 de março de 2021

Boletim nº 94 - Março 2021

 

LUTA E SOLIDARIEDADE: OS DIREITOS HUMANOS NO SAHARA OCIDENTAL

O recomeço da guerra amplificou a voz saharauí, dentro e fora de portas. Nas autoridades de ocupação marroquinas cresceu a exasperação. A escalada de violações dos direitos humanos fortaleceu a determinação dos activistas, que alimentam a solidariedade internacional com um fluxo contínuo de informação, apesar dos riscos. Um ciclo que só será quebrado com a realização do referendo de autodeterminação.

Mohamed Lamin Haddi, em greve de fome desde 13 Janeiro
A situação não é nova, nem as técnicas usadas, mas o contexto tem as suas diferenças. A pandemia dá pretexto para isolar ainda mais a população saharauí na sua própria terra, se isso é possível, já que há anos está fechada a jornalistas, políticos idóneos, advogados/as e organizações de direitos humanos, mas aberta a empresas, homens e mulheres de negócios e políticos cúmplices do Reino. Permite também acrescentar uma nova acusação gratuita às habituais ligadas a posse de droga e insultos à autoridade: a não observação das regras sanitárias, ou a exigência do seu cumprimento rígido e absurdo, enquanto nas cadeias marroquinas os saharauis vivem em condições sanitárias degradantes e não têm acesso a assistência médica.
Neste panorama, quem pode proteger a população? É o Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV), «uma organização imparcial, neutra e independente, cuja missão exclusivamente humanitária é proteger a vida e a dignidade das vítimas de conflitos armados e outras situações de violência, assim como prestar-lhes assistência. O CICV também se esforça para evitar o sofrimento por meio da promoção e do fortalecimento do direito e dos princípios humanitários universais.» A sua base legal é a seguinte: «As quatro Convenções de Genebra e o Protocolo Adicional I conferem ao CICV um mandato específico para agir no caso de um conflito armado internacional. Em particular, o CICV tem o direito de visitar prisioneiros de guerra e internados civis. As Convenções também outorgam ao CICV um amplo direito de iniciativa.»
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https://www.icrc.org/pt/o-mandato-e-missao-do-cicv
Nos últimos meses têm-se multiplicado os já anteriores apelos para que o CICV visite os presos políticos e envie com urgência uma missão ao Sahara Ocidental.
Começando pelas organizações saharauís (obviamente não legalizadas, mas activas), que operam a partir do interior do território: a 22 de Janeiro, a Comissão Nacional Saharaui dos Direitos Humanos (CONASADH) publicou um comunicado insistindo no cumprimento da missão do CICV; o Colectivo de Defensores Saharauis dos Direitos Humanos (CODESA) divulgou a 16 de Fevereiro uma Carta Aberta dirigida ao CICV, subscrita por 150 eleitos/as do PE e de vários parlamentos nacionais, 177 organizações de 41 países e um vasto leque de personalidades de muitas nacionalidades; a Instância Saharaui contra a Ocupação Marroquina (ISACOM), através da sua Presidente, Aminetou Haidar, dirigiu-se ao Secretário-geral da ONU e ao recém-eleito Presidente dos EUA; o Movimento dos Prisioneiros Políticos Saharauis (MPPS) fez igualmente ouvir a sua voz, assim como a Fundação Nushatta para os Meios de Comunicação Social e os Direitos Humanos.
E continuando por entidades internacionais, entre outras: a Coordenadora Europeia dos Comités de Apoio ao Povo Saharauí (EUCOCO) mandou mais uma Carta Aberta ao CICV a 16 de Fevereiro (no seguimento de uma outra datada de Setembro, subscrita por 42 organizações de diferentes países europeus); 19 eurodeputados/as dos grupos “A Esquerda”, “Verdes” e “Socialistas e Democratas” (entre os quais Marisa Matias, José Gusmão, João Ferreira, Sandra Pereira e Francisco Guerreiro) escreveram a 22 de Fevereiro ao Alto Representante para a Política Externa da UE, Josep Borrell; o Intergrupo do Parlamento Europeu “Paz para o Sahara Ocidental” fez o mesmo no dia 26 de Fevereiro.
O silêncio é ensurdecedor. Até agora, Marrocos tem conseguido exercer a suficiente pressão e as convenientes ameaças sobre esta «organização imparcial, neutra e independente» com «um amplo direito de iniciativa». Há duas questões que é importante esclarecer, porque elas são utilizadas para, falsamente, explicar as razões desta inacção.
A primeira é que o governo marroquino tem tido o cuidado de não reconhecer que existe desde 13 de Novembro último uma situação de guerra (quando as suas próprias forças quebraram o cessar-fogo prevalecente desde 1991). Isto apesar de provas insuspeitas como, por exemplo, dois avisos do espaço aéreo das Canárias - o primeiro em 27 Novembro e o último em 8 Fevereiro - que recomenda, no último, o não sobrevoo do território do Sahara Ocidental devido ao conflito em curso, e uma advertência da GardaWorld (a 6ª maior empresa de segurança do mundo) dirigida aos seus clientes que operam do Sahara Ocidental para que tomem as maiores precauções ante a escalada do conflito.
No entanto, o Artigo 2º da IV Convenção de Genebra diz que «a presente Convenção será aplicada em caso de guerra declarada ou de qualquer outro conflito armado que possa surgir entre duas ou mais das Altas Partes contratantes, mesmo se o estado de guerra não for reconhecido por uma delas.» O Reino de Marrocos assinou este convénio a 26 de Julho de 1956.
A segunda é que do ponto de vista prático não há “saharauís”, só “marroquinos”, porque todas as pessoas que habitam o Sahara Ocidental são obrigadas a ter documentos oficiais marroquinos. Mas a mesma Convenção é clara quando estipula no seu Artigo 4º: «São protegidas pela Convenção as pessoas que, num dado momento e de qualquer forma, se encontrem, em caso de conflito ou ocupação, em poder de uma Parte no conflito ou de uma Potência ocupante de que não sejam súbditos.»
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https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/convIVgenebra.pdf
Os casos concretos de civis ameaçados, agredidos e em perigo são muitos e constantes, a maior parte não chega a ser conhecida em tempo útil, mas duas situações têm ganho maior atenção: as condições em que se encontram os presos políticos, e as represálias dirigidas a activistas, jornalistas e defensores dos direitos humanos. Alguns exemplos:
  • Mohamed Lamin Haddi, jornalista que cobriu o Acampamento da Dignidade de Gdeim Izik, em 2010, foi condenado a 25 anos de prisão e está detido na cadeia de Tiflet 2, em Marrocos. Iniciou, a 13 de Janeiro, uma greve de fome para denunciar os maus-tratos de que tem sido alvo, incluindo três anos de isolamento, a falta de alimentação adequada, a ausência de luz na sua cela e a negação de assistência médica. Foi ameaçado pelo próprio director da prisão e por uma enfermeira. A sua saúde vai piorando, a mobilidade está reduzida, tem dificuldade em falar e teme-se pela sua vida. A família tem sido impedida de o visitar. Diversas organizações internacionais têm-se mobilizado para exigir a sua segurança e requerer, enquanto prisioneiro de consciência, a sua imediata libertação, como aconteceu no dia 22 de Fevereiro com o Observatório para a Protecção dos Direitos Humanos, programa conjunto da Organização Mundial Contra a Tortura (OMCT) e da Federação Internacional dos Direitos Humanos (FIDH).
  • o Grupo de Trabalho da ONU sobre Detenção Arbitrária apelou publicamente, a 2 de Fevereiro, à libertação imediata do jornalista saharaui Walid Salek El Batal, do grupo de militantes do Smara News, que foi interceptado numa viatura por agentes marroquinos à paisana, em Smara, em Junho de 2019 e condenado a seis anos de prisão, depois reduzidos para dois. Foi violentamente espancado e pontapeado pela polícia, numa cena gravada por um cidadão anónimo, que o serviço de verificação do jornal norte-americano The Washington Post confirmou como verdadeira e que foi denunciada por inúmeras organizações de direitos humanos, como a Human Rights Watch.
  • o jovem Mohamed Salem Fahim desapareceu misteriosamente no dia 15 de Janeiro e, apesar das autoridades de ocupação negarem conhecer o seu paradeiro, a família foi encontrar o seu corpo em adiantado estado de decomposição 22 dias depois, na morgue do hospital de El Aíun, capital do Sahara ocupado.
  • Sultana Sid Brahim Abed, conhecida como Sultana Khaya, entrou em greve de fome no dia 21 de Fevereiro, depois de lhe terem roubado o telefone e de, mais uma vez, ter sido agredida pelas forças de segurança marroquinas que há três meses cercam a sua casa, na cidade de Bojador, não deixando ninguém entrar nem sair. A sua irmã foi igualmente atacada. Um grupo de jovens e mulheres que tentaram visitá-las foi também agredido. Sultana Khaya perdeu a visão do olho direito em 2007, em resultado da brutalidade de que foi alvo numa manifestação estudantil pacífica no campus universitário de Marraquexe. Em declarações à Agência APS, o coordenador da Comissão Saharaui dos Direitos Humanos na Europa revelou que mais de 80 casas de famílias saharauis nas cidades ocupadas estão sitiadas pelas forças de repressão marroquinas.
  • o ex-preso político Ghali Bouhla e Mohamed Nafeh Boutasufra, foram detidos em frente de casa por uma força policial à paisana, sequestrados durante três dias, sem qualquer justificação, e levados a 11 de Fevereiro para a prisão de El Aíun, onde aguardam julgamento (adiado já por três vezes), enquanto os seus familiares e amigos são intimidados.
  • Babouzeid Mohamed Said Labbihi, presidente do Colectivo dos Defensores Saharauis dos Direitos Humanos (CODESA), está sob vigilância permanente e foi proibido de aceder ao porto de Dakla, onde poderia arranjar trabalho, visto que tem Carta de Pescador, Certificado em Salinidade Marinha, Certificado em Segurança Laboral e uma licenciatura em Direito Privado. Desta forma as forças marroquinas impedem-no de trabalhar, ao mesmo tempo que intimam as empresas pesqueiras para que não lhe dêem emprego.
Sim, a comunidade internacional preocupa-se com a situação dos direitos humanos, mas não em toda a parte nem de modo igual. Muita atenção a uns, muita indiferença a outros. Depende das políticas de alianças que os violadores desses direitos constroem e das conveniências de quem com eles se alia.