quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

MARROCOS: A REPRESSÃO COMO RESPOSTA ÀS CRISES

(Boletim nº 116, Janeiro 2023)

A política externa agressiva do regime marroquino faz-nos, por vezes, esquecer a sua situação interna. Mas isso não impede a “velha toupeira” de fazer o seu trabalho e de expor as crispações sociais, que a repressão não consegue impedir.

Rabat, 4 Dezembro 2022 (foto CADTM)

No dia 4 de Dezembro realizou-se em Rabat uma manifestação para protestar contra o aumento do custo de vida e a escalada repressiva do regime, que reuniu cerca de 3.000 pessoas.
Eric Toussaint, do CADTM (Comité pour l’Abolition des Dettes Illégitimes), entrevistou Jawad Moustakbal da ATTAC Marrocos, questionando-o sobre «Quais são as razões económicas, sociais e políticas para o sucesso da mobilização em Rabat a 4 de Dezembro?»
«Os participantes na marcha cantavam slogans denunciando os recentes ataques ao poder de compra, e o chefe de governo, o multimilionário Aziz Akhenouch, com cartazes que diziam: "Akhenouch fora".
«Esta mobilização, iniciada por organizações sindicais e políticas de esquerda e agrupada numa coordenação denominada Frente Social Nacional, é uma resposta à profunda deterioração das condições de vida da maioria.
«Existem causas estruturais e conjunturais que explicam a deterioração das condições de vida da maioria dos marroquinos e marroquinas.
«As razões estruturais estão ligadas às escolhas económicas neoliberais que têm sido adoptadas por aqueles que governam o nosso país há décadas. As políticas de liberalização e privatização, por exemplo, beneficiaram uma elite local que gira em torno do "palácio" e que muitas vezes se associa a multinacionais ocidentais para açambarcar territórios (água, terras florestais, minas, etc.) ou as empresas públicas mais rentáveis, ou mesmo sectores estratégicos e vitais como a distribuição de água, energia, educação ou saúde.
«A abertura das fronteiras às mercadorias, exigida pelos acordos neocoloniais de comércio livre que Marrocos assinou, enfraqueceu o nosso tecido económico e levou à perda de empregos no ambiente urbano, enquanto que a adopção de uma agricultura orientada para a exportação, já desde há ¼ de século, continua a empobrecer os nossos pequenos agricultores e a agravar a nossa dependência alimentar.
«Estas políticas são recomendadas pelo FMI e pelo Banco Mundial e implementadas à letra pelos verdadeiros detentores do poder, a saber o Rei e os seus conselheiros. (…).
«Estes factores estruturais são os principais responsáveis por esta situação porque também limitam a capacidade do Estado para fazer face às condições económicas, reduzindo constantemente o orçamento dos serviços públicos e aumentando a nossa dependência alimentar e energética. O que aumenta a nossa fragilidade em relação às flutuações dos preços dos produtos que são essenciais para o nosso povo e para a nossa economia. A isto juntam-se os efeitos da seca, que se tornou mais intensa e mais frequente nos últimos 20 anos, em ligação com a crise ecológica e o aquecimento global.
«As desigualdades sociais em Marrocos são também as mais elevadas da região, de acordo com os últimos relatórios da Oxfam. A repressão parece ser a única resposta do Estado marroquino para gerir estas múltiplas crises exacerbadas pelas suas políticas.»
Moustakbal, a pedido de Toussaint, passa depois em revista as grandes mobilizações sociais em Marrocos nos últimos doze anos.
«As lutas pela defesa dos territórios (água, terra, florestas, etc.) têm sido constantes. Nunca cessaram, especialmente nas zonas mais marginalizadas, a que o colonizador francês chamou “o Marrocos inútil”. Estas lutas são uma resposta a um processo bastante violento de acumulação por despossessão liderado pelas classes dominantes. Para além destas lutas "permanentes", podemos distinguir 3 grandes mobilizações:
  • «Em 2011: O movimento de 20 de Fevereiro foi a mobilização mais maciça e prolongada, com marchas envolvendo dezenas de milhares de participantes em mais de uma centena de cidades de Marrocos. Simultaneamente com este movimento, que se concentrava mais nas grandes cidades e centros urbanos de média dimensão e cujas reivindicações eram principalmente democráticas e políticas, vários movimentos de protesto pelos direitos sociais, habitação, terra e trabalho surgiram em várias partes do país e aproveitaram o ambiente favorável criado pela chamada Primavera Árabe.
  • «Em 2016-2017 - Hirak (movimento de protesto) do Rif: Na sexta-feira 28 de Outubro de 2016, ocorreu um trágico e fatal incidente na cidade de Al Hoceima, no nordeste de Marrocos, quando um agente estatal apreendeu as mercadorias de Mouhcine Fikri, um vendedor de peixe, e as atirou para dentro de um camião de lixo. Quando o vendedor entrou desesperadamente no camião para recuperar o seu peixe, "um polícia local ordenou ao motorista do camião basculante que ligasse o compactador e o 'esmagasse'", de acordo com activistas e testemunhas. O camião esmagou horrivelmente Fikri, causando a sua morte. Este triste acontecimento levou a 10 meses de manifestações pacíficas. Estas manifestações mobilizaram todos os habitantes de Al-Hoceima e das cidades vizinhas. Este movimento, que era o eco do movimento de 20 de Fevereiro, retomando alguns dos seus slogans e organizando marchas e/ou sit-ins todos os fins-de-semana, caracterizou-se também por muitas inovações em termos de organização, comunicação e envolvimento das camadas sociais mais amplas através de assembleias populares nos cafés, onde a lista de reivindicações foi discutida e aprovada, abrangendo toda a região, bem como todos os aspectos da vida das pessoas (económicos, sociais, políticos, ambientais, culturais e desportivos).
  • «Em 2017-2018 - Hirak (movimento de protesto) de Jerada: Este movimento nasceu na sequência da conjunção de dois acontecimentos sucessivos: o primeiro foi a repressão de uma manifestação contra o aumento dos preços da electricidade e a detenção de dois jovens estudantes do ensino secundário; o segundo ocorreu no dia seguinte e resultou da morte de dois irmãos que se afogaram no fundo de uma das minas improvisadas escavadas nas proximidades da cidade para extrair carvão. Desde o encerramento em 1998 do Charbonnages du Maroc, que operava três grandes poços dentro de Jerada, a população, que dependia inteiramente da mina, começou a cavar poços na floresta circundante para explorar sozinha os veios de carvão. Por conseguinte, foram organizadas manifestações na praça principal da cidade com a participação de milhares de mulheres e homens. As exigências deste movimento centraram-se em três áreas principais: a tarifação da água e da electricidade, uma alternativa económica e a aplicação do princípio da responsabilização.
«Há também a campanha de boicote de 2018 que acho interessante mencionar aqui. De facto, após a liberalização dos preços dos combustíveis e a abolição dos subsídios para certos produtos básicos, Marrocos testemunhou muitas tentativas espontâneas de organizar campanhas de boicote contra produtos pertencentes a personalidades influentes próximas do governo. A campanha de 2018 dizia respeito a três marcas: a empresa Centrale para produtos lácteos do grupo Danone, a Sidi Ali pertencente a Meriem Bensaleh, ex-presidente da associação patronal, e a marca Afriquia, que detém a maior parte do mercado de distribuição de hidrocarbonetos e pertence ao actual chefe de governo Aziz Akhenouch. Este último é um dos homens mais ricos do continente. Acumulou a sua riqueza aproveitando a sua proximidade com o Palácio Real. A campanha de boicote foi muito bem sucedida e encontrou uma simpatia popular generalizada, não só nas redes sociais, mas também no terreno. As três empresas perderam vendas, algumas das quais chegaram aos 40% do seu volume de negócios e foram forçadas a rever as suas políticas de preços. Foi o caso da Danone relativamente à produção de leite.»
A situação actual da agricultura marroquina foi abordada numa edição recente
1
Aurélie Collas, «L’agriculture marocaine assoiffe le pays», Le Monde, 9 Outubro 2022.
do diário Le Monde: «Marrocos encontra-se numa situação de "stress hídrico estrutural", como o Banco Mundial assinalou em Julho num relatório sobre a economia marroquina. Com 600 metros cúbicos de água por pessoa por ano - em comparação com 2.600 metros cúbicos em 1960 - a procura de água excede largamente os recursos. "Nos 500 metros cúbicos, alcançaremos o limiar crítico de escassez. Muitas regiões já estão abaixo deste nível", adverte o Sr. Amraoui
2
Fouad Amraoui, professor em ciências da água na universidade Hassan II de Casablanca.
. O país encontra-se perante um dilema: como conciliar um modelo agrícola intensivo que representa 14% do PIB e emprega 40% da população activa, mas absorve 85% do consumo nacional de água, com o imperativo de preservar o que resta dos seus recursos hídricos?»
Semanas depois, o jornal
3
Aurélie Collas, «Au Maroc, l’oued victime des “voleurs d’eau“», Le Monde, 30 Outubro 2022.
voltou ao tema:
«"Não são agricultores, mas investidores nómadas: alugam terras aos agricultores durante uma estação agrícola, semeiam, colhem, embolsam os seus lucros e partem", acrescenta Kabir Kacha, membro da Associação Marroquina dos Direitos Humanos (AMDH) em Khénifra, muito activa na causa do Wadi [curso de água sazonal] Chbouka. "Levam água de graça, não pagam impostos, não contratam mão-de-obra local, não vendem aqui os seus legumes, mas enviam-nos para fábricas de batatas fritas. Não acrescentam qualquer valor à região. Pelo contrário, destroem o ambiente", denuncia este professor de filosofia, (...).
«Em Lehri, são chamados "ladrões de água". Desde Junho os habitantes enviaram sete cartas para alertar as autoridades públicas: o governador da região, os ministérios do interior, do equipamento, da agricultura, etc. Foram organizadas várias manifestações. "Mas, em todas, a polícia ordenou-nos que ficássemos em casa. Tudo é feito para nos manter calados", protesta Kenza (nome alterado), um residente da aldeia, referindo-se também a um comunicado do conselho municipal, datado de 20 de Junho, que acusa os manifestantes de "criar divisões" e afugentar os "investidores agrícolas". "Obviamente, as autoridades locais estão a protegê-los. A grande questão é porquê? O que têm a ganhar?", pergunta Mohamed Zendour, presidente da secção local da AMDH.»
Peça chave na preservação do regime autoritário é o controlo sobre os meios de comunicação social e a repressão sobre os que desafiam o status quo. Ganha, assim, um maior relevo o prémio atribuído pela organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), na 30ª edição dos prémios dedicados à Liberdade de Imprensa celebrada na capital francesa, ao jornalista Omar Radi, condenado a seis anos de prisão por «violação e espionagem».
Radi, um jornalista que se destacou pelo trabalho de investigação em temas sensíveis, como a corrupção, ao longo dos últimos dez anos, tornou-se alvo de uma investigação policial em Junho de 2020 por «espionagem» quando a Amnistia Internacional revelou que o seu telemóvel tinha sido alvo do programa israelita Pegasus. Um mês mais tarde foi preso, alegadamente por «violação».
Já antes a RSF tinha denunciado «que a situação dos meios de comunicação social no país é a pior desde que Mohammed VI se tornou rei em 1999.» Khaled Drareni, representante da organização para o Norte de África, comentou: «O regresso às práticas dos anos mais negros de Marrocos é perturbador e inaceitável. Contraria a imagem de respeitabilidade que o governo gosta de mostrar ao mundo e, acima de tudo, vai contra as legítimas aspirações da população marroquina ao exercício efectivo das suas liberdades, incluindo a liberdade de imprensa. Exigimos que as autoridades libertem os jornalistas presos, anulem as suas condenações, especialmente as de Souleiman Raissouni e Omar Radi, e desistam de qualquer processo judicial pendente.»
Mas não são só os jornalistas a serem vítimas da repressão policial. O medo da mudança leva o regime a prender figuras da elite que com ele colaboraram. É o caso de Mohammed Ziane, ministro dos Direitos Humanos em 1995 e 1996, preso e condenado a três anos de detenção em Novembro passado. «O Sr. Ziane, de 79 anos de idade, foi processado por uma queixa do Ministério do Interior marroquino com 11 acusações, incluindo "insultar funcionários públicos e o poder judicial", "insultar um organismo constituído", "difamação", "adultério" e "assédio sexual".»
Todas estas práticas repressivas estão devidamente identificadas e são do conhecimento das Nações Unidas. A Revisão Periódica Universal levada a cabo pela Comissão dos Direitos Humanos da ONU abordou no passado mês de Novembro a situação em Marrocos, recolhendo e sistematizando um vasto leque de informações cujo relatório é público.


 


segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

SAHARA OCIDENTAL: MORREM OS NOSSOS PRINCÍPIOS ANTES DA ÚLTIMA COLÓNIA DE ÁFRICA?

(Boletim nº 115, Dezembro 2022)

Yazid Ben Hounet e Sébastien Boulay escreveram um texto sobre o processo de descolonização do Sahara Ocidental para a revista Esprit que esta acabou por não publicar. Os autores disponibilizam-no agora, justificando por que o fazem.

«A colonização é um crime»

Este texto foi escrito a pedido do editor adjunto da revista Esprit (datado de 12 de Setembro de 2022, texto sobre o Sahara Ocidental de um máximo de 8.000 caracteres). O trabalho foi apresentado a 13 de Outubro de 2022 e confirmada a sua recepção. Foi depois recusado a 15 de Novembro de 2022 com o argumento de que "apesar das qualidades do vosso artigo, particularmente rigoroso e bem informado", outro texto sobre o Sahara Ocidental – que nunca foi mencionado antes – deveria aparecer no próximo número da revista. Assim, estamos a disponibilizar a nossa contribuição no sítio da OUISO e autorizamos aquelas e aqueles que o desejem a publicá-lo e divulgá-lo o mais amplamente possível.
Na quarta-feira, 18 de Abril de 2018, o L’ Humanité publicou uma Carta Aberta dirigida a Emmanuel Macron, assinada por dezenas de especialistas em direito internacional, relações internacionais, direitos humanos e norte de África. Nela apontavam o dedo para a responsabilidade da França na não descolonização do Sahara Ocidental.
Vista de França, a questão do Sahara Ocidental, quando é abordada nos media (ou seja, raramente), resume-se muitas vezes a um conflito territorial entre Marrocos e um “movimento independentista”, a Frente POLISARIO, “apoiado pela Argélia”. Do ponto de vista internacional, e de especialistas da área, a situação do Sahara Ocidental é sobretudo a de uma descolonização travada por Marrocos, que ocupa quase 80% do território, com o apoio (nos bastidores) da França. Ela gera violações de direitos humanos e crimes de colonização nos territórios sob ocupação marroquina.

Uma descolonização impedida

Colónia espanhola de 1884 a 1976, o Sahara Ocidental desde muito cedo despertou a cobiça do vizinho Marrocos e, posteriormente, da Mauritânia, que invadiram o território no final de 1975-início de 1976 conforme acordo firmado com o regime de Franco (14 de Novembro, 1975) sem o conhecimento do povo colonizado do Sahara Ocidental (os saharauis) e em violação das resoluções da ONU. Esta invasão desencadeou uma guerra de 16 anos com a Frente POLISARIO, movimento de libertação fundado em 1973 que lutou primeiro contra a Espanha pela descolonização do território e reconhecido como único representante do povo saharaui pela ONU em Maio de 1975.
A Frente POLISARIO surge na esteira dos movimentos de libertação africanos, de acordo com as resoluções da ONU
1
Resolução 1514 da Assembleia Geral das Nações Unidas de 14 de Dezembro 1960.
e da Carta da Organização da Unidade Africana (Adis Abeba, 1963)
2
Resoluções da Conferência de Addis-Abeba sobre a descolonização – documento fundador da Organização de Unidade Africana – aprovadas de 22 a 25 Maio 1963.
, documento fundador da União Africana. Esta última estabeleceu dois princípios claros para toda a África: por um lado, o respeito pelas fronteiras herdadas da colonização, a fim de evitar potenciais conflitos fronteiriços entre os países recentemente descolonizados (regra recordada na Conferência do Cairo de 1964); por outro lado, o apoio dos novos Estados independentes aos movimentos de libertação nacional em territórios ainda não descolonizados (caso da Frente POLISARIO).
A guerra provocou um êxodo maciço de refugiados saharauis para campos que o Crescente Vermelho argelino montou no sudoeste da Argélia, perto de Tindouf, onde um Estado saharaui independente – a República Árabe Saharaui Democrática (RASD) – foi proclamado a 27 de Fevereiro de 1976 pelos nacionalistas saharauis. Em 1979, a Mauritânia, exausta pela guerra, retirou-se do conflito. A RASD tornou-se membro da União Africana em 1982. Em 1991, um cessar-fogo entre a Frente POLISARIO e o Estado marroquino prevê a organização de um referendo de autodeterminação sob os auspícios da ONU que, para o efeito, criou a Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO), responsável pela fiscalização do cessar-fogo e pela organização da consulta eleitoral. Trinta anos depois, o referendo de autodeterminação ainda não ocorreu, devido a divergências recorrentes sobre as listas de eleitores; Marrocos propõe desde então (2007) um plano de autonomia ampla. Em Novembro de 2020, o conflito recomeçou naquela que continua a ser a última colónia da África.

Uma sociedade amordaçada

Na Carta Aberta mencionada acima, é explicado que a França "apoia todos os anos no mês de Abril, no Conselho de Segurança, a posição marroquina de recusar a extensão do mandato da missão de manutenção da paz das Nações Unidas (MINURSO) à fiscalização dos direitos humanos, mas também à realização de um referendo sobre a autodeterminação, objectivo primordial do cessar-fogo de 1991 e, não o esqueçamos, uma exigência das Nações Unidas desde 1966. Esta posição francesa permite ao Estado marroquino – que a ONU, a OUA-UA e a UE continuam a considerar como ocupante deste território – continuar a sua colonização promovendo nomeadamente a transmigração de populações de Marrocos, prendendo e “julgando” presos políticos saharauis em solo marroquino, duas flagrantes violações (entre outras) do direito internacional e do direito humanitário internacional.
De facto, a MINURSO continua a ser a única missão das Nações Unidas que não tem mandato para observar violações dos direitos humanos. Em 11 de Junho de 2022, a secção espanhola de Repórteres Sem Fronteiras apresentou o seu relatório sobre o Sahara Ocidental, um verdadeiro buraco negro de informação que se tornou uma área de ilegalidade para os jornalistas. Quatro décadas de abandono da última colónia africana, um conflito de baixa intensidade no terreno e nos media, fizeram do Sahara Ocidental uma cidadela jornalisticamente impenetrável, uma zona de violações dos direitos humanos contra os saharauis e jornalistas independentes. Entre o grupo de presos do conhecido Acampamento da Dignidade — Gdeim Izik (2010) — estão quatro jornalistas ao lado de activistas, vítimas de torturas, espancamentos, períodos de isolamento, além de julgamentos truncados acompanhados de penas muito pesadas que vão até à prisão perpétua. Naâma Asfari, advogado, defensor dos direitos humanos, marido de Claude Mangin-Asfari, cidadão honorário da cidade de Ivry, é um desses presos. Foi condenado, num julgamento injusto, a 30 anos de prisão. Dezoito dos seus companheiros permanecem presos desde 2010. Em 12 de Dezembro de 2016 Marrocos foi condenado pelo Comité da ONU contra a Tortura após uma denúncia apresentada pela ACAT e pelos advogados de Naâma Asfari.
Somam-se a isso outras prisões não mediatizadas e violência regular perpetrada contra activistas saharauis, em particular mulheres como Aminatou Haidar e Sultana Khaya. Num relatório contundente publicado no final de 2021, a Federação das Associações Catalãs de Amigos do Povo Saharaui e a associação NOVACT (Instituto Internacional de Acção Não-Violenta), em parceria com o Grupo de Apoio de Genebra para a Protecção e Promoção dos Direitos Humanos no Sahara Ocidental, enumeraram e contaram nada menos que 160 violações de direitos humanos só no período de Novembro de 2020 a Novembro de 2021, ou seja, uma média de uma violação a cada dois dias: ataques contra civis e seus bens, incluindo execuções; restrição generalizada de circulação e movimento; prisão domiciliária, espancamentos e destruição de bens; detenções arbitrárias e outras medidas de privação da liberdade; ataques físicos e tortura; julgamentos injustos, etc. A intensidade de tais violações dos direitos humanos é medida quando relacionada com o dimensão da população saharaui que vive sob ocupação (entre 100.000 e 200.000 pessoas)
3
O INED estima a população do Sahara Ocidental em 626.000 habitantes em 2021. Como resultado da colonização massiva, os saharauis estão em minoria, e representam actualmente cerca de um terço da população na parte ocupada por Marrocos. Vários relatórios de ONG estimam o número de saharauis nos campos de refugiados perto de Tindouf em cerca de 175.000. A estes há que acrescentar os saharauis que vivem nos territórios controlados pela RASD (cerca de 20% do Sahara Ocidental), na Mauritânia e no exílio (Europa - principalmente Espanha; EUA, etc.).
.
Estas violações são ainda agravadas pelo muro marroquino no Sahara Ocidental, um dos mais longos do mundo, e paradoxalmente um dos menos visíveis nos principais meios de comunicação social. Divide o Sahara Ocidental, e o seu povo, em duas partes. Mais de 7 milhões de minas anti-pessoais, espalhadas ao longo da sua extensão, põem em risco a vida dos saharauis e dos seus rebanhos todos os dias.
Desde a Carta Aberta (Abril de 2018), dirigida a Emmanuel Macron, o apoio da França a esta usurpação colonial foi reforçado: instalação de uma delegação da Câmara de Comércio e Indústria francesa em Dakhla, na parte ilegalmente ocupada por Marrocos (1 de Março de 2019), estabelecimento através do Instituto de Investigação para o Desenvolvimento (IRD) de parcerias científicas marroquino-francesas abrangendo o Sahara Ocidental, abertura de uma delegação do partido presidencial, LREM [La République En Marche], também em Dakhla (8 de Abril de 2021). Hoje, enquanto a guerra grassa na Ucrânia e obriga os países europeus a repensar o seu aprovisionamento energético, o governo francês parece particularmente empenhado na sua aproximação à Argélia... Decerto que o Presidente francês se lembrará das observações que fez em Argel a 15 de Fevereiro de 2017: «Sim, a colonização é um crime contra a Humanidade».
Yazid Ben Hounet, CNRS, Laboratoire d’Anthropologie Sociale (CNRS-EHESS-Collège de France)
Sébastien Boulay, Université Paris Cité, Centre Population et Développement (UMR 196 Ceped)
«E varre-me todos os ocultadores, todos os inventores de subterfúgios, todos os charlatães mistificadores, todos os manipuladores de algaraviada. E não tentes descobrir se estes senhores estão pessoalmente de boa ou má-fé, se pessoalmente são bem ou mal intencionados, se pessoalmente, ou seja, na sua consciência íntima de Pedro ou Paulo, são colonialistas ou não, o principal é que a sua muito aleatória boa fé subjectiva não tem qualquer relação com o âmbito objectivo e social do mau trabalho que fazem como cães de guarda do colonialismo.» (Aimé Césaire, Discours sur le colonialisme, 1950).


 

CIMEIRA ÁRABE: «OPORTUNIDADE PERDIDA»?

(Boletim nº 115 - Dezembro 2022)

Reuniu em Argel, nos passados dias 1 e 2 de Novembro, a 31ª Cimeira da Liga Árabe, num momento em que os Estados que a compõem estão a atravessar várias divisões e conflitos, desde a causa palestiniana até à influência do Irão, à clivagem entre a Argélia e Marrocos ou aos conflitos armados no Iémen e na Líbia.

Relações conflituosas (foto DzairDaily)
A Liga Árabe, formada por 22 nações, reuniu pela última vez em Tunes em 2019, antes da crise sanitária e dos Acordos de Abraham, que levaram ao estabelecimento de relações diplomáticas dos Emiratos Árabes Unidos, Marrocos, Sudão e Bahrein com o Estado de Israel, considerado pela maioria dos países árabes como um "inimigo colonizador".
A agenda da Cimeira era vasta e ambiciosa, tanto do ponto de ponto de vista político como económico, com a questão da Palestina a ocupar um lugar central, para o que concorreu o acordo celebrado em 13 de Outubro em Argel entre 14 organizações da resistência palestiniana.
Marrocos tudo fez para diminuir o protagonismo dos organizadores argelinos. Inicialmente estava previsto que rei Mohamed VI chefiasse a delegação marroquina, apesar da crispação crescente entre estes países. A Argélia tinha cortado, em 24 de Agosto de 2021, as relações diplomáticas com Rabat invocando "actos hostis". Rabat — através do programa israelita Pegasus – espiou em mais de seis mil telefones argelinos, incluindo os de oficiais do exército de alta patente. Apesar disso a Argélia enviou um ministro a Rabat para entregar a Nasser Bourita, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, um convite dirigido ao rei para a Cimeira. Mas tal visita anunciada acabou por não se realizar. Nas vésperas do seu início o MNE argelino, Ramtane Lamamra, numa entrevista à cadeia saudita Al Haddath, esclareceu a situação:
«Fizemos um esforço para assegurar a participação de todos os dirigentes árabes. O povo argelino dá as boas-vindas a todos os nossos líderes. No que diz respeito ao Reino de Marrocos, (...) um enviado especial do Presidente da República deslocou-se a Rabat para fazer um convite oficial.
«O Reino de Marrocos participou nos preparativos para a cimeira com o seu embaixador e ministro dos negócios estrangeiros. Em relação ao que foi anunciado, acreditávamos que Sua Majestade o Rei Mohamed VI iria participar pessoalmente na cimeira. Fomos informados esta manhã [segunda-feira 31 de Outubro] que este não era o caso.»
De acordo com o jornalista Merouane Mokdad, «A agência oficial APS forneceu, na sexta-feira 4 de Novembro, pormenores sobre esta não comparência. De facto, a confirmação da participação do monarca marroquino na Cimeira Árabe em Argel foi notificada por nota verbal dirigida ao Ministério dos Negócios Estrangeiros argelino e foi confirmada através do canal da Liga Árabe. A parte marroquina tinha apresentado pedidos de sobrevoo e aterragem para 10 aviões para transportar o rei, o príncipe herdeiro e o resto da delegação real, de acordo com a mesma nota verbal", informou a APS.
«Nasser Bourita, ministro marroquino dos Negócios Estrangeiros, confirmou numa entrevista ao canal saudita Al Arabiya que Mohammed VI estava entre os primeiros dirigentes árabes a confirmar a sua participação na Cimeira em Argel. "Por considerações regionais e bilaterais, Sua Majestade o Rei informou a Liga Árabe da sua não-participação. Certas condições não foram satisfeitas. O rei deu instruções para uma participação construtiva na cimeira", disse ele sem fornecer mais pormenores. (…).
«De acordo com os meios de comunicação marroquinos, a delegação marroquina queixou-se de não ter sido recebida pelas autoridades argelinas "da mesma forma que as outras delegações árabes" no sábado 29 de Outubro de 2022 no aeroporto. Uma fonte diplomática argelina, citada pela agência APS, lamentou, no domingo 30 de Outubro, as declarações veiculadas pelos meios de comunicação marroquinos, atribuídas a uma fonte marroquina de alto nível sobre alegadas "violações diplomáticas" durante a recepção da delegação marroquina.»
Segundo Ramtane Lamamra, «O funcionário argelino que acolheu o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino de Marrocos no aeroporto é o mesmo que acolheu todos os outros Ministros dos Negócios Estrangeiros árabes à sua chegada.»
«Reagindo à ausência do rei Mohammed VI na cimeira de Argel, o ministro argelino dos Negócios Estrangeiros Ramtane Lamamra disse ao canal Al Haddath que Marrocos tinha "perdido uma oportunidade". "Penso que cabe aos historiadores julgar no futuro se houve uma oportunidade perdida para o Magrebe Árabe e para uma acção árabe conjunta. E se a resposta for "sim", quem assumirá a responsabilidade por esta oportunidade perdida?»

«Na cimeira de Argel, Nasser Bourita foi o único que não falou. Este silêncio não foi explicado por Rabat.» 

Mas se não falou na Cimeira não esteve, porém, calado. «Segundo a APS, Nasser Bourita tentou convencer o Secretário-geral da Liga Árabe, Ahmed Aboul Gheit, da presença de um representante da Frente POLISARIO entre os participantes na Cimeira Árabe. "Perante uma tal enormidade, que fez muitos participantes rir à socapa, o mesmo ministro admitiu finalmente (...) que a sua sagaz equipa se tinha enganado", disse a agência.
Recorde-se que a RASD (República Árabe Saharaui Democrática) não faz parte da Liga Àrabe.