sábado, 4 de fevereiro de 2023

A ALIANÇA MARROCOS-ISRAEL E A DESCOLONIZAÇÃO DO SAHARA OCIDENTAL

(Boletim nº 117 - Fevereiro 2023)

Desde que o ex-presidente dos EUA Donald Trump reconheceu a anexação marroquina do Sahara Ocidental em Dezembro de 2020, Israel passou a ser um aliado ostensivo do regime de Rabat, desde o terreno político-militar ao económico-financeiro. O que será um incentivo à solidariedade dos povos palestiniano e saharaui.

«Colaboração frutuosa»
O sítio do Irmep apresentou como «Uma grande exigência territorial recente de Israel» o reconhecimento pelos E.U.A. «do Sahara Ocidental como território marroquino» em troca de Marrocos se envolver «em intercâmbios comerciais e diplomáticos com Israel». Comenta o articulista:
«Esta é uma das piores fases das recentes humilhações da política dos EUA chamada "Acordos de Abraham", uma iniciativa do lobby israelita lançada durante a administração Trump, que procura ultrapassar as exigências de pôr fim à violência israelita, à limpeza étnica, à opressão, ao apartheid e ao desalojamento territorial da população autóctone palestiniana. 
«A administração Biden nada fez para inverter os Acordos de Abraham e restaurar a credibilidade norte-americana. Desde a Segunda Guerra Mundial que o direito internacional proíbe a aquisição territorial através da guerra e da conquista. Os Acordos de Abraham exigem que os EUA legitimem a aquisição territorial através da guerra e da conquista se esta funcionar em benefício de Israel.»
Os resultados da subscrição destes Acordos tornaram-se, então, mais visíveis, como relata o sítio LibreMercado:
«A empresa energética israelita NewMed Energy acaba de chegar a acordo com a Adarco Energy e o Gabinete Nacional Marroquino de Hidrocarbonetos e Minas para explorar gás natural e petróleo em águas atlânticas.
«A área onde as empresas gozam de uma licença de exploração, de aproximadamente 33.812 km², está localizada ao largo do Cabo Bojador, na costa do Sahara Ocidental, em águas a sul da Zona Económica Exclusiva marroquina e pertencentes à antiga colónia espanhola ocupada por Rabat. (…). 
«O acordo prevê que a NewMed Energy deterá 37,5% da licença de exploração, a Adarco outros 37,5% e o Gabinete marroquino 25%. A licença contempla a exploração e pesquisa de hidrocarbonetos nesta zona do Atlântico durante oito anos: os primeiros 30 meses serão dedicados à análise geológica, após os quais será feita a prospecção. O acordo prevê a possibilidade de prorrogação das licenças se os depósitos forem confirmados ou de abandono do bloco no final de cada fase, se os resultados não forem satisfatórios. O pacto ainda precisa de ser aprovado pelo Ministro da Energia, Transição e Desenvolvimento Sustentável de Marrocos e pelo Ministro das Finanças, bem como pela assembleia geral de accionistas da NewMed Energy. (…). 
«Junto à licença Boudjour Atlantique está outra licença localizada em águas saharauis, Dakhla Atlantique, operada por outra companhia israelita, a Ratio Petroleum. A empresa obteve a licença em Outubro de 2021, alguns meses após a normalização das relações entre Marrocos, Israel e os EUA.»
Recentemente, Lluís Rodríguez Capdevila, um estudioso catalão, publicou um artigo - «El idilio entre Israel y Marruecos» - onde analisa as relações entre os regimes destes dois Estados.
«Na sequência do recente 16º Congresso da Frente POLISARIO, parece que a guerra no Sahara Ocidental está a entrar numa nova fase marcada por uma escalada da tensão militar entre os dois opositores, que pode ser afectada pela introdução de novas armas no campo de batalha e pelo aumento da utilização de drones. Face à previsível escalada do conflito, Marrocos está a aumentar a sua dependência de Israel, do qual se serve em grande medida para a aquisição de armas, bem como para o treino militar e tecnológico, tornando o Estado sionista num dos novos actores no conflito que está a adquirir maior protagonismo. 
«A colaboração entre Israel e Marrocos é muito antiga, mas nunca foi tão frutuosa como agora, graças aos acordos de parceria entre Rabat e Telavive, encorajada em grande parte pelo antigo presidente dos EUA Donald Trump durante o seu mandato. (…). 
«A política externa de Trump durante o seu mandato caracterizou-se em grande parte por favorecer os interesses de Israel no Médio Oriente, e sempre à custa das aspirações do povo palestiniano, que viu a sua pretensão de se tornar um Estado cada vez mais distante. Com decisões tão importantes como mudar a embaixada dos EUA para Jerusalém ou retirar o seu país do acordo nuclear iraniano, Trump agradou continuamente ao poderoso lobby judeu americano, ao qual pertence o seu genro Jared Kushner, casado com a sua filha Ivanka. Assim que chegou à Casa Branca, Trump nomeou Kushner como conselheiro superior do presidente dos EUA e confiou-lhe, como uma das suas principais tarefas, o redesenho da paz no Médio Oriente, mas, claro, tendo sempre em conta os interesses tanto dos EUA como de Israel na região. (…). 
«Mas em Dezembro de 2020, foi a vez de Marrocos. E o preço era claro: o regime marroquino estabeleceria relações diplomáticas com Israel em troca do reconhecimento por parte da administração Trump da soberania de Marrocos sobre o Sahara Ocidental, uma operação que estava em curso há algum tempo com viagens a Rabat tanto de Kushner em Maio de 2019 como da própria Ivanka Trump no mês de Novembro seguinte, embora houvesse outras viagens descritas como "não-oficiais" que levaram vários delegados norte-americanos ao país do Magrebe. Já em 2019, Israel, então o oitavo maior exportador mundial de armas, vendia radares militares e sistemas de comunicações a Marrocos através de países terceiros. 
«Marrocos foi o primeiro país a reconhecer a independência dos Estados Unidos. O próprio Donald Trump recordou-o num dos seus tweets a 10 de Dezembro de 2020: "Marrocos reconheceu os Estados Unidos em 1777. É portanto apropriado que reconheçamos a sua soberania sobre o Sahara Ocidental". Com a sua decisão, Trump reactivou as relações bilaterais entre os governos de Israel e Marrocos, que deram os seus primeiros frutos com o estabelecimento, em 2021, dos primeiros voos directos entre Telavive e Marraquexe pela companhia El Al e entre a capital israelita e Casablanca pela companhia marroquina RAM. Em Outubro desse ano, a companhia petrolífera israelita Ratio obteve uma concessão para a prospecção de jazidas de hidrocarbonetos nas águas da cidade saharaui ocupada de Dakhla. 
«Contudo, o entendimento entre Tel-Aviv e Rabat remonta ainda mais atrás, ao tempo em que Marrocos começou a construir o Muro da Vergonha em plena guerra do Sahara, na década de 1980. Na altura, os serviços secretos israelitas contribuíram para a concepção dos muros defensivos que formam agora a vasta barreira física de 2.720 km que divide o território saharaui de norte a sul. Algumas décadas mais tarde, foi o próprio governo israelita que, a 23 de Junho de 2002, aprovou a construção de outro muro que actualmente se estende, em 80% do seu comprimento, em território palestiniano ocupado. De facto, o próprio muro na Palestina erguido pelas autoridades de ocupação israelitas tem uma semelhança jurídica com o do Sahara Ocidental, uma vez que tanto as ocupações israelitas como marroquinas dos territórios palestinianos e saharauis, respectivamente, são juridicamente semelhantes. 
«Mas embora a colaboração militar e dos serviços secretos entre Israel e Marrocos remonte já a meio século, os dois países formalizaram este acordo de segurança em Rabat em 24 de Novembro de 2021, aonde o próprio Ministro da Defesa israelita, o antigo general Benny Gantz, se deslocou para normalizar o comércio de armas entre os dois governos, culminando assim o Acordo sobre a normalização das relações entre Israel e Marrocos de 10 de Dezembro de 2020. Foi também Gantz que, em Israel, autorizou a venda no estrangeiro de sistemas de espionagem, como o Pegasus, cuja utilização pelos serviços secretos marroquinos no Verão de 2021 causou um escândalo internacional quando foi revelado que espiava políticos da oposição, jornalistas e mesmo chefes de Estado estrangeiros, entre os quais o Presidente francês Emmanuel Macron, como denunciado pela Amnistia Internacional.

«Porém, o restabelecimento de relações diplomáticas com Israel não é uma medida muito bem vista por um povo, o povo marroquino, que sempre mostrou solidariedade para com os palestinianos e que foi mesmo utilizado pelo próprio Makhzen para fazer de Marrocos bandeira pela causa palestiniana. (…). 
«Mas o recente Campeonato Mundial de Futebol no Catar ofereceu-nos, pelo menos, um par de imagens que mostram a contradição de ver marroquinos a apoiar a causa palestiniana enquanto defendem a ocupação do Sahara [Ocidental] por Marrocos. A primeira imagem foi tirada no final do jogo entre as selecções marroquina e espanhola. Os jogadores marroquinos posaram com uma bandeira palestiniana no relvado para celebrar a sua qualificação para os quartos-de-final do Campeonato do Mundo. A segunda imagem é fornecida por estes mesmos jogadores da equipa nacional marroquina cantando "o Sahara é nosso, os seus rios e a sua terra são nossos", um vídeo que rapidamente se tornou viral nas redes sociais e que recuperamos aqui neste tweet de Taleb Alisalem (…). 
«Talvez esta solidariedade para com a Palestina recebida de Marrocos explique o escasso apoio à causa saharaui por parte dos palestinianos, que receiam que se exigirem para o Sahara o que querem para si próprios, nomeadamente o fim da ocupação por uma potência estrangeira, possam deixar de ser bem vistos pelo povo marroquino e pelo seu governo, embora isto seja em si mesmo uma contradição de convicções, uma vez que, como já observámos anteriormente, tanto a causa saharaui como a palestiniana são casos de ocupação juridicamente semelhantes. (…). 
«A colaboração entre Israel e Marrocos não é assim tão surpreendente, uma vez que um grande número de judeus israelitas são de origem marroquina e, além disso, existe ainda uma pequena mas historicamente influente comunidade judaica no país do Magrebe que se congratula com esta aproximação entre o seu país e o Estado judaico. Por outro lado, ambos os países anexaram território que não lhes pertence em violação do direito internacional e concordam em aliar-se a fim de defenderem conjuntamente as suas respectivas ocupações. (…). 
«Pela sua parte, a chegada de Joe Biden à Casa Branca não significou a reafirmação do reconhecimento da soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental, mas a actual administração norte-americana também não a retirou, e o Secretário de Estado Antony Blinken manifestou mais de uma vez ao seu homólogo marroquino, Nasser Bourita, o seu apoio ao plano de autonomia que Marrocos tem vindo a apresentar desde 2007. No entanto, a questão do Sahara parece estar bloqueada no Congresso dos EUA, tal como a proposta de abertura de um consulado dos EUA no Sahara ocupado ou a venda de mais drones MQ-9B ao governo marroquino, que veremos se será por muito tempo, uma vez que os lobbies marroquinos e, acima de tudo, judeus, exercem forte pressão sobre o Capitólio. O que não parece ter encalhado, contudo, é o fornecimento de helicópteros AH-64 Apache e de caças F-16 a Rabat, entre outros armamentos que fazem de Washington o principal fornecedor de armas a Marrocos. 
«No entanto, a aquisição de drones não é um problema para o governo marroquino, pois é principalmente Israel que desde Janeiro de 2020 tem vindo a fornecer a Marrocos este tipo de aeronaves não tripuladas. A utilização crescente destas armas pelos dois exércitos em conflito na Guerra do Sahara pode aumentar o número de baixas. Também entre a população civil saharaui, um alvo militar dos drones das Forças Armadas Reais Marroquinas desde que veículos civis saharauis foram atingidos por por estas aeronaves a 25 de Janeiro de 2021, causando a morte de três pessoas. 
«Marrocos é o único dos dois exércitos que tem drones, mas o receio de que a Frente POLISARIO acabe por adquirir este tipo de aviões não tripulados levou o governo marroquino a formalizar a compra de mais drones israelitas, chineses e turcos, incluindo o já utilizado Bayraktar TB2, e a tornar-se o primeiro país africano a construir um modelo protótipo graças aos acordos de colaboração entre o governo de Mohammed VI e Israel. A "droneificação" da Guerra do Sahara está em curso.»



TESH SIDI: «A VIDA NOS ACAMPAMENTOS NÃO PODE SER ROMANTIZADA»

 (Boletim nº 117 - Fevereiro 2023)

O sítio Mundo Negro dos Missionários Combonianos publicou recentemente uma entrevista a Tesh Sidi, uma jovem engenheira informática saharaui, onde esta partilha a experiência da descoberta e construção da sua identidade. É essa entrevista que aqui apresentamos.

«É necessária uma grande pressão política»

«Nasci nos campos de refugiados saharauis em Tindouf (Argélia), em 1994. Vim para Espanha quando tinha sete anos de idade. Sou engenheira informática e trabalho no mundo das grandes bases de dados na banca. Criei e coordeno a plataforma digital SaharawisToday».
Gostaria que me falasses da tua infância.
Nasci nos anos 90, em tempos muito difíceis para os refugiados saharauis que tinham acabado de se instalar nos campos. Não havia nada, não havia leite para as crianças e não havia água em casa. As mães trocavam os seus filhos para poderem amamentá-los. Quando o meu irmão gémeo e eu nascemos, quase morremos. Na verdade, todos nós tivemos problemas de saúde. A minha mãe, que era anémica, não tinha recursos. Éramos vários irmãos e ela não teve outra escolha senão deixar-me com a minha avó. Fiquei com ela entre os quatro e os sete anos na Mauritânia.
Lembras-te bem do que viveste durante esses anos?
Digo sempre que nós, saharauis, nascemos já crescidos. Devido às circunstâncias, somos educados para resistir e não nos podemos queixar. A sociedade e o contexto forçam-nos a amadurecer e a crescer rapidamente. Sim, tenho memórias desse tempo com a minha avó. Era uma beduína que só sabia criar e ordenhar cabras e nunca estava com crianças. Aqueles anos vivi com adultos e animais. Quando tinha apenas seis anos de idade, sabia como fazer as coisas de uma mulher mais velha. Quando tinha sete anos, regressei aos campos de Tindouf, na Argélia, com o meu irmão gémeo, a minha mãe, o meu pai e seis outros irmãos. Foi um choque de identidade, tive de aprender a amá-los, porque estes laços fraternais não tinham sido construídos antes.
Não deve ter sido nada fácil.
Na Mauritânia, vivia fora dos sistemas educativo e de saúde. Não sabia ler nem escrever. Tinha pensamentos e fazia o trabalho de um adulto. Quando fui para a escola tive de perceber que era uma criança, que tinha uma família e que vivia em sociedade. Não posso romantizar a minha história e dizer que tive uma infância feliz. Foi a que tive, a infância de qualquer criança numa situação de conflito. Não podemos romantizar a pobreza. Não comi um iogurte nem provei chocolate até chegar a Espanha, nem tive acesso a algo tão básico como a carne. Agora vejo que os meus sobrinhos e sobrinhas têm isso nos campos, mas vão sofrer outros problemas: problemas de identidade, exílio, conflito armado ... Eles não vão ficar isentos de tudo isso. A vida nos acampamentos não pode ser romantizada.
Porque vieste para Espanha?
Vim quando tinha quase oito anos de idade, para uma família de acolhimento em Alicante. Se chegar aos acampamentos vinda da Mauritânia foi uma mudança de mundo, vir para aqui foi uma mudança de planeta, de galáxia e de tudo. Tive medo dos edifícios porque não conseguia compreender como podiam ser tão altos. Nos acampamentos, as pequenas casas de adobe estão de acordo com o teu tamanho, acessíveis à tua altura ou à de um adulto, mas eu cheguei e encontrei edifícios muito altos, pessoas a correr, barulho, semáforos, tudo para "agora"... e, acima de tudo, a sensação de que todos me repreendiam por qualquer coisa: "Senta-te bem", "Come assim"... Eu não estava habituada a tantas exigências sociais, a viver sob um protocolo permanente. Nos acampamentos, os pais não te condicionam tanto porque já "és" adulto, e quando chegas aqui vens já com uma mentalidade construída. Vim durante cinco Verões e depois fiquei com a minha família de acolhimento dos 12 aos 18 anos de idade. A minha mãe espanhola teve a ideia de me educar, mas eu disse-lhe que já estava educada, e não foi um acto de rebeldia, mas de maturidade precoce forçada pela situação. A minha família espanhola fez o melhor que pôde comigo, mas não da melhor maneira. Tive uma adolescência muito dura.
Sentias que não te enquadravas?
As pessoas que emigraram sofrem uma crise de identidade muito grande, porque não são nem daqui nem de lá. A necessidade de se enquadrar em ambos os lugares pode pregar-lhes partidas muito más. Passei dez anos a rejeitar ser saharaui e as desgraças que me tinham acontecido na minha vida.
Escondias isso?
Sim. Costumava dizer às pessoas que era de Alicante, só isso. Mas quando comecei a ler literatura com referências africanas, incluindo saharauis, dei-me conta de que tinha herdado pensamentos coloniais, e chegou um momento, aos 18 anos de idade, em que me apercebi que aquele não era o meu sítio. Na minha casa espanhola sentia muitas exigências sociais e culturais, e tinha de estar constantemente a agradecer pelo que me estavam a dar, porque "vinha de um acampamento de refugiados", algo que me afectava muito e sentia como um menosprezo. Por outro lado, tinha a minha família saharaui, conservadora, muçulmana, uma das poucas que tinha deixado as suas filhas estudar no Ocidente desde muito novas. Estava ciente do medo da minha mãe de eu não ser muçulmana, nem culturalmente saharaui, desse medo do que as pessoas diriam. Senti pressão aqui e ali, e decidi separar-me, começar a trabalhar e estudar por conta própria, para recuperar a minha dignidade e a minha liberdade como pessoa. Rompi relações com a minha família biológica e com a minha família de acolhimento, mas era livre de começar a construir uma identidade para mim própria.
Fizeste esse processo sozinha?
Até me tornar activista não tinha nenhum ponto de referência. Comecei a trabalhar como empregada de mesa, em lojas... Estudei engenharia informática na altura da crise, e tive amigos que me ajudaram a pagar a universidade. Terminei a minha licenciatura e vim para Madrid. Era o tempo da explosão informática e encontrei trabalho facilmente. Pedi um empréstimo para fazer um mestrado em bases de dados e inteligência artificial. Para mim não há coisas impossíveis para quem se esforça e trabalha. As pessoas dizem-me que as coisas me têm corrido bem, mas eu comi arroz branco na universidade, tal como comi no acampamento, porque muitas vezes não tinha dinheiro para comprar carne ou champô.
Como descobriste o activismo?
Quando terminei o mestrado e conseguido um bom emprego, em Abril de 2020, explodiu a guerra no Sahara Ocidental. Não sabia nada do conflito nem das suas causas, mas comecei a ir a manifestações e nasceu em mim uma necessidade imperiosa tanto de ajudar o povo saharaui como de recuperar a minha identidade. E quando vi que a causa saharaui estava estagnada em termos de comunicação, decidi ajudar com o meu conhecimento de bases de dados e do processamento de dados nas redes sociais. Assumi a presidência da Associação Saharawi em Madrid, fizemos muitas coisas e muitos jovens saharauis da diáspora começaram a organizar-se. Tornei-me uma pessoa muito exposta, a dar conferências, os políticos chamavam-me... Parecia-me que a causa se tinha tornado muito humanitária, mas pouco política, e comecei a aproximar-me das organizações políticas, dos meios de comunicação social, comecei a levar jornalistas e políticos aos acampamentos… Todo este processo materializou-se no SaharawisToday, uma plataforma de comunicação digital que criei com a minha companheira Itziar.
O que podemos encontrar em SaharawisToday?
Analisámos o que está errado com a causa saharaui e vimos que deveríamos ser nós próprios, os saharauis, a comunicar, que não deveriam ser os jornalistas ou os antropólogos a falar sempre sobre o povo saharaui. No SaharawisToday falamos sobre migração; sobre o combate ao racismo institucional que sofremos; sobre as mulheres saharauis, que são frequentemente silenciadas; sobre a responsabilidade da Espanha para com as suas antigas colónias ou sobre a responsabilidade da população de se informar sobre o passado do seu país. Contextualizamos para explicar a relação do Sahara com o que está a acontecer em Ceuta e Melilha, com as águas das Ilhas Canárias ou porque é que Marrocos está a bloquear e a chantagear a Espanha... Somos 11 pessoas, saharauis de lá, daqui e de França. Publicamos em francês, árabe, inglês e espanhol, e oferecemos um fórum de opinião para o povo saharaui, em toda a sua diversidade. Há lugar para tudo menos para o fascismo e o machismo. Sempre fomos um povo de transmissão oral, mas temos de pôr a nossa história por escrito. Há artigos, vídeos, reportagens ao vivo, resumos de política internacional, análises... Reunimos todos os eventos da causa saharaui em todo o mundo e informamos sobre como viajar para os acampamentos.
Para terminar, acreditas que haverá um referendo?
É necessária uma grande pressão política. Penso que o povo saharaui tem de ocupar posições de poder. Muitas pessoas que emigraram tendem a estudar ciências sociais e dedicam-se ao campo das ONG ou da cooperação internacional devido a esta necessidade de "salvar" o que temos. Mas não há nada de errado em estar num banco ou na política. É preciso estar onde as decisões são tomadas para mudar as coisas. No banco onde trabalho, sabem que sou uma saharaui e uma activista. Os saharauis têm de tentar ser presidentes da comunidade nos seus edifícios, membros do parlamento, uma referência onde quer que trabalhem. Penso que o referendo vai ser complicado nos próximos anos. Enquanto não tivermos um primeiro-ministro saharaui ou migrante, as coisas não vão mudar. Levará tempo, mas não devemos ficar frustrados. Temos de ser optimistas.


 

XVI CONGRESSO DA FRENTE POLISARIO: A LUTA CONTINUA E INTENSIFICA-SE

(Boletim nº 117 - Fevereiro 2023)

A AAPSO teve a oportunidade de participar na abertura do Congresso que se celebrou na wilaya de Dakhla, nos Acampamentos de refugiados saharauis, no ano em que a Frente POLISARIO assinala os seus 50 anos. Partilhamos agora o que de mais relevante conhecemos e aprendemos.

Continuar a luta até à independência

A importância deste Congresso

Carlos Ruiz Miguel, catedrático de Direito Constitucional na Universidade de Santiago de Compostela, publicou em Setembro passado um livro intitulado El Frente POLISARIO: desde sus orígines hasta la actualidad. Nele considera que dos 15 Congressos do movimento de libertação saharaui realizados à data, dois foram mais significativos.
O II Congresso (25 e 31 de Agosto de 1974), que definiu com maior clareza e amplitude o seu projecto político, dividido em três perspectivas: programa para o curto prazo, programa para o longo prazo e relações externas, e elegeu El Uali como Secretário-geral da organização, que viria a morrer em combate a 9 de Março de 1976. Recorda-se que o momento era crítico: no estertor do franquismo e em pleno processo de descolonização no Portugal de Abril, a questão do Sahara Ocidental concentrava atenções a nível internacional: em Outubro de 1975 foi aprovado o relatório da missão da ONU ao território (dia 10), foi divulgado o parecer do Tribunal Internacional de Justiça que reconhecia o direito do povo saharaui à autodeterminação (dia 16) e teve início, na prática, a invasão marroquina (no fim do mês, embora a data oficial da Marcha Verde seja 6 de Novembro).
E o VIII Congresso (17-19 de Junho de 1991), que reviu a Constituição da República Árabe Saharaui Democrática (RASD), adoptando uma visão política baseada na economia de mercado e no multipartidarismo, uma vez obtida a independência do país. Neste quadro, ficou mais clara a diferenciação entre a FPOLISARIO e a RASD que, no entanto, mantêm, até à libertação, um elo forte de ligação através do Secretário-geral do movimento que é, por inerência, o Presidente da República. Esta foi a época em que mudanças semelhantes ocorreram em muitos países, nomeadamente africanos, no seguimento das alterações geopolíticas aceleradas em 1989.
As expectativas criadas à volta do XVI Congresso estavam relacionadas com o contexto internacional que se vive, em transformação e muito incerto, mas sobretudo com o facto de ser o primeiro conclave posterior ao reinício da guerra com Marrocos, ocorrido a 13 de Novembro de 2020. Esta opção, tomada frente à quebra do cessar-fogo por parte do poder ocupante nesse mesmo dia, no quadro geral de estagnação das negociações políticas que durante 30 anos apenas tinham beneficiado o regime de Rabat, estava a ser reivindicada pelas bases saharauis, em particular os jovens, há bastante tempo e fez parte das discussões do XV Congresso, mas a sua efectiva decisão deu-se já depois. O lema do XVI Congresso foi «Intensificar a luta armada para expulsar o invasor e conseguir a soberania».

Causas e consequências da guerra

O Congresso ratificou sem hesitações a continuação da luta armada e, no actual contexto em que por um lado, Marrocos não reconhece oficialmente o recomeço do conflito bélico mas ataca militares e civis (saharauis, mauritanos, argelinos) e, por outro, a ONU não consegue desbloquear o processo negocial, ela terá de subir de nível, como forma de pressão militar e, consequentemente, política.
Não é uma decisão fácil, e o povo saharaui sabe o que significa e o que custa. A lembrança da I guerra de libertação nacional (1975-1991) está muito presente, e as possibilidades reais de escalamento para um conflito regional estão sobre a mesa. Mas é também muito claro o balanço de 30 anos de cessar-fogo e de aposta convicta na construção da paz, durante os quais Marrocos assinou um acordo para a realização do referendo de autodeterminação, que não honrou, aumentando a agressividade da sua política diplomática, as violações de direitos humanos no território ocupado e a apropriação ilegal dos recursos naturais saharauis. Sem que o Conselho de Segurança da ONU mostrasse vontade de defender os princípios da sua própria organização.
Como resumiu a Ministra da Cooperação da RASD, Fatma Mehdi, a única mulher que participa na equipa de negociações saharaui, numa entrevista: «Nestes 30 anos o povo saharaui foi dando, dando e dando possibilidades, oportunidades para conseguir uma solução pacífica. Lamentavelmente, a comunidade internacional demonstrou que não existe uma vontade real para encontrar um fim para este conflito. É um conflito que dói muito ao povo saharaui, que é vítima disto… Mas também ao povo marroquino.»
As questões da guerra e da paz são sempre complexas e difíceis, mas há evidências internacionalmente aceites. O não adquirir um território pela força é uma base inequívoca do Direito Internacional, que tem sido recorrentemente recordado no caso da invasão da Ucrânia. O não modificar as fronteiras herdadas do colonialismo é um dos pilares da constituição da União Africana, para mais se vai contra a vontade dos povos em causa. Perante situações desta gravidade, é legítimo o recurso às armas. Como diz explicitamente a Constituição da República Portuguesa, ao reconhecer «o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao desenvolvimento, bem como o direito à insurreição contra todas as formas de opressão»
1
Artigo 7º, §3.
.
Até agora o conflito armado, embora de baixa intensidade, tem sido constante como o atestam os comunicados diários do Exército Popular de Libertação Saharaui, desde Novembro de 2020. Mas as suas consequências são múltiplas, para além dos militares mortos e feridos de ambos os lados (cujos números não são públicos) e dos civis de três países, atingidos por drones marroquinos. Implicam uma corrida ao armamento na região, um aumento desproporcionado de gastos militares, com o que isso significa de cortes nas despesas sociais e outras, e o risco de a qualquer momento poder deflagrar um conflito regional. «A vida aqui é muito dura, quase não há trabalho», disse Zein na wilaya de Dakhla, «e agora com a guerra é pior. Não podemos deslocar-nos pelo território libertado [sob controlo da FPOLISARIO] que é cenário de guerra, por isso não podemos comerciar com as populações mauritanas. Também as famílias que tratavam dos camelos e das cabras, viviam disso, não podem fazê-lo, têm de permanecer nos Acampamentos».
Apesar de tudo isto, as decisões do Congresso nesta matéria foram claras e reforçaram a coesão da sociedade saharaui. A esperança continua posta na solução política que há-de permitir a realização de um referendo justo e credível.

Democracia interna

Pela primeira vez, houve dois candidatos à liderança da FPOLISARIO: o Secretário-geral cessante, Brahim Ghali, e um outro veterano, Bachir Mustafa Sayed. A campanha junto dos delegados e delegadas foi curta no tempo, mas aberta. Os resultados foram anunciados no dia 20 de Janeiro: num total de 2.097 delegados/as, votaram 1.870, foram registados 54 votos nulos e Brahim Ghali foi reeleito com 69% dos votos (1253), ficando Bachir Mustafa Sayed com 31% (564).
A eleição para o Secretariado Nacional, órgão principal de decisão entre Congressos, foi também muito participada, tendo havido um grande número de candidaturas. No final, entre os seus 27 membros eleitos, estava Bachir Mustafa Sayed. Tendo havido durante os trabalhos repetidos apelos ao aumento do número de mulheres em posições de responsabilidade, foram eleitas para o Secretariado Nacional 6 mulheres, demonstrando um caminho percorrido, mas ainda a aprofundar.
De acordo com os Estatutos da FPOLISARIO, o Congresso dura em regra cinco dias, podendo ser prolongado. Foi o que aconteceu, dada a decisão de dar a todos os delegados e delegadas a oportunidade de usarem da palavra, se o desejassem. Perante o que estava em jogo, o debate foi intenso e o conclave, iniciado no dia 13, só terminou no domingo, 22.

Solidariedade internacional

O mesmo princípio de ouvir todos e todas aplicou-se aos membros das delegações estrangeiras que se dirigiram ao Congresso durante um dia e meio, nos dias 13 e 14. Cerca de 340 representantes de partidos políticos, de grupos interparlamentares e de organizações de solidariedade e da sociedade civil em geral, de muitos países de todos os continentes, com relevo para África e América Latina, foram protagonistas no início dos trabalhos. Especialmente aplaudidas foram as saudações dos representantes argelinos e mauritanos.
O sistema de tradução simultânea em três línguas (árabe, castelhano e inglês) e os excelentes e incansáveis tradutores saharauis facilitaram a comunicação entre a comunidade solidária e os congressistas. Este foi um elemento, entre muitos outros, demonstrativo da capacidade organizativa da FPOLISARIO que, em tempo de guerra, conseguiu preparar a recepção de perto de 3.000 pessoas (entre delegados, convidados e pessoal de apoio), assegurando transporte, alojamento, alimentação e segurança durante mais de uma semana. Num ambiente sem constrangimentos, adubado pela simpatia das famílias de acolhimento e de todos os responsáveis pelos vários serviços existentes.
Numa terra inóspita onde vivem há quase cinco décadas 173.600 refugiados (último número oficial disponível, Alto Comissariado para os Refugiados, 2017), separados das suas famílias que ficaram no território ocupado ou que estão na diáspora, na altura em que a ajuda humanitária indispensável à sua sobrevivência é cada vez mais difícil, num tempo em que se escolhe fazer a guerra para obter o reconhecimento do direito à autodeterminação e independência e a paz, a solidariedade internacional é muito valorizada.

A luta continua

Ao Congresso seguir-se-á a formação do novo governo da RASD, que terá a tarefa de transpor para a prática as decisões tomadas, enunciadas na Declaração Política final.
Ao regressar a El Aiun, uma parte do grupo de 40 delegados e delegadas que se deslocou do território ocupado para participar no Congresso foi recebida no aeroporto com agressões, insultos e ameaças.
«Temos uma visão de longo prazo, estamos preparados para aprofundar a resistência», disse numa conversa um jovem diplomata. «Não chegámos até aqui para pararmos!», titula o sítio SaharawisToday na sua página de entrada, onde também se encontra informação de base e a reportagem sobre o XVI Congresso.