sábado, 9 de abril de 2022

Boletim nº 107 - Abril 2022

ESPANHA: «ESCOLHER O LADO DO OPRESSOR»

A decisão do governo de Espanha de subscrever as posições de Rabat relativamente ao Sahara Ocidental, não sendo propriamente uma surpresa, provocou alguma indignação, visível nas múltiplas iniciativas e artigos de opinião a que deu origem.

De costas para o Direito Internacional

Entre estes artigos encontra-se o de María López Belloso «Chaves para compreender a decisão de Espanha sobre o Sahara: o quê e quem está por detrás disso?», vindo a público em 21 de Março de 2022 e que aqui traduzimos.
«A carta do Presidente Pedro Sánchez ao Rei de Marrocos, tornada pública em 17 de Março, provocou numerosas e díspares reacções, embora a maioria delas coincida na crítica tanto à substância quanto à forma da carta.
«O debate já está em curso e há quem leia esta notícia em termos globais, procurando ligações entre este anúncio e as alianças geopolíticas internacionais em torno da crise na Ucrânia.

A solução do conflito: política ou Direito?

«A primeira questão que nos devemos colocar para compreender o alcance deste movimento, cujo impacto político não pode ser posto em dúvida, é se a solução para o conflito do Sahara Ocidental pode vir da política ou do direito internacional.
«Desde o anúncio público da posição de Pedro Sánchez, muitos salientaram a sua incoerência com a defesa do direito internacional e da soberania nacional na Ucrânia. No entanto, como fizemos quando Trump anunciou o reconhecimento da soberania marroquina sobre o território, é necessário lembrar que apesar da inter-relação entre política e direito internacional, este pronunciamento não altera a natureza jurídica do conflito ou a sua solução.
«Assim, é necessário referir os aspectos fundamentais que determinam o quadro jurídico aplicável para a resolução do conflito: a natureza do território, a representação legítima da sua população, o quadro jurídico aplicável para a sua resolução e o papel de Espanha.
«O território do Sahara Ocidental é um território não-autónomo, pelo que, segundo as resoluções da ONU (Resolução 2625 (XXV) da Assembleia Geral da ONU, adoptada a 24 de Outubro de 1970), a sua natureza só mudará quando "o povo da colónia ou do território não-autónomo tiver exercido o seu direito à autodeterminação em conformidade com a Carta [das Nações Unidas] e, em particular, com os seus objectivos e princípios" (p. 174).
«Esta natureza foi reiterada pelo consultor jurídico da ONU Hans Corell (S/2002/1611), por exemplo, ou pelas várias decisões dos tribunais europeus sobre a legalidade da exploração dos recursos naturais no território).
«Esta natureza do território também define o estatuto das partes, e especificamente a natureza da presença marroquina no território como uma ocupação (ver Res 377/19751 do CSNU e Res 34/372 da AGNU de 1979 e a nossa análise anterior).
«Estes mesmos acórdãos tornam igualmente claro que o legítimo representante do povo saharaui é a Frente POLISARIO (Acórdão do TG de 29 de Setembro de 2021) e que, portanto, qualquer decisão que afecte o bem-estar do povo saharaui, a gestão dos seus recursos naturais ou a determinação do seu futuro deve ser objecto de consulta com o seu legítimo representante.
«Dada a natureza do território e o estatuto das partes, não existe outro quadro para a resolução do conflito além do estabelecido pelo direito internacional e pelas resoluções das Nações Unidas, e isto implica a realização do direito à autodeterminação pelo povo saharaui.
«Contudo, este quadro não é ajudado pelo laxismo na utilização da linguagem pela própria ONU, que tem vindo a modificar a sua formulação para uma solução do conflito, desde a defesa intransigente da autodeterminação (ver, por exemplo, a Resolução 621 de 1988), até à procura de uma "solução política mutuamente aceitável" (por exemplo, a Resolução 1541 de 29 de Abril de 2004) ou o apelo a um "processo político sob as suas directrizes" pelo porta-voz da ONU Stéphane Dujarric na sua reacção à iniciativa do governo espanhol.
«Finalmente, o estatuto jurídico do território marca também a natureza de Espanha como poder administrante do território, embora os vários governos espanhóis tenham tentado dissociar-se da sua responsabilidade.

Uma traição nova ou uma nova traição?

«Tendo em conta as bases jurídicas aplicáveis, qual é o impacto real do anúncio do Presidente Sanchez? A Frente POLISARIO recorda que esta posição não altera o estatuto do território nem a responsabilidade de Espanha, enquanto alguns afirmam que este anúncio não implica mudança, uma vez que a traição do PSOE remonta ao tempo de Felipe González.
«Embora seja verdade que o Partido Socialista há muito que alinhou com a proposta marroquina, nunca antes tomou uma posição oficial que contrarie a tradicional "neutralidade activa" da posição espanhola. Por esta razão, muitas das críticas são dirigidas à forma como esta mudança foi feita, sem informar nem os parceiros governamentais da coligação, nem a oposição, nem o público.
«As críticas mais frouxas apenas censuram a Pedro Sánchez a forma como esta decisão foi comunicada, argumentando que, dada a sua importância, deveria tê-lo sido de forma consensual e transparente, e não como uma reacção à divulgação da carta por parte de Marrocos.
«Contudo, estas posições ignoram o facto de que esta mudança de rumo, para além de contrariar a posição histórica da política externa espanhola e as referidas bases do direito internacional, contradiz o próprio programa eleitoral do Partido Socialista de 2019 (que na página 286 prometeu respeitar o princípio da autodeterminação do povo saharaui), pelo que as suas bases e eleitores deveriam também exigir explicações, não só relativamente à forma como ao conteúdo.

Estratégia política nacional ou alianças estratégicas internacionais?

«Assim, muitos se perguntam porquê esta mudança e porquê agora, quando mais necessário é estreitar os laços com a Argélia, um aliado histórico do povo saharaui. Embora o argumento oficial que emerge dos fragmentos publicitados da carta e das declarações de alguns membros do partido apontem para a necessidade de encerrar a crise diplomática com Marrocos, é necessário analisar o impacto global desta decisão para saber se ela responde a uma estratégia política nacional ou a alianças estratégicas internacionais.
«Em primeiro lugar, convém recordar que Marrocos reconheceu que a origem desta crise diplomática não foi o acolhimento hospitalar do dirigente da Frente POLISARIO Brahim Ghali, mas sim a posição da Espanha após o anúncio de Trump do reconhecimento da soberania sobre o território.
«Neste sentido, a decisão tomada pelo governo de Pedro Sánchez seria uma concessão à chantagem marroquina para iniciar outra crise com a Argélia, que afirma não ter sido informada desta mudança de direcção.
«Além disso, a oposição critica o governo por não ter informado o Parlamento sobre esta mudança e os seus parceiros governamentais pediram mesmo ao Presidente para comparecer perante o Parlamento para explicar esta mudança.

As mãos que puxam os cordelinhos

«Contudo, já há quem veja nesta mudança um interesse que vai para além de uma tentativa de resolver uma crise bilateral, uma mudança que responde a interesses geopolíticos mais amplos.
«Em primeiro lugar, é difícil separar qualquer decisão actual da crise ucraniana. Vale a pena recordar que Marrocos se absteve na votação contra a Rússia na Assembleia Geral, consciente das relações da Argélia com a Rússia e do papel do país euro-asiático na região.
«Outras vozes sugerem que a Espanha está a seguir os passos dos EUA e da Alemanha, descongelando as relações com Marrocos e reforçando assim a aliança com o que consideram ser um parceiro-chave na região.
«Vale a pena assinalar que, também no caso da Alemanha, foi Marrocos que divulgou uma carta do recém-eleito chanceler para dar conta do que entendia ser um aval ao seu plano de autonomia, apesar da Alemanha afirmar não ter mudado a sua posição oficial sobre o conflito. O que é difícil de compreender, porém, é o momento desta mudança de posição, quando a aliança com a Argélia é estratégica na crise energética europeia.
«Dadas estas questões, é lógico perguntar quem é a principal força motriz por detrás desta medida, e tudo aponta em duas direcções: os EUA e a França. Ambos os países têm interesses claros na região e esta não é a primeira vez que o conflito do Sahara Ocidental se insinua nas chaves geopolíticas da região e especialmente nas repercussões das relações EUA, Rússia e China.
«Por outro lado, a França é o principal apoiante da posição marroquina e a harmonia entre o governo espanhol de Pedro Sánchez e o Presidente Macron foi evidente na reunião de 15 de Março, imediatamente antes do anúncio desta mudança de posição.

Mensagens ao povo saharaui

«O que é certo é que esta situação envia uma mensagem clara ao povo saharaui e à Frente POLISARIO. Em primeiro lugar, é evidente que nem todas as guerras são iguais e que o impacto político e social dos conflitos é condicionado por questões como a raça e a proximidade cultural e, acima de tudo, por interesses económicos.
«O empenho do povo saharaui numa solução pacífica para um conflito que dura há mais de 46 anos só levou ao ostracismo e ao bloqueio mediático, quebrado apenas quando a violência se intensificou no território. Assim, é difícil manter o compromisso para com a paz, especialmente entre as gerações saharauis mais jovens.
«Por outro lado, a incoerência na aplicação do direito internacional leva o povo saharaui a desconfiar da comunidade internacional, que vê Marrocos a violar repetidamente a lei e mesmo os acordos assinados, sem quaisquer repercussões legais ou políticas.
«Finalmente, a terceira mensagem que esta situação envia ao povo saharaui é que este não pode confiar na classe política espanhola. Ao contrário de outros países como Portugal, que fez da descolonização de Timor-Leste uma questão nacional até à resolução do conflito com a Indonésia, todos os partidos políticos espanhóis se têm caracterizado por a oposição tomar uma posição sobre o Sahara Ocidental e o governo tomar a posição oposta.
«Apesar das críticas dos seus parceiros governamentais e dos partidos que facilitaram a sua investidura, é pouco provável que a sua reacção vá além das declarações mediáticas e de alguma pergunta no parlamento.
«E como disse o recentemente falecido Desmond Tutu: "Se fores neutro em situações de injustiça, escolheste o lado do opressor". Parece claro que cada vez mais pessoas estão a escolher o "lado do opressor" e resta saber como reagirão as pessoas oprimidas.»