sábado, 5 de fevereiro de 2022

Boletim nº 105 - Fevereiro 2022

 

2021: UM ANO DE INCERTEZAS

Passados 46 anos da invasão marroquina do Sahara Ocidental continua a não se vislumbrar o desatar do “nó-górdio” que prende esta questão.

À espera que «eles se entendam»

Os acontecimentos do final de 2020 com o recomeço da guerra entre Marrocos e a Frente POLISARIO, a declaração da aceitação dos EUA da anexação marroquina, o crescente interesse mediático gerado pela questão, a reactivada diplomacia argelina, a “entrada em cena” de Israel em Rabat, a debilidade da situação política, económica e social em Marrocos, e a persistência saharaui, serviram de enquadramento ao que de relevante ocorreu em 2021.

O Sahara Ocidental não é Marrocos

A diplomacia saharaui intensificou os seus esforços, lutando pelos direitos retirados ao seu povo, incluindo o da soberania sobre os seus recursos naturais, ilegalmente explorados por Marrocos com o apoio de países como a França, a Espanha e os EUA que têm contribuído fortemente – a par da neutralidade cúmplice da União Europeia (UE) e do imobilismo da ONU – para o impasse que a questão vive internacionalmente.
A decisão de anulação pelo Tribunal de Justiça da União Europeia de dois acordos comerciais entre a União Europeia (UE) e Marrocos foi, provavelmente, o acontecimento mais significativo em 2021, uma vez que os mesmos tinham sido assinados sem o consentimento do povo saharauí. Apesar de não se encontrar ainda transitado em julgado, trata-se de uma decisão histórica do tribunal da UE que reconheceu a Frente POLISARIO como o único representante legítimo do povo saharaui.
Entretanto o Peru restabeleceu as relações diplomáticas com a República Árabe Saharaui Democrática (RASD) em 8 de Setembro de 2021 e a Bolívia anunciou o reforço das relações bilaterais entre os dois Estados.

Os EUA forçam Marrocos a aceitar Staffan De Mistura

Outro facto relevante de 2021 foi a nomeação, após um impasse que durava há mais de dois anos, do novo Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU para o Sahara Ocidental, o diplomata italo-sueco Staffan De Mistura, almejando-se que a mesma seja um passo mais na direcção correcta: o exercício de autodeterminação do povo saharaui.
Vários países demonstraram o seu apoio aos esforços de De Mistura, apelando ao início de negociações directas entre as partes em conflito (Marrocos e a Frente POLISARIO).
Segundo o reafirmado a 1 de Dezembro por Brahim Ghali, Presidente da RASD, Marrocos tem duas opções: «encetar o caminho aprovado no âmbito da ONU baseado na organização de um referendo de autodeterminação, ou uma solução negociada defendida pela União Africana em Março de 2021, através do lançamento de conversações directas (sem pré-condições) entre a RASD e Marrocos, respeitando os artigos da carta fundadora da UA».

ONU prolonga a sua missão no Sahara Ocidental

Em 2021 assistiu-se também a uma deterioração ao nível de violações de direitos humanos no território saharauí ocupado, com uma renovada e cruel repressão que visou activistas de direitos humanos, jornalistas e mulheres, por parte do ocupante marroquino. O caso de Sultana Jaya e da sua família revelou-se merecedor de grande preocupação, perante o imobilismo manifestado pela ONU.
Sujeita a prisão domiciliária, a activista e a sua família sofreram diversas formas de intimidação, nomeadamente agressões físicas, tortura e violação. A situação desumana em que Sultana Jaya se encontra foi merecedora de atenção por parte de ONGs internacionais que alertaram para o perigo de vida que corria.
Numa espiral de agressão, Marrocos continua a violar os direitos humanos no Sahara Ocidental “nas barbas” da ONU e do seu Conselho de Segurança. Urgia assim ser consequente com os apelos renovados de alargamento do mandato da MINURSO para a monitorização da situação de direitos humanos nos territórios ocupados. Porém, uma vez mais o Conselho de Segurança prorrogou em 2021 o mandato da sua Missão sem ter em conta a resolução desta urgência.

Administração Biden distancia-se da política de Trump

De forma genérica, a passagem da administração americana de Donald Trump para Joe Biden, nos inícios de 2021, deixou nas mãos da nova presidência um imbróglio políitico-diplomático de assinalável dimensão. Não querendo dar um passo atrás na decisão de reconhecer a anexação marroquina do território do Sahara Ocidental, os EUA também não dão passos subsequentes que a confirmem, como a abertura de um consulado em Dakhla e inclusive, de forma aparentemente contraditória, apoiam publicamente uma resolução do conflito no âmbito da ONU.
Por outro lado, decorrente dos Acordos (tripartidos) de Abraão, Marrocos faz depender o progressivo fortalecimento (público) das relações com o Estado de Israel com a confirmação do acordado na era Trump por parte da administração Biden.

A ruptura das relações entre a Argélia e Marrocos

O carácter “belicoso” da diplomacia marroquina sobressai em 2021, à medida que passa a contar activamente com a cooperação político-militar de Israel. Por outro lado, Marrocos evidencia sinais de crescente impaciência face à recusa de muitos países ocidentais em alterarem o seu posicionamento na questão saharaui, seguindo as pisadas de Donald Trump. De forma aberta, surgem crises com a Espanha, a Alemanha e a França, sendo que neste último caso esta foi empolada devido à campanha de espionagem lançada pelos serviços de informação marroquinos, recorrendo à instalação do programa Pegasus da empresa israelita NSO em inúmeros telemóveis de altos responsáveis do governo francês, incluindo alguns ligados à Presidência da República. No diálogo entre Estados, a técnica da chantagem diplomática evidencia-se, como se assistiu no enfrentamento “Marrocos/Espanha” (após ter-se tornado público que Ghali esteve hospitalizado em Espanha devido a problemas de saúde decorrentes da COVID19), tendo o reino marroquino incentivado, como forma de pressão, a passagem livre através da sua fronteira de milhares de cidadãos marroquinos e de outros países, para os enclaves espanhóis de Ceuta e Melila.
Por outro lado, a Argélia passou a ter uma actividade diplomática mais empenhada, assertiva e visível. O corte de relações diplomáticas entre a Argélia e Marrocos ocorrido no ano em análise, que levou ao encerramento do pipeline para exportação do gás natural argelino via Marrocos, contribuiu para um maior isolamento de Rabat, uma fragilização da sua capacidade de auto-sustentação energética e uma maior incerteza nas suas contas públicas.

E Portugal?

O interesse pela questão do Sahara Ocidental em Portugal ganhou um novo impulso com a visita, em finais de Setembro e princípios de Outubro, do diplomata saharaui acreditado em Bruxelas, Omar Mih. O embaixador teve a oportunidade de se encontrar com as Comissões parlamentares dos Negócios Estrangeiros e dos Assuntos Europeus, assim como com um conjunto de deputados fora do âmbito das comissões. A sua presença em Lisboa traduziu-se numa atenção particular da comunicação social, com vários órgãos, quer da imprensa escrita, quer rádio e TV, a dedicar atenção à sua mensagem.
Esta visita também não foi ignorada pelo governo marroquino que deslocou a Lisboa um representante da organização "Saharauis pela Paz", recebido na AR pela Secretária Nacional para as Relações Internacionais do PS, Jamila Madeira.
Em Outubro, uma jornalista do diário Público visitou, com um conjunto de jornalistas de vários países, os acampamentos de refugiados saharauis na Argélia, o que já não se verificava há vários anos, produzindo reportagens actuais sobre o conflito.
A propósito do Dia Internacional dos DH (10 de Dezembro), 12 organizações não-governamentais portuguesas com intervenção na área da igualdade entre mulheres e homens enviaram uma Carta Aberta ao Primeiro-ministro marroquino, Aziz Akhannouch, denunciando a situação dos direitos humanos nos territórios ocupados do Sahara Ocidental e em Marrocos, que também encontrou eco na comunicação social.
Como diz o ditado popular, e a questão de Timor-Leste comprovou, «água mole em pedra dura ...».