sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Boletim nº 93 - Fevereiro 2021

 

ONU: GUTERRES A CAMINHO DE UM SEGUNDO MANDATO?

No passado dia 11 de Janeiro António Guterres anunciou formalmente a sua disponibilidade para cumprir um segundo mandato enquanto Secretário-geral das Nações Unidas. As opiniões dividem-se entre os que o consideram uma “figura simpática” e os que o consideram uma “triste figura”.

Uma figura pouco convincente

Thalif Deen, jornalista da agência IPS junto das Nações Unidas, falou com alguns dos que tiveram a oportunidade de colaborar com António Guterres sobre o seu desempenho. Um dos entrevistados foi Kul Gautam, ex-director geral adjunto da UNICEF. Para ele, Guterres «sofreu de muitos obstáculos indevidos na realização do seu primeiro mandato, que coincidiu com a presidência nos Estados Unidos de Donald Trump, especialmente contrários ao multilateralismo e em particular ao sistema das Nações Unidas.
«Infelizmente, assegurou Gautam, com dirigentes como o russo Vladimir Putin, o britânico Boris Johnson, o brasileiro Jair Bolsonaro, o indiano Narendra Modi, o turco Tayyip Erdogan e o saudita Mohammed bin Salman, Guterres sofreu um "assédio paralisante", ao qual se acrescentou em 2020 a pandemia da COVID, o que reduziu ainda mais o seu campo de acção.
«Apesar de tudo isso, considerou que Guterres se tem baseado em princípios, tem sido coerente, eloquente e apaixonado na defesa de uma agenda ousada sobre mudanças climáticas, os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a Cobertura Universal da Saúde (UHC) e a igualdade de género, promovendo mais mulheres em cargos de responsabilidade na ONU.
«Gautam reconheceu que "Guterres foi demasiado brando com os direitos humanos e devia ter enfrentado países como a Arábia Saudita, a Hungria, as Filipinas, o Egipto e a China com mais vigor nas questões de direitos humanos".
«Mas quando se trata de pesar os prós e os contras, considerou que o actual Secretário-geral provou ser reflectido, comedido, sábio, maduro e diplomaticamente muito habilidoso, e que seria difícil encontrar outra figura com essas qualidades e que tenha o apoio unânime dos cinco membros permanentes e com direito de veto do Conselho de Segurança.»
Outra voz citada no despacho da IPS é a de Purmina Mane, vice-Secretária-geral da ONU e directora executiva adjunta do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA). «Seja qual for o resultado da próxima eleição, para Mane, o legado já deixado pelo primeiro mandato de Guterres é o de "um ambiente significativamente mais equitativo de género na ONU", que até "normaliza" que uma mulher possa finalmente dirigir o organismo.»
Em nenhuma das várias opiniões recolhidas são feitas referências explícitas às questões políticas de natureza estrutural — o estatuto do Secretário-geral e o seu grau de independência, o como limitar o poder dos Estados dando aos actores sociais a possibilidade de se fazerem ouvir, ... – que se arrastam há décadas e ao papel desempenhado por António Guterres nesse combate de adequação da organização aos tempos que vivemos.
O grupo dos antigos dirigentes políticos reformados (que se apresentam como os ”Elders” (uma organização fundada por Nelson Mandela), formalizou em finais do século passado um conjunto de pistas para uma reformulação da ONU. Como escreveu Bertrand Badie, «a Carta [das Nações Unidas] data de uma época em que as relações internacionais podiam ser equiparadas a um confronto de potências. O mundo mudou. O essencial das tensões internacionais decorre hoje dos formidáveis contrastes sociais que pesam sobre o planeta. Obstinando-se no político-militar, o Conselho de Segurança já não vê o primordial, feito de decomposições sociais, de falhanços da segurança humana, de fome, de desregulação climática, de precariedade sanitária, de desigualdades crescentes … Para lá dos mísseis abre-se o tempo das relações “inter-sociais”; é preciso saber geri-las.»
1
BADIE, Bertrand, «As Nações Unidas face ao conservadorismo das grandes potências», Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, Junho 2015, pp 18-19.
Qual foi o contributo de António Guterres para este desafio, para além da promoção da igualdade de género já referida? Ignoramos.
Quando foi nomeado, alguns – o nosso caso – encararam essa nomeação com certa expectativa, dado o trabalho positivo que tinha realizado enquanto responsável das Nações Unidas pelo difícil dossier dos refugiados. No que à questão do Sahara Ocidental dizia respeito, visitara os acampamentos em solo argelino, dialogara com os seus responsáveis e com a Frente POLISARIO, tentara obviar a algumas das suas dificuldades.
A escolha do antigo presidente alemão Horst Köhler como seu Enviado Pessoal para a questão do Sahara Ocidental pareceu vir dar uma nova dinâmica ao processo de descolonização daquele território. Mas como diz o ditado, “foi sol de pouca dura”. Guterres mostrou-se incapaz de dar continuidade aos avanços alcançados por Köhler, nem sequer para encontrar um seu substituto, pelo qual se espera há 2 anos. E esta incapacidade transparece igualmente nos relatórios que tem a responsabilidade de apresentar periodicamente ao Conselho de Segurança, onde sobressai de forma crescente a “neutralidade” dos conceitos utilizados. Não admiram assim as críticas, também elas crescentes, ao desempenho do Secretário-geral. Para além da própria Frente POLISARIO, lembremos ainda o jornalista Matthew Lee da agência Inner City Press que denunciou neste princípio de ano algumas das cumplicidades da equipa de comunicação do Secretário-geral com a agência de imprensa marroquina MAP e a sua recusa em responder a questões consideradas “inoportunas”.
Neste mais do que provável segundo mandato, António Guterres vai encontrar um quadro internacional com uma outra dinâmica. Veremos se terá a capacidade e a coragem política para tirar partido dele.