quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

GUERRA NO MÉDIO-ORIENTE ALTERA GEOPOLÍTICA AFRICANA

(Boletim nº 128 - Janeiro 2024)

Obiora Ikoku, um jornalista e activista nigeriano, escreveu um bem documentado artigo sobre as repercussões que o conflito israelo-palestiniano está a ter em África, tanto nos países de herança colonial britânica como francófona. É desse artigo que transcrevemos aqui excertos.

Israel à conquista de África
«A África teve sempre uma importância estratégica para Israel e a Palestina. Os 55 Estados membros da União Africana (UA) representam um bloco de votos vital nas Nações Unidas [dos 55 Estados da UA só 54 têm representação na ONU visto a República Árabe Saharaui Democrática ainda ser considerada à luz do direito internacional um território não-autónomo] e noutros organismos internacionais. E tanto Israel como a Palestina têm dado prioridade à política externa com os Estados africanos ao longo da sua história.
Ao longo de dois meses de guerra em Gaza, o bloco africano dividiu-se em três grandes grupos, separados por posições opostas face ao conflito. De um lado, o Zimbabué e a África do Sul, juntamente com os países da Liga Árabe, Tunísia, Argélia, Sudão e Chade, manifestaram o seu apoio à Palestina. Do outro, o Quénia, o Gana, a Zâmbia, os Camarões e a República Democrática do Congo apoiaram abertamente Israel. Numa posição intermédia, a Nigéria e o Uganda, cuja neutralidade consiste (…) em apelar a um desanuviamento.
Nos últimos anos Israel tem desenvolvido iniciativas diplomáticas no continente, depois de um continuado declínio a seguir à guerra israelo-árabe de 1973. (…). No entanto, a escalada em Gaza ameaça estes ganhos diplomáticos. No final de Outubro de 2023, cerca de 35 países africanos votaram na Assembleia Geral da ONU a favor da resolução proposta pela Jordânia que apelava à "protecção dos civis e ao cumprimento das obrigações legais e humanitárias". Marrocos e o Sudão, dois países que normalizaram as relações diplomáticas com Israel como parte dos Acordos de Abraão em 2020, estavam entre os países que votaram a favor. Entretanto o Chade, outro país de maioria muçulmana que restaurou recentemente os laços diplomáticos com Israel, chamou o seu Encarregado de Negócios, invocando a "morte de numerosos civis inocentes" e a necessidade de um "cessar-fogo para uma solução duradoura" para a questão palestiniana. De igual modo o Quénia, o maior aliado de Israel no Corno de África, recuou na sua declaração inicial de solidariedade com Israel, e o Ruanda, outro aliado de Israel, enviou ajuda humanitária para Gaza.»

Uma resposta polifónica

«(…). A UA adoptou agora uma posição mais dura contra a guerra de Israel. Numa declaração divulgada no dia do ataque do Hamas, a União atribuiu a responsabilidade pelo conflito a Israel, afirmando que "a negação dos direitos fundamentais do povo palestiniano, em particular o da existência a um Estado independente e soberano, é a principal causa da permanente tensão israelo-palestiniana". (…).
Para Irit Back, professora e especialista em estudos sobre África e o Médio Oriente no Centro Moshe Dayan (Universidade de Telavive), a "divisão reflecte as diversas circunstâncias geoestratégicas, históricas e políticas dos países africanos, por exemplo a aliança tradicional entre o ANC [Congresso Nacional Africano] da África do Sul e a OLP [Organização para a Libertação da Palestina].
O que os une é o passado comum de luta contra o colonialismo e a opressão, bem como a crítica ao apoio dado por Israel ao regime do apartheid sul-africano na década de 1970. De acordo com o que Sascha Polakow-Suransky revelou no seu livro The Unspoken Alliance, Israel ofereceu várias formas de apoio ao regime racista, incluindo o treino das unidades militares de elite sul-africanas, o fornecimento de tanques, espingardas Galil e tecnologia de aviação, bem como uma tentativa conjunta de produzir armas nucleares. Pouco depois da sua libertação da prisão, em 1990, Nelson Mandela declarou que "o povo da África do Sul nunca esquecerá o apoio de Israel ao regime do apartheid". (…).
A Argélia, também membro da Liga Árabe, há muito que apoia os palestinianos na sua luta contra a ocupação israelita. Enviou apoio militar aos exércitos árabes que lutaram contra Israel nas guerras de 1967 e 1973, e apoiou a Palestina na frente diplomática. Em 1975 votou a favor de uma resolução da Assembleia Geral da ONU que equiparou o sionismo ao racismo e, depois da OLP ter proclamado o Estado palestiniano em 1988, a Argélia foi o primeiro país a reconhecê-lo.
Mesmo após alguns países do Norte de África se terem aproximado de Telavive, a Argélia manteve-se firme na sua recusa em reconhecer o Estado de Israel. Em 2020, quando os Acordos de Abraão começaram a aproximar Israel e alguns países árabes, o Presidente argelino Abdelmadjid Tebboune insistiu que o seu país "nunca participaria" na "corrida para a normalização".
O Egipto tornou-se o primeiro país árabe a assinar um tratado de paz com Israel em 1979, seguido pela Jordânia em 1994. Desde 2020, mais quatro países da Liga Árabe – Emiratos Árabes Unidos, Bahrein, Sudão e Marrocos – assinaram os Acordos de Abraão de normalização das relações com Israel.
O acordo assinado por Cartum permitiu-lhe ser retirado da lista negra do terrorismo dos EUA. Mas, ao contrário de Marrocos, o processo de normalização tem avançado lentamente, em parte devido à guerra civil sudanesa. (…). Mas quando o Sudão decidiu, dois dias após o início da guerra em Gaza, restabelecer os laços com o Irão (…), ficou a dúvida sobre a efectividade deste acordo.
Por seu lado Marrocos absteve-se de condenar publicamente Israel, limitando-se a expressar a sua "profunda preocupação com a deterioração da situação e o início das operações militares na Faixa de Gaza". No entanto, o país tem assistido a alguns dos maiores protestos pró-Palestina do continente, envolvendo dezenas de milhares de manifestantes. A matizada posição de Rabat demonstra a sua hesitação em pôr em causa as relações com Israel. O que está em causa para Marrocos é o reconhecimento israelita da sua soberania face ao disputado Sahara Ocidental, que o opõe à Frente POLISARIO, apoiada pela Argélia, entre outros.
Na mesma linha, a posição pró-Israel do Quénia reflecte a importância estratégica do país no Corno de África, especialmente o seu papel como primeira linha de defesa numa região assolada pelo crescimento de grupos islâmicos de linha dura. (...).
Desde o estabelecimento de laços diplomáticos entre o Quénia e Israel há seis décadas, estes países têm colaborado no desenvolvimento económico e na segurança. (…). Após 1976, quando Nairobi deu apoio operacional a uma força militar israelita durante a crise dos reféns de Entebbe, no Uganda, o Quénia tem sofrido uma série de ataques no seu território. (…). Entre eles, contam-se o atentado bombista de 1980 contra o Hotel Norfolk, de propriedade judaica, (...), o atentado bombista em 2002 contra o Hotel Paradise em Mombaça, de propriedade israelita, e o atentado de 2013 contra o centro comercial Westgate, também de propriedade israelita, em Nairobi.
O caso da Nigéria ilustra bem os altos e baixos dos laços entre África e Israel ao longo da história. Embora a Nigéria tenha assumido uma posição neutral na actual guerra em Gaza, o gigante da África Ocidental tem alternado entre o apoio aos palestinianos e o apoio a Israel. (…).
Após a guerra israelo-árabe de 1973, a Nigéria cortou relações com Telavive, que só foram restabelecidas duas décadas mais tarde, em Setembro de 1992, levando ao florescimento do comércio entre os dois países. Em 2013, o antigo presidente Goodluck Jonathan tornou-se o primeiro chefe de Estado nigeriano a visitar Israel.»

Ofensiva diplomática

«A reacção de África à guerra israelo-palestiniana mostra também o resultado da ofensiva diplomática de Israel para restabelecer os laços com África. Nos últimos anos, Netanyahu liderou o esforço israelita de entrar em África. Fez escala na Etiópia, no Quénia, no Ruanda e no Uganda durante uma visita de Estado em 2016. No ano seguinte, Netanyahu discursou na Libéria na Cimeira de Chefes de Estado e de Governo da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), tornando-se o primeiro dirigente fora de África a fazê-lo. Até agora, Israel tem reforçado as relações com uma série de países africanos, em especial com vários Estados importantes do Norte de África e da África Subsariana e pelo menos 46 países da UA já reconhecem Israel.
"Nos últimos 10 anos, Israel tem feito esforços significativos para construir relações com África, mas estas são sobretudo transaccionais, uma forma de ganhar apoio na ONU e noutros fóruns internacionais", disse à Inkstick o jornalista Antony Loewenstein, que esteve em Jerusalém entre 2016 e 2020.
No livro The Palestine Laboratory, Loewenstein investigou a tecnologia militar israelita, a recolha de dados e a guerra cibernética desenvolvidas e testadas no combate aos palestinianos na Cisjordânia ocupada e em Gaza. Segundo ele, essa tecnologia tornou-se moeda de troca nos negócios de Israel, quer com ditaduras quer com democracias, incluindo as africanos. (…).
De acordo com o Ministério da Defesa de Israel, as exportações de defesa do país para África aumentaram para 6,5 mil milhões de dólares em 2016 – um aumento impressionante de 800 milhões de dólares em relação ao ano anterior. Estas exportações significam lucros elevados para as empresas israelitas, mas Loewenstein argumenta que os negócios lucrativos não são o único objectivo. Israel espera que os países-cliente, que beneficiam do seu armamento e da sua tecnologia de espionagem, mudem a sua posição em votações importantes na ONU. (…).
A 30 de Dezembro de 2014, o enviado nigeriano ao Conselho de Segurança da ONU, Joy Ogwu, absteve-se numa votação que exigia que Israel pusesse fim à sua ocupação de Gaza e da Cisjordânia. Em Abril de 2013, a Nigéria tinha pago 40 milhões de dólares a uma empresa israelita, a Elbit Systems, por um sistema de telecomunicações e vigilância que poderia ajudar os esforços do regime a controlar as actividades dos cidadãos na Internet.
O programa de espionagem Pegasus, criado pela empresa israelita NSO Group, também se generalizou em África. Descrito como "a arma cibernética mais poderosa do mundo", o Pegasus foi associado a vários abusos cometidos por regimes africanos, nomeadamente no Ruanda, no Gana, em Marrocos e no Togo.
"Há muitas provas de que Israel apoia regimes repressivos em África e alguns desses Estados têm vindo a apoiar Israel nas últimas semanas", acrescentou Loewenstein. "Não creio que seja uma coincidência". (…).»

MARROCOS: CORRUPÇÃO E REPRESSÃO

(Boletim nº 128 - Janeiro 2024)

A passagem do primeiro aniversário da revelação do processo de corrupção dos eurodeputados, vulgarmente designado por "Marrocosgate", foi a oportunidade para a divulgação de mais elementos sobre as teias deste processo.

Marrocos: a luta pela liberdade

A corrupção

Que envolveu Abderrahim Atmoun, o embaixador de Marrocos acreditado em Varsóvia, «acusado de pagar campanhas políticas e de oferecer presentes luxuosos a deputados do Parlamento Europeu», como Pier Antonio Panzeri e Eva Kaili, entre outros.
Estes "outros" não se limitaram ao PE, como agora foi revelado. A «unidade #Investigation» da RTBF — o canal francófono da Rádio Televisão Belga – «investigou as práticas da diplomacia marroquina na Bélgica. Descobriu as suas ligações surpreendentes com o deputado federal Hugues Bayet (PS) e com a deputada regional de Bruxelas Latifa Aït-Baala (MR) [Mouvement Réformateur].» Esta deputada «produz e realiza filmes sobre a história do Sahara Ocidental e da Frente POLISARIO. Para o efeito, pôde contar com o apoio financeiro das autoridades marroquinas. (…) Ficamos a saber que a sua associação, Freemedia, recebeu 165.000 dirhams, o equivalente a 15.000 euros, em 2010-2011. (…). Noutro documento, uma nota de orientação em papel timbrado da sua associação Freemedia, descobrimos as intenções prosseguidas por Latifa Aït-Baala com o seu filme sobre a Frente POLISARIO. A nota diz o seguinte: "É agora necessário levantar o véu sobre a verdadeira face da POLISARIO e a sua falta de legitimidade para defender ou representar qualquer população, causa ou interesse". Os documentários de Latifa Aït-Baala foram exibidos em lugares de poder, como o Parlamento Europeu e o Parlamento Federal [belga].»
Quanto a Hugues Bayet, que foi eurodeputado entre 2014 e 2019, colaborou com Pier Antonio Panzeri nos dossiers ligados a Marrocos. «Em Maio de 2022 lançou o COBESA, o Comité belga de apoio ao plano marroquino de autonomia do Sahara. (...). Este comité afirmava claramente as suas ambições: encorajar o governo belga a tomar uma posição a favor da proposta marroquina. (…). A inauguração do COBESA no Press Club de Bruxelas contou com a presença do embaixador marroquino, Mohamed Ameur. (…). Segundo informações recolhidas junto do Press Club, (...) o "embaixador visitou brevemente a sala alguns dias antes. Pagou a factura no valor de 620 euros".»
«Em 20 de Outubro de 2022, o deputado do PS levantou uma questão na Câmara dos Deputados. Tendo como alvo Hadja Lahbib, a Ministra dos Negócios Estrangeiros [da Bélgica], que se encontrava de visita a Marrocos, pediu ao governo que tomasse uma posição sobre o plano de autonomia marroquino para o Sahara Ocidental: "para os socialistas, parece muito claro que a nova proposta de Marrocos e o seu plano de autonomia para o Sahara constituem uma base bastante séria para o início das negociações".»
Interrogado pela RTBF sobre a actividade deste deputado do PS, Pierre Galand, ex-senador deste partido que acompanha de muito perto o processo de descolonização do Sahara Ocidental, declarou: «"Não conheço a história dele. Não sei porque é que ele criou este comité assim de repente. Só vos posso dizer que os marroquinos têm tendência a comprar pessoas. É tudo o que há a dizer. Eles pagam. (…). Há anos que Marrocos faz isso."» E contou uma história passada com ele, fundamentando a sua afirmação.
«As acusações contra Hugues Bayet são graves. No final deste inquérito, enviámos uma última pergunta ao Partido Socialista, perguntando muito claramente quais eram as verdadeiras ligações entre Hugues Bayet e as autoridades marroquinas. O Partido Socialista nunca respondeu a esta pergunta específica.»
Mas o trabalho jornalístico não se ficou por aqui. «A unidade #Investigation da RTBF investigou o MR e as suas "ligações" com o Sahara Ocidental, um território sob ocupação marroquina. No outono de 2022, o partido de Georges-Louis Bouchez fez uma série de declarações oficiais e de deslocações à região.»
Seguem-se as «explicações em três actos.» O primeiro decorreu em Setembro de 2022, quando quatro parlamentares deste partido se deslocaram a Marrocos, com uma passagem-relâmpago por El Aiun, a capital do Sahara Ocidental ocupado. Passagem esta que foi revelada quatro meses depois pelo jornal valão La Libre Belgique, tendo então sido vivamente criticada. «Entrevistado na BX1 em Janeiro de 2023, o chefe do partido MR de Bruxelas, David Leisterh, afirma que "assumiu a responsabilidade desta viagem" e que o Sahara Ocidental "é uma região muito estável". Acrescentou que tinha passado... 24 horas no local. Contactado por #Investigation, David Leisterh recusou-se a comentar.»
O segundo acto foi representado em Outubro daquele mesmo ano pela MNE Hadja Lahbib, que em visita oficial a Rabat reconheceu, em nome do Estado belga, que «"o projecto de autonomia de Marrocos para o Sahara Ocidental constitui uma base séria e credível", o que foi vivamente criticado pelos maiores especialistas belgas em direito internacional numa carta aberta publicada no jornal Le Soir
Finalmente, ainda naquele mês de Outubro, «Georges-Louis Bouchez desloca-se em missão oficial a Marrocos. O Presidente do MR foi convidado pelo partido liberal local. Oficialmente, a deslocação é unicamente ao território marroquino. Esta é a informação que pode ser consultada no sítio web do partido liberal.» Mas «A unidade #Investigation da RTBF conseguiu ter acesso a um documento confidencial. O seu conteúdo? A agenda do dirigente do MR. E uma viagem ao Sahara Ocidental feita em total secretismo. A informação foi-nos confirmada por um quadro do partido Liberal. Problema: o assunto parece estar a incomodar o MR. O seu porta-voz Qassem Fosseprez respondeu: "Todas as respostas estão no sítio web do MR. Não tenho nada a acrescentar". O que é que Georges-Louis Bouchez foi lá fazer? Com quem se encontrou? E porquê esconder a sua visita a este território anexado por Marrocos? O Mouvement Réformateur fechou-se em copas.»

A repressão

Como escreveu Elias Ferrer Breda, «Há muitas razões para que o governo marroquino tenha sido tão agressivo no lobbying na Europa – ao ponto de alegadamente cometer actividades ilegais, incluindo subornos. Uma questão fundamental tem sido a obtenção de legitimidade para a sua ocupação ilegal do Sahara Ocidental.» E uma dessas «muitas razões» é a urgência de preservar o regime, manifestada abertamente na repressão, quer sobre os seus concidadãos, quer sobre a população do Sahara Ocidental ocupado.
Isto mesmo foi reconhecido pelo Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Detenção Arbitrária que, em finais de Novembro, instou Marrocos a libertar imediatamente os presos de Gdeim Izik. «O professor e antigo Presidente-Relator do Grupo de Trabalho das Nações Unidas, Mads Andenas, declarou: "A decisão é uma confirmação importante das análises já feitas por numerosos observadores do julgamento, pela Amnistia Internacional e pela Human Rights Watch, por vários titulares de mandatos das Nações Unidas e pelo Comité Contra a Tortura das Nações Unidas. Conhecendo a tendência viciosa e a preocupante espiral descendente de Marrocos, que se recusa a assumir compromissos, nega violações graves e submete as vítimas e as suas famílias a represálias, pedimos a todos os Estados e terceiros que pressionem Marrocos para aplicar esta decisão e libertar os prisioneiros".»
Como conclui Ferrer Breda, «Ao longo dos anos, os relatórios da Amnistia Internacional, da Human Rights Watch e do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU têm repetido as acusações de que as forças de segurança marroquinas estão a torturar, a negar o direito de protesto e a liberdade de expressão, com julgamentos injustos e outras violações dos direitos humanos. Não é de surpreender que estas acusações não se limitem ao território ocupado; parecem ser um modus operandi comum das forças de segurança em todo o território marroquino, de Tânger a Rabat e a Agadir.»

OS DILEMAS NORTE-AMERICANOS PERANTE A QUESTÃO SAHARAUI

(Boletim nº 128 - Janeiro 2024)

As profundas mudanças em curso no xadrez internacional recolocaram o caso do Sahara Ocidental na mira dos Estados Unidos. No fim do ano apareceram vários artigos em publicações internacionais com análises sobre o tema. O que se seguirá ainda é uma incógnita.

À procura de um outro equilíbrio
A evidência de que processos "congelados" durante muito tempo são candidatos a erupções inesperadas tornou-se demasiado presente — trata-se não só de Gaza, mas também de alguns países da África ocidental, que instalaram regimes militares e recusaram o neo-colonialismo francês (Mali, Guiné-Conacri, Burquina Faso, Níger).
2023 foi o ano em que ficou demonstrada a duplicidade de critérios nas relações internacionais: o Direito Internacional vale para alguns países (Rússia…), é sumariamente dispensado em relação a outros (Marrocos, Israel…).
Na diplomacia ocidental o Médio Oriente e o Norte de África fazem parte de uma mesma região, conhecida pela sigla anglófona MENA. Se a parte oriental está à beira de um conflito militar generalizado, o Magrebe (Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia, Sahara Ocidental, Mauritânia), intranquilo por diversas razões, também é palco da guerra no Sahara Ocidental, entre a Frente POLISARIO e Marrocos, que recomeçou em 13 de Novembro de 2020, no seguimento da quebra do cessar-fogo por parte do exército marroquino. Desde 29 de Outubro deste ano que ocorreram explosões em cidades saharauis ocupadas por Marrocos nunca antes atingidas desde o reacender da guerra: Smara e Mahbes. Uma possível escalada dos combates passou a estar realisticamente sobre a mesa.
O jogo de alianças internacional está em ebulição. A hegemonia norte-americana enfraquece e vão-se construindo alternativas à sua substituição. É o caso do grupo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Na sua cimeira de Agosto de 2023 escolheram novos membros, a integrar em Janeiro: Argentina, Arábia Saudita, Emiratos Árabes Unidos, Egipto, Etiópia, Irão. Incluindo vários candidatos a potências regionais e mundiais, este conjunto ecléctico de países, com contradições visíveis entre si, procura formas de ocupar e ganhar poder em espaços antes alinhados com o centro do mundo industrializado. Os Estados Unidos estão na corrida para não perder zonas que por ora, directamente ou através de aliados, dominam. O Norte de África é um desses lugares.
Marrocos sempre foi o aliado preferido dos EUA no Magrebe. No entanto, o seu principal rival, a Argélia, tem vindo a ganhar proeminência a nível regional e mesmo mundial, sobretudo enquanto país produtor de gás, mas também como criador de uma diplomacia segura, atenta e activa, discretamente interveniente em conflitos intrincados como as rivalidades entre facções palestinianas, ou o Níger. Para Washington Argel tem uma outra atractividade: a possibilidade de vendas significativas de armamento, antes quase só providenciado pela Rússia.
Pelo seu lado, o reino alauíta está em graves apuros, temendo-se pelo seu futuro a curto/médio prazo. O terramoto de Marraquexe, em Setembro de 2023, foi um momento de visibilidade do que costuma estar habilmente escondido. À pobreza generalizada, a uma economia baseada numa dívida gigante e numa notória desigualdade em crescendo, a sociedade responde com desejos de emigração em grande escala e efervescência dissimulada por causa da repressão sistemática. O rei, que concentra todo o poder, antes referência consensual, começou a cair em desgraça pela sua ausência prolongada da governação e pelo seu estilo de vida faustoso e despreocupado, deixando as mãos livres às polícias do regime. Uma política externa agressiva, totalmente indexada ao apoio requerido à ocupação do Sahara Ocidental, tem sido erodida pelos escândalos da espionagem através do programa israelita Pegasus de altas figuras de outros Estados (o presidente Macron, o primeiro-ministro Pedro Sánchez, muitos dos respectivos ministros), assim como de intelectuais, jornalistas e activistas de vários países, e do pagamento de subornos a eleitos e funcionários do Parlamento Europeu e de outras administrações europeias. Ultimamente, a agressão israelita a Gaza expôs a estratégia de normalização das relações diplomáticas entre Rabat e Telavive, no quadro dos Acordos de Abraão, promovidos pelos EUA, a troco do reconhecimento por Washington, em Dezembro de 2020, da soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental: enormes manifestações populares em solidariedade com o povo palestiniano têm exigido o fim das relações formais entre os dois países.

Quando os interesses exigem artes de equilibrismo

Com tanto poder a defender, em tanto lado, como mexer nalgumas peças nos cenários menos exigentes de modo a mantê-los com a estabilidade que importa? O Sahara Ocidental faz parte desta equação.
A Administração Biden deu os primeiros passos. Não podia pôr em causa os Acordos de Abraão, por causa dos compromissos com Israel, e era até importante ampliá-los (incorporar a Arábia Saudita…), mas também não era boa ideia opor-se abertamente às resoluções da ONU, instituição que o Presidente cessante tinha atropelado conscientemente. A opção foi não reverter oficialmente o reconhecimento da "marroquinidade" do Sahara Ocidental, mas ao mesmo tempo não o pôr em prática: a retórica passou a enfatizar o papel das Nações Unidas na procura de uma solução negociada a contento de todas as partes; a abertura do consulado norte-americano na cidade ocupada de Dahkla foi posta de parte; a realização de exercícios militares conjuntos com Marrocos no território ocupado nunca aconteceu; ao fim de dois anos e meio de esforços infrutíferos do Secretário-geral António Guterres para encontrar um novo Representante Pessoal para o Sahara Ocidental, foi a pressão dos EUA sobre Marrocos que levou à nomeação do diplomata italo-sueco Staffan De Mistura para o cargo, que iniciou em Novembro de 2021.
O ano de 2022 foi dedicado a observar os desenvolvimentos da situação e a medir forças. Houve uma aproximação de Washington à Argélia. Pedro Sánchez sucumbiu à chantagem e o Palácio em Rabat divulgou uma carta em que o Presidente do governo de Espanha reconhecia que o plano de autonomia marroquino representava a proposta «mais séria, realista e credível» para a resolução do conflito saharaui — uma viragem na política da antiga potência colonial que gerou inúmeros protestos no próprio país, quer de instituições públicas, quer da sociedade civil. No fim do verão, Marrocos impôs tais condições ao Representante Pessoal do Secretário-geral da ONU para o Sahara Ocidental para a sua primeira visita ao território ocupado que ele se viu obrigado a recusar e ela ficou sem efeito.
Um ano mais tarde, em 2023, pouco antes das reuniões anuais, em Outubro, que o Conselho de Segurança dedica ao Sahara Ocidental, verificaram-se alguns acontecimentos que criaram a expectativa de um pequeno avanço no dossier: pela primeira vez, o Sub-secretário de Estado dos EUA para a região MENA, Joshua Harris, visitou, a 3 de Setembro, os Acampamentos de refugiados saharauis em Tindouf (Argélia) e encontrou-se com as autoridades saharauis, incluindo o Secretário-geral da Frente POLISARIO e Presidente da República Árabe Saharaui Democrática (RASD), Brahim Ghali; quase em simultâneo, Staffan de Mistura conseguiu, novamente por pressão de Washington, visitar finalmente o Sahara Ocidental ocupado, tendo tido duas reuniões com representantes da sociedade civil saharaui, que colocaram claramente em cima da mesa as questões do direito à autodeterminação e da sistemática violação dos Direitos Humanos de que a população saharaui é vítima; e a 12 de Setembro Brahim Ghali foi a Nova Iorque para um encontro com o Secretário-geral António Guterres.
Mas o ataque do Hamas em Israel a 7 de Outubro estancou qualquer dinâmica que pudesse haver. As discussões à porta fechada no Conselho de Segurança, no fim desse mês, produziram uma Resolução sobre o Sahara Ocidental praticamente idêntica à do ano anterior.
No entanto, o processo não parou. Durante o mês de Novembro, a Embaixadora dos Estados Unidos na Argélia, Elizabeth Moore Aubin, visitou por duas vezes (nos dias 16 e 29) os Acampamentos de refugiados saharauis em Tindouf, no quadro da missão de doadores das Nações Unidas aos campos de refugiados saharauis, numa iniciativa do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR). E em Dezembro o mesmo Sub-secretário de Estado dos EUA para a região MENA voltou a deslocar-se à Argélia (dias 8 e 9) e a Marrocos (dias 17 e 18), tendo assumido que a questão saharaui estava no centro das discussões políticas com ambos os países.

O que revela e o que esconde a linguagem diplomática?

Como lembra a Redacção do sítio Algérie Focus, «no mundo complexo da diplomacia internacional, cada gesto, cada palavra, cada deslocação de um embaixador pode ter implicações profundas e repercussões inesperadas».
O parágrafo destina-se a enquadrar e a tentar interpretar as visitas da senhora Aubin a Tindouf. Durante a primeira deslocação, a Embaixadora exprimiu o apoio dos EUA «ao processo político das Nações Unidas sobre o Sahara Ocidental», sem nomear a proposta de autonomia avançada por Marrocos em 2007 e que continua a ser o cavalo de batalha de Rabat. No termo da segunda, foi uma fotografia, no meio de outras publicadas pela diplomata, que chamou a atenção: ela está ao lado de uma mulher saharaui, reconhecida pelo seu traje tradicional, vendo-se atrás de ambas a bandeira saharaui e uma grande foto de Brahim Ghali, Secretário-geral da Frente POLISARIO e Presidente da RASD.
Consultas com a Argélia
Na véspera da chegada de Joshua Harris a Argel, o comunicado oficial do Departamento de Estado que anuncia a visita introduz alguma novidade na linguagem: o objectivo será proceder a «consultas com a Argélia e Marrocos sobre a promoção da paz regional e a intensificação do processo político das Nações Unidas no Sahara Ocidental, a fim de conseguir, sem mais demora, chegar a uma solução duradoura e digna». Alguns dias mais tarde (17 de Dezembro), o Departamento de Estado publica um novo comunicado antecedendo a visita de Harris a Rabat: Washington continua «a considerar a proposta marroquina de autonomia como séria, credível, realista e como um dos possíveis enfoques para satisfazer as aspirações do povo do Sahara Ocidental»; «os Estados Unidos acreditam que se deve alcançar uma solução política através de negociações, sem mais demora».
A ambiguidade da expressão «uma solução digna para o povo saharaui», que a diplomacia norte-americana vem utilizando desde há algum tempo, pode prestar-se à construção de vários cenários. Pela segunda vez os EUA assumem publicamente que o plano de autonomia de Marrocos é apenas uma das possibilidades de resolução do conflito. E pela primeira vez há uma dupla menção à necessidade de uma solução rápida – «sem mais demora».
Significativa foi a entrevista que o Sub-secretário de Estado dos EUA para a região MENA deu na embaixada norte-americana em Argel (9 de Dezembro), oficialmente publicada pela própria embaixada. Numa declaração preliminar, Joshua Harris esclarece: «(…) Em particular, os Estados Unidos estão muito concentrados sobre o sucesso do processo da ONU no Sahara Ocidental. Consideramos que é muito urgente permitir ao Enviado Pessoal [do Secretário-geral] De Mistura progredir sem mais demora. A escalada no terreno e a intensificação do conflito militar são demasiado alarmantes e afastar-nos-ão ainda mais da solução política da qual precisamos desesperadamente. (…). Ao mesmo tempo, não existe um atalho e a paz não pode ser imposta do exterior. A única solução durável é um processo das Nações Unidas que permita às pessoas que vivem no Sahara Ocidental reflectir numa contribuição relativamente ao seu futuro.» A entrevista desenvolve, sempre com base na mesma linguagem, estes pontos de vista.
A ideia de que serão as «pessoas que vivem no Sahara Ocidental» a contribuir para uma solução acentua a ambiguidade. Pode ser uma aproximação cautelosa à necessidade de um referendo, como pode também ser uma forma de incluir os milhares de colonos marroquinos na definição do futuro do território.
Recordamos o que afirmou Christopher Ross, diplomata norte-americano, Representante Pessoal do Secretário-geral da ONU para o Sahara Ocidental (2009-2017). «Entre 2007 e 2019, o meu antecessor, o meu sucessor e eu patrocinámos 15 sessões entre estas duas partes, com a Argélia e a Mauritânia presentes como Estados vizinhos. Infelizmente, nunca houve nada a que se pudesse chamar negociações, e a comunidade internacional tem todo o direito de saber porquê. A POLISARIO apresentou-se em cada sessão disposta a discutir as duas propostas, mas Marrocos apresentou uma condição prévia importante: discutiria apenas a sua própria proposta. Escusado será dizer que a POLISARIO se recusou a aceitar o que considerava ser um diktat, e as negociações ficaram condenadas desde o início.»
Referindo-se aos «saharauis que vivem sob o controlo marroquino»: «qualquer solução que não tenha em conta os pontos de vista desta população seria inerentemente desestabilizadora»; e ao mencionar a «população refugiada»: «qualquer acordo que não tenha em conta as opiniões desta última população seria igualmente inerentemente desestabilizador.» (Mensagem enviada à I Jornada Europeia de Amizade com o Povo Saharaui, Florença, Itália, 2 de Julho de 2022).
Washington parece querer assumir o papel de mediador, tacteando o caminho a pouco e pouco, verificando reacções, ajustando posições, para ir progredindo. Não se percebe muito bem em direcção a quê. Neste contexto, os posicionamentos de todos os actores têm um elevado valor, na medida em que podem contribuir para balizar o percurso. Que o povo saharaui sabe onde deve chegar: a um referendo justo e livre.