quarta-feira, 5 de junho de 2019

Boletim nº 74 - Junho 2019


DEMISSÃO DE KÖHLER: APENAS UMA «QUESTÃO DE SAÚDE» ?

O pedido de renúncia ao cargo de Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU para o processo de descolonização do Sahara Ocidental, apresentado por Horst Köhler e tornado público em 22 de Maio, foi uma surpresa para muitos.

Köhler renunciou

Em mensagem enviada ao SG da ONU, Köhler, com 76 anos e nestas funções desde Junho de 2017, anunciou a decisão de abandonar o cargo, justificando-a por razões de saúde.
António Guterres agradeceu o seu empenho, assinalando que os «seus constantes e intensos esforços lançaram as bases para um novo impulso no processo político do Sahara Ocidental». Expressou os seus votos de recuperação e agradeceu à Frente POLISARIO e a Marrocos o compromisso com o processo de paz e com as negociações impulsionadas por Horst Köhler.
O ex-presidente alemão tinha conseguido introduzir uma nova dinâmica nas negociações sobre o conflito, cuja face mais visível foram os encontros entre as partes, com a participação dos vizinhos Mauritânia e Argélia, em Dezembro e Março passados na Suíça.
Em 30 de Abril o Conselho de Segurança – por 13 votos a favor e 2 abstenções (África do Sul e Rússia) – tinha adoptado a resolução 2468 (2019) que prorrogou o mandato da MINURSO (Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental) por mais seis meses, como aliás o tem feito desde Abril de 2018. O Conselho apelou a Marrocos e à Frente POLISARIO para que continuem as negociações «sem condições e de boa fé» e sublinhou a importância deste «compromisso renovado» para fazer avançar o processo político.
Após a aprovação desta resolução, a Frente POLISARIO emitiu um comunicado onde reafirmou o seu compromisso em prosseguir com o o processo de paz, «apesar de uma forte oposição de quem procura manter o status quo», e a sua sincera e construtiva cooperação com os esforços do Secretário-geral das Nações Unidas e do seu Enviado Pessoal, assim como a sua vontade de participar construtivamente em negociações directas.
Face ao comunicado da renúncia de Köhler o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, Heiko Maas, fez uma declaração onde expressou a sua «sincera gratidão pessoal» e o «profundo respeito a Horst Köhler pelo seu compromisso incansável» que «lançou as bases de um processo de negociação para uma solução realista, viável e duradoura no quadro das resoluções das Nações Unidas que permite ao povo saharauí exercer o seu direito à autodeterminação». «Continuaremos nessa linha de esforços e também usaremos a nossa participação no Conselho de Segurança em 2019/20 para alcançar esse objectivo», conclui a declaração.
A Frente POLISARIO, por sua vez, declarou-se «profundamente entristecida» pela notícia e agradeceu a Köhler «os seus dinâmicos esforços para relançar o processo de paz». Instou o Secretário-geral da ONU, António Guterres, a actuar rapidamente para nomear um novo Enviado Pessoal, que compartilhe a forte convicção, estatura e determinação do antigo presidente alemão. Exortou a que não seja utilizada a sua renúncia como desculpa para fazer descarrilar o progresso alcançado desde a primeira reunião patrocinada pela ONU sobre o Sahara Ocidental em Dezembro de 2018, após anos de congelamento e estagnação. «Continuamos a acreditar que, com a vontade política e a determinação do Conselho de Segurança da ONU, está ao nosso alcance uma solução justa e duradoura que permita a autodeterminação do povo saharauí», finaliza a Frente POLISARIO.
Por sua vez «o Reino de Marrocos registou, com pesar» esta demissão, escreveu o Ministério dos Negócios Estrangeiros marroquino, prestando «homenagem ao Sr. Horst Köhler pelos esforços desenvolvidos desde a sua nomeação.»
Rabat, porém, aproveitou a oportunidade para transmitir a mensagem de que “com Marrocos não se brinca”. O Yabiladi, um sítio marroquino arregimentado ao regime, levanta a dúvida: «razões de saúde ou pressão de Marrocos?». Depreciativamente o jornalista escreve: «Ao fim de apenas 20 meses (…) Köhler acabou por deitar a toalha ao chão». E avança com uma resposta à sua pergunta citando fonte próxima do processo, segundo a qual Rabat tinha desde o início manifestado a sua oposição ao envolvimento da União Africana na procura de uma solução para o conflito. Continua este sítio: «a mesma fonte não afasta a hipótese de ligação entre o anúncio desta demissão e a visita de Nasser Bourita, Ministro dos Negócios Estrangeiros, efectuada discretamente aos Estados Unidos a semana passada. (…). “Marrocos iniciou há vários meses uma campanha diplomática junto dos seus amigos e outros países influentes sobre a questão do Sahara com vista a convencê-los dos erros cometidos pelo Alemão”, explica o nosso interlocutor. Que acrescenta que se “Köhler tivesse continuado a assumir as suas funções, o reino teria batido com a porta às negociações». E o redactor da notícia remata: «Com esta partida começa uma nova batalha para a escolha de um novo Enviado Pessoal para o Sahara ocidental. Marrocos deve empenhar-se para que a escolha do sucessor de Köhler não seja prejudicial aos seus interesses.»
Numa entrevista à Sputniknews, Mohamed Khadad, membro da direcção e responsável pelas relações externas da Frente POLISARIO, reconheceu que outros factores além da saúde tinham pesado na tomada de decisão de Horst Köekler. «Efectivamente há razões de saúde (…). Contudo, deve ser salientado que desde a sua nomeação (…) muitos obstáculos foram levantados no seu caminho». Lembrou que desde o início do seu mandato ele «tinha insistido para que a União Africana e a União Europeia fossem partes interessadas na solução do conflito no Sahara Ocidental».
«Infelizmente, o seu trabalho foi prejudicado e completamente sabotado pela atitude do governo francês que em Nova Iorque não queria que o mandato da MINURSO fosse reduzido para seis meses». E acrescentou: «Igualmente em Bruxelas, Paris tudo fez para sabotar os esforços de Köhler e não é sem razão que, durante o seu mandato, nunca foi recebido pelas altas autoridades francesas». «Foi a França que impôs que a União Europeia assinasse os novos acordos [agrícola e de pesca] que incluem o território do Sahara Ocidental em flagrante violação dos acórdãos do Tribunal de Justiça da UE».
Khadad invocou um segundo elemento que terá pesado na decisão do ex-presidente alemão. «Em Nova Iorque Köhler procurou sempre que houvesse um consenso no Conselho de Segurança e que os seus quinze membros o apoiassem votando uma resolução» mas «infelizmente os seus esforços foram sabotados pela França e pelos Estados Unidos que desta vez não procuraram chegar ao consenso pedido por Köhler ».
«Então no final encontrou-se sem o apoio unânime do Conselho de Segurança, sem o apoio da UE, além do metódico trabalho de sapa levado a cabo por Marrocos para impedir que a UA desempenhe o seu papel na resolução deste conflito que dura há demasiado tempo».
E concluiu: «Köhler, com a sua honestidade intelectual e a sua probidade, que sofreu grandes pressões por parte de certos membros do Conselho de Segurança, recusou ser instrumentalizado por certas forças contra os legítimos direitos do povo saharauí, especialmente o relativo à autodeterminação e independência, e só o honra o ter recusado, preferindo deitar a toalha ao chão».