terça-feira, 5 de março de 2024

UM CAMINHO A PERCORRER, ESTÍMULOS NÃO FALTAM …

(Boletim nº 130 - Março 2024)

Quando a 27 de Fevereiro se celebraram 48 anos da proclamação da República Árabe Saharaui Democrática (RASD), ressurgiu a questão “e o que pode Portugal fazer para acelerar o processo de descolonização da última colónia de África?”. Estamos a caminho, mas o tempo urge.

AR: um avanço relativamente ao passado
 (foto noticiasyprotagonistas.com)

Propósitos eleitorais

Os Programas Eleitorais de quatro partidos políticos que concorrem ao escrutínio de 10 de Março próximo incluem uma referência explícita ao direito à autodeterminação do povo saharaui. Representa um avanço relativamente ao passado: em 2019, apenas o Bloco de Esquerda (BE) assumia esta posição, à qual se juntou em 2022 o Livre.
Agora, o Partido Comunista Português (PCP) aponta como uma das suas prioridades no campo de «uma política externa em prol da paz, da amizade e da cooperação no mundo (...) o desenvolvimento de iniciativas e de uma acção efectiva de solidariedade com os povos em luta em defesa da sua soberania e direitos, nomeadamente com vista ao fim do bloqueio dos EUA contra Cuba, ao cumprimento dos direitos nacionais do povo palestiniano, com a criação do Estado da Palestina, ou do direito de autodeterminação do povo sarauí, como determinam as resoluções da ONU».
Também o partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN), no âmbito de «uma política externa promotora da paz, dos direitos humanos e dos valores democráticos e empenhada na acção climática», propõe «Manter na agenda da ação externa portuguesa a defesa do direito à autodeterminação do povo do Sahara Ocidental e contribuir ativamente para que as negociações sob os auspícios da ONU reconheçam como imprescindível a realização de um referendo para que seja o povo saharaui a decidir sobre o seu próprio futuro e consigam construir uma solução credível e duradoura que acabe com a guerra em curso e favoreça a estabilidade da região.»
O Livre voltou a adoptar em 2024 a mesma fórmula de 2022, no quadro do capítulo sobre «Portugal na Europa e no mundo»: «Defender a auto-determinação do povo palestiniano e sarauí, instando o Estado Português na luta contra a ocupação da Autoridade Palestiniana e na defesa de um processo credível para um referendo no Saara Ocidental.»
O que ocorreu igualmente com o BE, já que em 2019, 2022 e 2024, entre as medidas relativas à promoção de «uma política externa pela paz e pelos direitos humanos», insere a «Defesa nos fóruns internacionais relevantes da organização do referendo de autodeterminação do Sahara Ocidental sob a égide das Nações Unidas».
O Partido Socialista (PS) não faz qualquer referência à questão do Sahara Ocidental no seu Programa Eleitoral, apesar de em 20 de Maio do ano passado ter publicado um comunicado conjunto com a Juventude Socialista (JS), «reafirmando o seu compromisso com uma solução política justa, duradoura e mutuamente aceitável que permita a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental, no quadro das negociações lideradas pela ONU, das resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas e dos princípios da Carta das Nações Unidas.» Depois de reconhecerem o empenho do Secretário-geral da ONU António Guterres, e de apelarem «a que todas as autoridades colaborem com as instâncias internacionais na observância dos direitos humanos e da paz», «recordam que durante o mandato dos governos socialistas Portugal tem mantido um diálogo aberto, equidistante e equilibrado sobre a questão do Sahara Ocidental com todas as partes, incluindo com o Reino de Marrocos, com representantes da Frente POLISARIO, bem como de outros Estados da região, reconhecendo o papel histórico e atual da União Africana na promoção de uma política para este conflito.» Terminam dizendo que «para os socialistas é importante que as partes se comprometam em apresentar soluções realistas, sérias e credíveis tendo em vista a realização de um referendo para a autodeterminação do povo saharaui e do território do Sahara Ocidental.»
Pelo lado da JS, a questão mantém-se no respectivo Manifesto Eleitoral de 2024, no âmbito da área «Relações Internacionais: Pacificar, Cooperar, Desenvolver»: «Apoiar os trabalhos da ONU para atenuar o conflito no Saara Ocidental e para retomar um caminho para o referendo à autodeterminação do povo saarauí.»

O papel de Portugal

O objectivo é que o próximo governo seja coerente e apoie os direitos do povo saharaui, a começar pela realização do referendo através do qual se definirá o seu futuro com justiça e transparência.
É esse o posicionamento que Portugal tem adoptado quando se trata da invasão russa da Ucrânia e, mais timidamente, da colonização israelita da Palestina. Contra a aquisição de território pela força, contra a violação dos direitos humanos, contra a transferência de colonos para territórios que não lhes pertencem, contra a usurpação dos recursos naturais de quem defende o seu direito à autodeterminação. Pelo Direito Internacional, pela paz.
Foi o que Portugal fez enquanto Potência Administrante de Timor-Leste, ocupado pela Indonésia, até à organização do referendo que viria a consagrar a independência da antiga colónia portuguesa.
E não poderia ser de outra maneira. A lição do 25 de Abril, ao fim de séculos de exploração colonial, de 48 anos de ditadura e de 13 anos de guerra em três frentes africanas, ficou clara no Artigo 7º da Constituição da República Portuguesa: «3. Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao desenvolvimento, bem como o direito à insurreição contra todas as formas de opressão.»
A recente visita do Secretário-geral da Frente POLISARIO e Presidente da República Árabe Saharaui Democrática (RASD), Brahim Ghali, à Irlanda, durante a qual foi oficialmente recebido pelo seu homólogo em Dublin (ver outro artigo neste boletim), é inspiradora. A Irlanda foi um dos aliados europeus mais importantes de Portugal na questão de Timor-Leste, juntar convicções e forças é um princípio básico da diplomacia.
Em breve será conhecido o sentido da sentença final do Tribunal de Justiça da União Europeia relativa aos acordos comerciais entre a UE e Marrocos. Se, como se espera, seguir os três veredictos anteriores (2016, 2018, 2021), não haverá como escapar ao reconhecimento de que Marrocos e o Sahara Ocidental são dois territórios «distintos e separados».
Falta encontrar a solução negocial que promova a criação de dois Estados vizinhos, colaborativos e dinâmicos no relançamento de uma região com cada vez maior bem-estar para as suas populações e com voz no panorama mundial.
«Sempre achei que Portugal, pelas suas características próprias, mas também pela qualidade da sua diplomacia, poderia apostar mais num papel activo na área da mediação de conflitos e de negociações no âmbito de processos de paz, reforçando assim a sua projecção internacional como contribuinte líquido para a paz.» (Jorge Sampaio, no Posfácio de «O Negociador: revelações diplomáticas sobre Timor-Leste (1997-1999)», de Bárbara Reis e Fernando d’Oliveira Neves).


 

SAHARA OCIDENTAL: «UM CONFLITO QUE DURA HÁ DEMASIADO TEMPO»

(Boletim nº 130 - Março 2024)

O processo de descolonização do Sahara Ocidental que as Nações Unidas têm a responsabilidade de conduzir – e concretizar – tem vindo a arrastar-se ao longo do tempo. Algumas movimentações recentes sublinham quão urgente é encontrar-se uma solução.

Mistura com Pandor: «conversações frutíferas»
O regime de Marrocos não abdica de desenvolver todos os esforços para obstruir este processo, como ficou bem visível no recente encontro que o Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU, Staffan de Mistura, teve com Naledi Pandor, Ministra dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação da República Sul-Africana, a convite do seu governo, em 31 de Janeiro.
A ministra classificou o encontro, em conferência de imprensa, de «conversações frutíferas», que «foram úteis e centraram-se na exploração de algumas abordagens relacionadas com o Sahara Ocidental».
Mas o regime marroquino não viu esta iniciativa como um contributo para a resolução do conflito, mas como uma ameaça. A sua imprensa classificou-a como um "coup d'épée dans l'eau" [espadeirada na água]. O facto de a mesma ter partido de um governo que muito recentemente se notabilizou pela «queixa apresentada ao Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas contra Israel», incomodou ainda mais Rabat.
Ao anunciar a deslocação a Pretória, o porta-voz do Secretário-geral, Stéphane Dujarric, salientou que fazia parte do mandato do Enviado Pessoal ter consultas com quem considerasse oportuno.
Como conta o jornalista Javier Otazu, «Marrocos esperou quatro dias para tornar pública a realização da viagem depois de Rabat, ao tomar conhecimento do projecto de deslocação, ter comunicado "directamente a De Mistura, bem como ao secretariado da ONU, a oposição categórica de Marrocos a essa viagem", segundo declarou Omar Hilale, embaixador de Marrocos na ONU, à agência MAP do seu país. Hilale foi mais longe nestas declarações e permitiu-se "advertir claramente (De Mistura) das consequências da sua viagem sobre o processo político", depois de recordar que espera "que não se trate de um caso de desafio de De Mistura a Marrocos, mas de um simples erro de apreciação".»
Quanto à Frente POLISARIO congratulou-se com o encontro de De Mistura com a MNE da África do Sul. O seu representante junto das Nações Unidas Sidi Mohamed Omar lembrou que foram já vários os países aonde o Enviado Pessoal do SGONU se deslocou na sua procura de um compromisso visando a realização de um referendo de autodeterminação e que a reunião estava «plenamente justificada "considerando o importante papel que a África do Sul tem desempenhado na promoção de soluções pacíficas e justas para os conflitos em África e não só".»
Otazu lembra ainda que «Não é a primeira vez que Marrocos entra em conflito com um enviado da ONU por discordar da sua missão: em 2012, declarou o Enviado da altura, o americano Christopher Ross, "persona non grata" e, embora o então Secretário-geral Ban Ki-moon o tenha mantido no cargo por mais cinco anos, desde então ficou praticamente "queimado" e sem qualquer interacção com Rabat.»
Uma opinião, aparentemente, diferente da de Marrocos tem Elizabeth Moore Aubin, embaixadora dos EUA em Argel. Em entrevista ao jornalista Mokrane Aït Ouarabi, este perguntou-lhe :
«A Argélia é membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU desde Janeiro. Afirmou claramente as suas prioridades, nomeadamente a causa saharauí e a questão palestiniana, cuja Faixa de Gaza está sob cerco e bombardeamento constante há quatro meses. A Argélia defende uma solução de dois Estados e um referendo de autodeterminação no Sahara Ocidental. Como é que os Estados Unidos podem colaborar com a Argélia para encontrar soluções definitivas para estes dois conflitos?»
Ao que a embaixadora respondeu:
«Como salientou, estas são duas questões muito importantes para a Argélia e para a sua política externa. A Argélia e os Estados Unidos concordam que deve ser dado a Staffan De Mistura o espaço e a oportunidade para trabalhar no sentido de uma solução política para o Sahara Ocidental.
«Este conflito já dura há demasiado tempo: 47 anos é muito tempo. E nós, a Argélia e os Estados Unidos, estamos totalmente de acordo quanto à necessidade de o resolver no quadro das Nações Unidas e através do trabalho do Enviado Pessoal do Secretário-geral António Guterres.»
Higgins com Ghali: muitas coisas em comum
Entretanto, a comunicação social divulgou a visita a Dublin, em 13 e 14 de Fevereiro, de uma numerosa delegação saharaui, chefiada pelo Secretário-geral da Frente POLISARIO e Presidente da República saharaui, oportunidade para um encontro entre o Presidente da República da Irlanda, Michael Daniel Higgins, e o seu homólogo, Brahim Ghali. Segundo a agencia noticiosa SPS, «Durante o encontro, os dois presidentes discutiram os últimos desenvolvimentos relacionados com o conflito do Sahara Ocidental, bem como as perspectivas de futuro das relações e da solidariedade com a luta do povo saharaui a nível europeu e mundial, incluindo a posição da Frente POLISARIO face às mudanças que se verificam no mundo, tendo em conta a situação de guerra no território.»
«A este respeito, o presidente irlandês exprimiu a posição de apoio do seu país à luta do povo saharaui pela liberdade, autodeterminação e independência, em conformidade com o direito internacional, o direito humanitário internacional e as resoluções da ONU sobre a questão saharaui.»
Segundo o Irish Times, Ghali disse que «a Irlanda poderia "atrair mais países europeus a juntarem-se ao esforço colectivo" para trazer "liberdade e independência" ao povo do Sahara Ocidental.»
«"Viemos à Irlanda para reforçar e aprofundar as relações que existem entre os nossos povos, porque temos muitas coisas em comum em termos da nossa história e dos nossos valores", afirmou Ghali.
«"Acreditamos que o povo irlandês compreende e sente a situação difícil do nosso povo, devido à história irlandesa e ao nosso apego comum aos valores humanos. É por isso que estamos aqui na Irlanda, porque as pessoas aqui compreendem o direito à autodeterminação".»
Como escreve o Algérie Patriotique, «Brahim Ghali e a delegação que o acompanhava foram recebidos no Ministério dos Negócios Estrangeiros e no Parlamento, onde tiveram oportunidade de se encontrar com personalidades políticas, deputados e senadores de praticamente todo o espectro político irlandês, tanto da coligação governamental como da oposição. O Presidente saharaui e os membros da sua delegação puderam avaliar a força e a sinceridade do empenhamento da Irlanda em relação aos legítimos direitos do povo saharaui. (…).
«Esta visita faz lembrar a realizada pelo falecido Mohamed Abdelaziz, então Secretário-geral da Frente POLISARIO, a Dublin, (...), em Outubro de 2012. Nessa altura, o governo irlandês era liderado por uma maioria diferente da actual coligação. Marrocos manifestou todas as formas de protesto, chegando ao ponto de retirar o seu embaixador em Dublin. Teve de o reenviar um mês mais tarde, sem que a posição irlandesa se tivesse alterado minimamente. Ao receber Brahim Ghali, o Presidente Higgins reflecte, de facto, um consenso entre a classe política irlandesa sobre a questão do Sahara Ocidental.»
Esta deslocação à Irlanda foi um significativo marco diplomático saharaui, no seguimento do alcançado em Agosto do ano passado quando Brahim Ghali participou e interveio na Cimeira dos BRICS em Joanesburgo.

 

PARCERIA ESPANHA-MARROCOS APROFUNDA-SE

(Boletim nº 130, Março de 2024)

Pedro Sánchez, Primeiro Ministro de Espanha, visitou Marrocos no passado dia 21 de Fevereiro e de acordo com o Palácio Real marroquino, foi ainda mais longe no seu apoio a Marrocos do que na sua declaração de Março de 2022, em que apoiou o seu plano de autonomia para o Sahara Ocidental.

«Cooperação exemplar» (Foto: @desdelamoncloa)

O comunicado da monarquia marroquina, emitido após a reunião, explicita que Sánchez reiterou o apoio à «iniciativa de autonomia marroquina como a base mais séria, realista e credível para resolver» o diferendo sobre o Sahara Ocidental e reafirmou o seu empenhamento «na solução proposta, numa base realista, pelo governo marroquino». Mohammed VI «agradeceu a Espanha esta nova posição construtiva e importante».
Para a Frente POLISARIO, «Sánchez perdeu a oportunidade de fazer regressar o governo espanhol a uma posição oficial alinhada com o que está estabelecido pela legalidade internacional em relação ao Sahara Ocidental e ao direito legítimo do povo saharaui à autodeterminação e independência».

A Espanha como arma de Marrocos

Para Marrocos, a França configura o último obstáculo na obtenção do reconhecimento internacional do controlo total do Sahara Ocidental.
Na sequência das últimas mudanças no governo francês, com a nomeação a 12 de Janeiro último de Stéphane Séjourné para novo ministro dos Negócios Estrangeiros, Rabat quer aproveitar para desbloquear as reticências de Emmanuel Macron, sendo que Séjourné já manifestou a sua intenção de abrir «um novo capítulo» nas relações com Marrocos. Segundo o ministro francês, «o Presidente da República pediu-me pessoalmente para me envolver nas relações franco-marroquinas e também para escrever um novo capítulo nas nossas relações». Tendo em conta a posição marroquina, esta nova relação só será possível se o Eliseu der um passo em frente no reconhecimento do estatuto marroquino do Sahara Ocidental. Séjourné explicou que fará «todo o possível para aproximar a França e Marrocos». Estas declarações incentivaram Rabat a activar rapidamente os mecanismos para confirmar a visita que Pedro Sánchez reclamava há meses, aproveitando a declaração pública do Primeiro Ministro espanhol para pressionar Macron.

Os pedidos de Sánchez a Marrocos

O comunicado da Moncloa após a visita referiu, exultante, «que as relações bilaterais com este país vizinho, amigo e parceiro estratégico estão a atravessar o melhor momento das últimas décadas» e Pedro Sánchez acrescentou que não tem «absolutamente nada a censurar» ao regime marroquino.
Admite-se sem pudor que este cerrar de fileiras com a política de Mohammed VI é feito em troca do controlo das fronteiras e do incremento das trocas comerciais entre os dois Estados.
No domínio da imigração, Sánchez declarou que «Espanha e Marrocos estabeleceram uma cooperação exemplar e os governos continuam a trabalhar com programas pioneiros a nível europeu». Uma cooperação "exemplar" que levou ao que é conhecido como a "Tragédia da cerca de Melilla", na qual várias dezenas de migrantes perderam a vida.
Porém, a viagem de Pedro Sánchez a Marrocos não teve o efeito propalado pela Moncloa. O jornal El Independiente confirma que os assuntos de interesse para Espanha, apesar da pressão desta, não foram mencionados no comunicado real, nomeadamente a reabertura das alfândegas nos enclaves de Ceuta e Melilla e a luta contra a imigração clandestina, num contexto em que as chegadas de migrantes a Espanha aumentaram em 2023, tal como o tráfico de droga.
Sem obter nada de Marrocos, o Governo espanhol arrisca fazer regressar as relações com a Argélia à estaca zero. Em Março de 2022, Argel reagiu à reviravolta histórica de Pedro Sánchez chamando de volta o seu embaixador em Madrid, suspendendo o tratado de amizade e boa vizinhança assinado com Espanha em 2002 e congelando as trocas comerciais entre os dois países, com excepção do fornecimento de hidrocarbonetos.

45 mil milhões de euros

Durante a conferência de imprensa que se seguiu ao encontro com o rei, Sánchez deu a entender que estão previstos investimentos em Marrocos de mais de 45 mil milhões de euros até 2050. «Marrocos está a fazer um esforço enorme para modernizar o país e a economia, no qual a Espanha participa muito activamente», sublinhou, sem fornecer mais pormenores. O Governo teve de esclarecer que o investimento de 45 mil milhões de euros em Marrocos, mencionado por Sánchez, se reporta a investimentos marroquinos envolvendo contratos em que são elegíveis empresas espanholas, não sendo um investimento directo de Espanha.
Um dos marcos que vai impulsionar o investimento vai ser a realização do Campeonato do Mundo de Futebol de 2030 que a Espanha acolherá juntamente com Portugal e Marrocos. Marrocos planeia investir 14,5 mil milhões de dirhams (cerca de 1,3 mil milhões de euros) na construção de um grande estádio perto de Casablanca e na renovação de outros seis, estando fortemente empenhado em acolher a final do Campeonato do Mundo em Casablanca. A federação marroquina nunca escondeu a sua ambição, em detrimento do Bernabeu ou do Camp Nou, os estádios mais adequados para um evento desta envergadura.
Rabat pretende investir 161,4 mil milhões de euros no seu sistema ferroviário, um concurso a que se candidatou a empresa espanhola Talgo. Para Sánchez, as infraestruturas projectadas por Marrocos representam uma «oportunidade para as empresas espanholas» e incentivou o país a apresentá-las numa próxima cimeira hispano-marroquina, a realizar em Espanha, ainda sem data marcada, para que «possam participar neste projecto apaixonante».
Sánchez orgulha-se da fase actual entre os dois países ser a melhor «em décadas», com trocas comerciais superiores a 20 mil milhões de euros em 2022 e uma evolução positiva de Espanha como «investidor de referência em Marrocos». No comunicado da Moncloa, Sánchez garante «ter discutido com o chefe do governo marroquino o estado dos diferentes projectos que estão em curso no domínio da educação e da cooperação cultural, que foram promovidos durante o ano passado».
O jornal El Independiente refere que, pela primeira vez, um documento do Ministério da Cultura publicado no Boletim Oficial de Espanha reconhece El Aaiún, a capital do Sahara Ocidental ocupado, como cidade marroquina, tendo os repetidos pedidos de informação enviados ao gabinete de imprensa do Ministério da Cultura, para esclarecimento desta situação, ficado sem resposta.
O concurso para a renovação da escola espanhola de El Aaiún, acompanhado de uma série de documentos que reconhecem a cidade como território marroquino, provocou uma contraditória troca de versões entre os ministérios da Educação e da Cultura, agora respectivamente nas mãos do PSOE e do Sumar, como reacção à consulta efectuada pelo mesmo jornal. Na sequência da publicação desta notícia a Frente POLISARIO instou Ernest Urtasun, Ministro da Cultura, a respeitar o direito internacional. Urtasun é também porta-voz do Sumar e colaborador próximo da segunda vice-presidente Yolanda Díaz. Até à data, os dirigentes desta frente política apoiaram o direito do povo saharauí à autodeterminação. Sumar incluiu esta exigência no seu programa eleitoral em Julho passado, embora tenha sacrificado qualquer menção à questão saharaui no pacto selado para o governo de coligação com um PSOE alinhado com as teses marroquinas.

”Apoio” a projectos no território ocupado

Nesta viagem Sánchez manifestou interesse em participar em projectos que envolvam o território ocupado do Sahara Ocidental. Segundo um comunicado da Casa Real marroquina, «o Presidente do Governo espanhol saudou e sublinhou o interesse de Espanha nas iniciativas estratégicas lançadas por Sua Majestade o Rei, que Deus o guarde, nomeadamente a iniciativa dos países africanos ribeirinhos do Atlântico, a iniciativa real para favorecer o acesso dos países do Sahel ao Oceano Atlântico, bem como o gasoduto afro-atlântico Nigéria-Marrocos». As três iniciativas passam pela antiga colónia espanhola, no qual Madrid tem uma responsabilidade histórica enquanto potência administrante. É a primeira vez que o Governo espanhol se pronuncia oficialmente sobre estes projectos, que têm a particularidade de obrigar os países africanos a reconhecerem a «soberania» de Marrocos sobre o território.


 


domingo, 4 de fevereiro de 2024

PEDIMOS À RAPOSA PARA TOMAR CONTA DO GALINHEIRO

(Boletim nº 129 - Fevereiro)

Marrocos é o único país africano que não ratificou a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e foi eleito, enquanto representante do continente, para presidir ao Conselho de Direitos Humanos da ONU. Os jogos de poder que minam a credibilidade das instituições internacionais são perigosos e demasiados governos estão a contribuir para isso.

A defender os "direitos" humanos
O sistema requer que, anualmente, os 47 membros do Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU votem num país para presidir ao Conselho. A votação recai, rotativamente, num país membro em representação de um dos cinco grupos regionais que continuam a vigorar no quadro das Nações Unidas: África (13 lugares), Ásia-Pacífico (13 lugares), América Latina e Caraíbas (8 lugares), Europa Ocidental e outros Estados (7 lugares), Europa de Leste (6 lugares). Cada um dos países cumpre mandatos de três anos, e não pode recandidatar-se depois de ter feito dois mandatos consecutivos. Portugal não é actualmente membro do CDH.
Ao contrário do que é costume, os 13 Estados que em 2023 faziam parte do grupo africano não conseguiram chegar a um consenso sobre qual deles se deveria apresentar à eleição para Presidente do CDH, no início de 2024. Acabaram por ir a votos Marrocos e a África do Sul, no passado dia 10 de Janeiro.
É importante lembrar que o Conselho de Direitos Humanos foi criado pela Assembleia Geral da ONU em 2006 (Resolução 60/251) para substituir a Comissão de Direitos Humanos (estabelecida no pós II Guerra Mundial, em 1946), desacreditada por demasiados interesses geoestratégicos e políticos se terem passado a sobrepor à defesa e promoção dos Direitos Humanos. Isso mesmo está diplomaticamente entre-dito na Resolução 60/251: «Reconhecendo o trabalho realizado pela Comissão de Direitos Humanos e a necessidade de preservar as suas conquistas e continuar a avançar com base nelas, e de remediar as suas deficiências». Estamos a ir pelo mesmo caminho?

O alarme da sociedade civil saharaui

Mais de 30 organizações da sociedade civil saharaui iniciaram em Dezembro de 2023 uma campanha de alerta e contestação, destinada a prevenir a eleição de Marrocos, apresentando como principais argumentos a ocupação e colonização ilegais do território não-autónomo do Sahara Ocidental, a falta de colaboração do governo de Rabat com os mecanismos da ONU e a perseguição a defensores dos Direitos Humanos, jornalistas e colaboradores das Nações Unidas.
A 22 de Dezembro, a partir de El Aiun, capital do Sahara Ocidental ocupado, a Fundação Nushatta para os Media e os Direitos Humanos, ao anunciar a sua adesão à campanha, explicitou estes quatro pontos:
«1. Condenamos as contínuas tentativas do regime de ocupação marroquino de utilizar os mecanismos internacionais de Direitos Humanos vinculados às Nações Unidas para melhorar a sua imagem.
2. Reiteramos a nossa categórica recusa e a nossa denúncia inequívoca relativamente à nomeação do reino marroquino para ocupar a presidência do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.
3. Lançamos um apelo aos grupos internacionais preocupados e defensores dos Direitos Humanos para que se oponham à nomeação do regime de ocupação marroquino para a presidência do Conselho de Direitos Humanos.
4. Sublinhamos a necessidade de que a Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO) veja ampliadas as suas responsabilidades para incluir a monitorização e a apresentação de relatórios sobre os Direitos Humanos.»
Dois dias antes da votação, o Representante da Frente POLISARIO na Suíça e junto da ONU e das Organizações Internacionais em Genebra, Oubi Boucharaya, emitiu um comunicado, no qual relembrava que «Marrocos é um país africano que viola sistematicamente a Carta fundadora da União Africana, em particular o Artigo 4, relativo à obrigação de respeitar as fronteiras herdadas ao tempo das independências.» O documento acrescenta que Marrocos é um dos Estados que menos tem cooperado com o Conselho dos Direitos Humanos, exemplificando: tem impedido repetidamente missões técnicas do CDH de visitar o Sahara Ocidental desde 2015; cometeu neste território terríveis crimes, como o atestam, entre outros, testemunhos e relatórios dos Comités da ONU contra a Tortura e contra a Discriminação Racial, assim como do Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias e da Relatora especial sobre os defensores dos Direitos Humanos. O comunicado recorda ainda que o regime marroquino continua a impedir o Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV) de exercer a sua missão no Sahara Ocidental e que, para esconder a realidade no território ocupado, já expulsou mais de 400 observadores externos que tentaram visitá-lo nos últimos anos.
«Marrocos comete todo o tipo de violações dos Direitos Humanos contra o seu próprio povo, reprimindo e prendendo manifestantes pacíficos e numerosos jornalistas. Marrocos é directamente responsável pela repressão de migrantes africanos, contra os quais tem cometido terríveis massacres, o mais recente dos quais em Melilla, em Junho de 2022.»
Finalmente, o Representante da Frente POLISARIO não esquece que Marrocos é um país cujos escândalos de corrupção enchem páginas dos jornais e estão sob investigação em vários tribunais, em particular na Bélgica, por causa do caso ocorrido no Parlamento Europeu conhecido como Marrocosgate. «O mesmo se aplica ao envolvimento de Rabat na espionagem ilegal pelo mundo fora, através da utilização da aplicação Pegasus

As exigências da sociedade civil marroquina

No dia 10 de Janeiro Marrocos foi eleito para a presidência do Conselho de Direitos Humanos para o ciclo de sessões de 2024, por 30 votos contra 17 obtidos pela África do Sul. Vários observadores chamaram a atenção para a possibilidade de a queixa que a África do Sul apresentou junto do Tribunal Internacional de Haia sobre os indícios de genocídio por parte de Israel ter determinado um desvio significativo de votos.
No seguimento da eleição, numa Carta Aberta dirigida ao Primeiro Ministro marroquino, a Coligação Marroquina de Instituições de Direitos Humanos, formada por 20 importantes organizações da sociedade civil, que subscrevem a Carta, afirma que esta situação coloca Marrocos perante novas responsabilidades, «especialmente à luz do pobre estado dos Direitos Humanos no nosso país, o que exige uma verdadeira vontade do governo em mudar a situação». Para que a comunidade internacional possa confiar no Estado marroquino, este tem de «mostrar ao mundo que não tolera violações dos Direitos Humanos sob nenhuma forma», dizem.
Neste contexto, apresentam seis reivindicações principais:
«1. Acabar com a prática de prisões motivadas por questões políticas ou de direitos humanos, ou devido à manifestação de opiniões e à livre expressão, libertar mediatamente todos os presos políticos, presos de consciência, jornalistas, defensores dos direitos humanos, bloggers, activistas nas redes sociais, activistas e líderes sociais (...).
2. Acabar com práticas ilegais contra as organizações, assegurar o direito à criação de associações, e impedir a disrupção das suas actividades, conferências, assim como com a recusa de autorizações [para actividades] quando apresentadas às autoridades locais.
3. Aplicar plenamente as disposições constitucionais, como o direito à vida, à segurança física e pessoal, incluindo a abolição da pena de morte, e assegurar a protecção contra todas as formas de tortura, proteger as mulheres da violência, da discriminação e da exploração, e acabar com políticas de privilégio e de impunidade.
4. Implementar o plano nacional contra a corrupção e o suborno, tornar a denúncia destas práticas uma obrigação para todos os cidadãos, acabar com as ameaças contra aqueles que o fazem, combater os conflitos de interesses e a promiscuidade do poder com actividades financeiras, económicas e comerciais, combater o contrabando [que utiliza] fundos públicos e opor-se ao enriquecimento ilícito.
5. Garantir o direito ao trabalho, à saúde e a um ambiente saudável, à igualdade de género e territorial, e à justa distribuição da riqueza nacional.
6. Declarar a rejeição absoluta e a condenação oficial do genocídio e da limpeza étnica que estão a ser cometidos pela entidade sionista contra o povo da Palestina (…) e anunciar o corte de todas as formas de normalização de Marrocos com o regime de apartheid incorporado na entidade sionista que ocupa o território da Palestina.»
Dirigindo-se por fim ao Primeiro Ministro: «Exortamo-lo a tornar pública uma agenda política e de Direitos Humanos alinhada com os compromissos internacionais de Marrocos na área dos Direitos Humanos, que Marrocos deve adoptar enquanto assume a presidência do Conselho durante este ano, como um novo ponto de partida, sem possibilidade de recuo.»

Os Direitos Humanos subordinados a outros interesses

O primeiro parágrafo na Resolução 60/251, que cria o Conselho de Direitos Humanos diz: «A Assembleia Geral, reafirmando os objectivos e os princípios da Carta das Nações Unidas, em particular os de promover entre as nações relações de amizade baseadas no respeito pelo princípio da igualdade de direitos e pelo da autodeterminação dos povos, e de alcançar a cooperação internacional na solução de problemas internacionais de carácter económico, social, cultural, ou humanitário, e o desenvolvimento e promoção do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais para todos.»
Stephen Zunes, professor de Política e Estudos Internacionais na Universidade de S. Francisco, nos EUA, respondeu assim, referindo-se ao Sahara Ocidental, numa entrevista recente, à pergunta «Afirmou que já visitou 87 países e que nunca viu um regime policial tão duro como o de Marrocos. Pode explicar este facto?»: «O rácio entre as forças de ocupação, incluindo a polícia secreta, e a população autóctone é um dos mais elevados do mundo. A Freedom House, um organismo de controlo dos Direitos Humanos sediado nos Estados Unidos, estima que o Sahara Ocidental ocupado é o segundo pior país do mundo em termos de liberdade política, a seguir à Síria. Qualquer expressão de desacordo com o regime marroquino, mesmo o simples acto de agitar uma bandeira do Sahara Ocidental, resulta em ataques violentos e prisões imediatas.»
«Se vier a acontecer, a eleição de Marrocos para a presidência do Conselho dos Direitos Humanos será mais uma prova da profunda disfunção estrutural das instituições internacionais e um insulto a África. Marrocos é o país menos capaz de repor os valores africanos no actual ciclo da presidência do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas.» (Comunicado acima citado do Representante da Frente POLISARIO na Suíça e junto da ONU e das Organizações Internacionais em Genebra).

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

MARROCOS: A APROVEITAR AS INSTABILIDADES

(Boletim nº 129 - Fevereiro 2024)

As tensões entre os países do Sahel têm vindo a agudizar-se, particularmente entre Marrocos, a Argélia e a Mauritânia, a que a guerra que a Frente POLISARIO trava pela libertação do povo saharaui não é alheia.

O Sahel sob tensão
Na sua ofensiva permanente de angariação de cumplicidades e apoios para o processo de colonização do Sahara Ocidental, Marrocos convidou um conjunto de Estados africanos «para participar numa reunião de coordenação» que teve lugar em Marraquexe em 23 de Dezembro passado. «O objectivo declarado é melhorar as condições de vida nos países do Sahel, (...). No entanto, muitos observadores consideram que se trata de uma tentativa de Marrocos de reforçar a sua influência na região e de perturbar as relações entre a Argélia e os países africanos. (…).
«A Mauritânia, país vizinho de Marrocos, recusou o convite para participar nesta iniciativa, o que é interpretado como um sinal de desconfiança em relação a um regime que Nouakchott considera traiçoeiro e movido por uma visão colonial. (…).
«A presença do Mali, do Níger e do Burkina Faso nesta iniciativa não reflecte necessariamente o seu apoio sincero. Estes países, sob pressão regional e internacional devido ao facto dos seus dirigentes terem chegado ao poder em condições controversas, procuram no estrangeiro oportunidades de aceitação e integração. (...), a recusa de participação da Mauritânia na iniciativa de Marrocos reflecte as tensões crescentes entre os países vizinhos do Magrebe.»

Cólera maliana

As relações do Mali com a Argélia e com a Mauritânia não têm sido fáceis nestes últimos tempos. Desde 1963 que o Mali é confrontado com reivindicações territoriais por parte da população tuaregue. Através da mediação da Argélia chegou, em 2015, a um acordo com as forças rebeldes. Mas a Junta que assumiu o poder em Bamako rompeu em Agosto último esse acordo, apostando na opção militar para resolver o conflito.
Segundo Lehbib Abdelhay, «Depois de a Argélia ter recebido no seu território os membros do CSP-PSD que assinaram o actual acordo de paz, as autoridades de Bamako decidiram convocar o embaixador argelino para protestar contra esta atitude, que qualificaram de "subversiva e hostil". Segundo fontes da segurança de Bamako, foi sem dúvida a passadeira vermelha estendida em Argel ao imã maliano Mahmoud Dicko que mais irritou as autoridades de transição do Mali. Este clérigo, crítico das autoridades golpistas de Bamako, é descrito como não apoiante da transição, senão mesmo como inimigo. Estes dois actos provocaram uma grande cólera entre as autoridades de Bamako, que se apressaram a transmiti-la em palavras pouco diplomáticas às autoridades argelinas.»
Como interroga o TSA-Tout sur l’Algérie, «Estará Marrocos a aproveitar a instabilidade na região do Sahel para aí defender os seus interesses? O activismo do Reino nos países mais instáveis da região, o Mali, o Níger e o Burkina Faso, sugere isso mesmo. (…).
«Marrocos acaba de propor uma aliança económica e geopolítica aos quatro países da região. (…). Este projecto foi apresentado por Mohamed VI num discurso proferido no início de Novembro. O Rei anunciou um projecto de "valorização" da costa atlântica, que descreveu como "a porta de Marrocos para África", insistindo na necessidade de "estruturar este espaço geopolítico à escala africana". (…).
«Foram-lhes feitas inúmeras promessas, nomeadamente o acesso ao Atlântico e a abertura do comércio internacional a estes países através da utilização das infra-estruturas de transporte do Reino.
«No comunicado final do Ministério dos Negócios Estrangeiros marroquino, os participantes "agradeceram" ao Rei "por ter colocado as suas infra-estruturas rodoviárias, portuárias e ferroviárias à disposição dos Estados do Sahel, com vista a reforçar a sua participação no comércio internacional". (…).
«Na realidade, Marrocos procura retirar dividendos políticos e diplomáticos do seu projecto, persuadindo o Mali e o Níger a reconhecerem implicitamente a ocupação do Sahara Ocidental.»
Notícias recentes dão conta de que o Mali, o Níger e o Burkina Faso abandonaram a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO). «Os dirigentes políticos e militares dos três países, saídos de golpes de Estado, justificam a sua decisão com o facto de a CEDEAO "sob influência estrangeira, traindo os seus princípios fundadores, se ter tornado uma ameaça para os seus Estados membros e populações" e "se ter afastado dos ideais dos seus pais fundadores".»

Cólera mauritana

MINURSO: estragos de drone marroquino

Segundo fontes saharauis, «entre 2021 e 2023», em resultado do clima de guerra que se vive na região, «registaram-se mais de 80 vítimas saharauís, 66 vítimas mauritanas e 3 vítimas argelinas». Reacção mauritana: «Nouakchott apanhou de surpresa os grossistas marroquinos e os seus clientes mauritanos com a sua decisão de aumentar os direitos aduaneiros em 171% sem aviso prévio no posto fronteiriço de El Guerguerat. (…).
«Mesmo que as autoridades mauritanas não tenham justificado a sua decisão, é lícito interrogarmo-nos se não se trata de uma resposta de Nouakchott ao ataque implacável de Rabat aos seus nacionais no Sahara Ocidental. Os garimpeiros e pastores mauritanos foram mortos por drones marroquinos dentro das fronteiras da antiga colónia espanhola, cujo estatuto depende de um processo político conduzido pelas Nações Unidas.»
De acordo com o jornalista Ryad Hamadi do TSA, «Motoristas e comerciantes explicaram que os direitos aduaneiros tinham sido aumentados subitamente e sem aviso prévio de 1.600 euros para 4.600 euros para um veículo pesado de mercadorias. (...).
«De acordo com as estatísticas marroquinas, 45.000 camiões atravessaram a passagem de El Guerguerat em 2022. (…).
«Em 31 de Dezembro, vários órgãos de comunicação social, entre os quais a agência noticiosa espanhola EFE, noticiaram que três cidadãos mauritanos tinham sido mortos por um ataque de um drone do exército marroquino. As três vítimas seriam garimpeiros, segundo a mesma fonte. Não é a primeira vez que civis mauritanos ou argelinos são alvo de ataques do exército marroquino na fronteira entre o Sahara Ocidental e a Mauritânia. (…).
«É lícito interrogarmo-nos sobre a existência de uma relação entre estes assassínios de civis mauritanos e a decisão das autoridades de Nouakchott.»
A reacção da Mauritânia não se limitou, porém, ao aumento das tarifas alfandegárias. Envolveu-se, também, num projecto alternativo com a Argélia. «O projecto emblemático entre os dois países é a estrada que ligará Tindouf à Mauritânia para reforçar o comércio bilateral», relata o jornal El Independiente.
«A Mauritânia é considerada a primeira porta de entrada da Argélia na região da África Ocidental, daí o projecto de uma estrada que ligue a cidade argelina de Tindouf à cidade mauritana de Zouerate, que deverá facilitar a exportação de mercadorias argelinas para este país, bem como para toda a região africana.» E acrescenta: «O início destas relações entre os dois países vizinhos coincide com mais um passo no afastamento entre Marrocos e a Argélia, depois desta última ter proibido, há uma semana [10 de Janeiro], os bancos argelinos de se envolverem em operações de transporte de mercadorias que transitem por portos marroquinos.»
O jornalista Rafik Tadjer explicitou este passo:
«A imprensa marroquina tomou conhecimento de uma nota da Associação dos Bancos e Estabelecimentos Financeiros (ABEF), difundida nas redes sociais argelinas, que dá instruções aos bancos comerciais para recusarem as operações de domiciliação dos contratos de transporte que impliquem transbordo ou trânsito pelos portos marroquinos.
«Foi igualmente solicitado aos operadores económicos que se assegurassem de que "os transbordos/trânsitos não se efectuam através dos portos marroquinos, antes de procederem à sua domiciliação". (…).
«Esta decisão poderá beneficiar os portos espanhóis e enfraquecer a posição dos portos marroquinos na região. A Argélia é um dos principais importadores do Magrebe.
«Em 2023, as importações da Argélia deverão ser superiores a 41 mil milhões de dólares. E, de acordo com as previsões orçamentais para 2024, deverão atingir 43,5 mil milhões de dólares este ano (…).
«Na sequência da ruptura das relações diplomáticas entre os dois países em Agosto de 2021, a Argélia decidiu não renovar o contrato de exploração do gasoduto Magrebe-Europa, que expirou em 31 de Outubro de 2021. O gasoduto transportava o gás argelino para a Península Ibérica através de Marrocos. A Argélia exigiu também que a Espanha não revenda a Marrocos o gás que lhe fornece.»

«Por uma campanha da sociedade civil»

Numa entrevista concedida ao Algerie Patriotique, Stephen Zunes – «professor de Política e Estudos Internacionais na Universidade de São Francisco, onde foi director fundador do Programa de Estudos do Médio Oriente» –, confrontado com a pergunta «Porque é que Marrocos é tão implacável contra a Argélia?», respondeu: «A única forma de Marrocos justificar a sua conquista do Sahara Ocidental é negar qualquer poder aos próprios saharauis, apresentando a POLISARIO e outros apoiantes da autodeterminação como se fossem uma simples criação da Argélia. Esta abordagem é semelhante à forma como os Estados Unidos, durante a Guerra Fria, tentaram retratar os movimentos nacionalistas de esquerda nos países do Sul como criações da União Soviética. Ao apresentar o conflito em termos geopolíticos como uma rivalidade entre dois Estados-nação, é mais fácil ignorar os próprios saharauis e as suas aspirações. A Argélia não fala em nome do povo do Sahara Ocidental. A POLISARIO, que este elegeu como seu representante, é reconhecida pela maioria da comunidade internacional como o seu único representante legítimo.»
Mais à frente, o jornalista perguntou-lhe «porque é que os meios de comunicação social e os políticos fecham os olhos à situação catastrófica dos direitos humanos no Sahara Ocidental?»
Ao que Zunes respondeu: «Há muito tempo que os meios de comunicação ocidentais tendem, apesar da sua liberdade de expressão, a seguir a orientação dos seus governos. As violações dos direitos humanos cometidas por governos adversários, por exemplo, receberão muito mais atenção do que as violações dos direitos humanos cometidas por governos aliados. Consequentemente, muito poucas pessoas nos países ocidentais conhecem o Sahara Ocidental. Se o soubessem, haveria pressão para deixar de apoiar a ocupação. Mesmo nos Estados árabes e noutros países do Sul, a narrativa marroquina parece dominar. Mas isso pode mudar. Timor-Leste foi largamente esquecido até que campanhas globais da sociedade civil chamaram a atenção do mundo.»


 


quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

GUERRA NO MÉDIO-ORIENTE ALTERA GEOPOLÍTICA AFRICANA

(Boletim nº 128 - Janeiro 2024)

Obiora Ikoku, um jornalista e activista nigeriano, escreveu um bem documentado artigo sobre as repercussões que o conflito israelo-palestiniano está a ter em África, tanto nos países de herança colonial britânica como francófona. É desse artigo que transcrevemos aqui excertos.

Israel à conquista de África
«A África teve sempre uma importância estratégica para Israel e a Palestina. Os 55 Estados membros da União Africana (UA) representam um bloco de votos vital nas Nações Unidas [dos 55 Estados da UA só 54 têm representação na ONU visto a República Árabe Saharaui Democrática ainda ser considerada à luz do direito internacional um território não-autónomo] e noutros organismos internacionais. E tanto Israel como a Palestina têm dado prioridade à política externa com os Estados africanos ao longo da sua história.
Ao longo de dois meses de guerra em Gaza, o bloco africano dividiu-se em três grandes grupos, separados por posições opostas face ao conflito. De um lado, o Zimbabué e a África do Sul, juntamente com os países da Liga Árabe, Tunísia, Argélia, Sudão e Chade, manifestaram o seu apoio à Palestina. Do outro, o Quénia, o Gana, a Zâmbia, os Camarões e a República Democrática do Congo apoiaram abertamente Israel. Numa posição intermédia, a Nigéria e o Uganda, cuja neutralidade consiste (…) em apelar a um desanuviamento.
Nos últimos anos Israel tem desenvolvido iniciativas diplomáticas no continente, depois de um continuado declínio a seguir à guerra israelo-árabe de 1973. (…). No entanto, a escalada em Gaza ameaça estes ganhos diplomáticos. No final de Outubro de 2023, cerca de 35 países africanos votaram na Assembleia Geral da ONU a favor da resolução proposta pela Jordânia que apelava à "protecção dos civis e ao cumprimento das obrigações legais e humanitárias". Marrocos e o Sudão, dois países que normalizaram as relações diplomáticas com Israel como parte dos Acordos de Abraão em 2020, estavam entre os países que votaram a favor. Entretanto o Chade, outro país de maioria muçulmana que restaurou recentemente os laços diplomáticos com Israel, chamou o seu Encarregado de Negócios, invocando a "morte de numerosos civis inocentes" e a necessidade de um "cessar-fogo para uma solução duradoura" para a questão palestiniana. De igual modo o Quénia, o maior aliado de Israel no Corno de África, recuou na sua declaração inicial de solidariedade com Israel, e o Ruanda, outro aliado de Israel, enviou ajuda humanitária para Gaza.»

Uma resposta polifónica

«(…). A UA adoptou agora uma posição mais dura contra a guerra de Israel. Numa declaração divulgada no dia do ataque do Hamas, a União atribuiu a responsabilidade pelo conflito a Israel, afirmando que "a negação dos direitos fundamentais do povo palestiniano, em particular o da existência a um Estado independente e soberano, é a principal causa da permanente tensão israelo-palestiniana". (…).
Para Irit Back, professora e especialista em estudos sobre África e o Médio Oriente no Centro Moshe Dayan (Universidade de Telavive), a "divisão reflecte as diversas circunstâncias geoestratégicas, históricas e políticas dos países africanos, por exemplo a aliança tradicional entre o ANC [Congresso Nacional Africano] da África do Sul e a OLP [Organização para a Libertação da Palestina].
O que os une é o passado comum de luta contra o colonialismo e a opressão, bem como a crítica ao apoio dado por Israel ao regime do apartheid sul-africano na década de 1970. De acordo com o que Sascha Polakow-Suransky revelou no seu livro The Unspoken Alliance, Israel ofereceu várias formas de apoio ao regime racista, incluindo o treino das unidades militares de elite sul-africanas, o fornecimento de tanques, espingardas Galil e tecnologia de aviação, bem como uma tentativa conjunta de produzir armas nucleares. Pouco depois da sua libertação da prisão, em 1990, Nelson Mandela declarou que "o povo da África do Sul nunca esquecerá o apoio de Israel ao regime do apartheid". (…).
A Argélia, também membro da Liga Árabe, há muito que apoia os palestinianos na sua luta contra a ocupação israelita. Enviou apoio militar aos exércitos árabes que lutaram contra Israel nas guerras de 1967 e 1973, e apoiou a Palestina na frente diplomática. Em 1975 votou a favor de uma resolução da Assembleia Geral da ONU que equiparou o sionismo ao racismo e, depois da OLP ter proclamado o Estado palestiniano em 1988, a Argélia foi o primeiro país a reconhecê-lo.
Mesmo após alguns países do Norte de África se terem aproximado de Telavive, a Argélia manteve-se firme na sua recusa em reconhecer o Estado de Israel. Em 2020, quando os Acordos de Abraão começaram a aproximar Israel e alguns países árabes, o Presidente argelino Abdelmadjid Tebboune insistiu que o seu país "nunca participaria" na "corrida para a normalização".
O Egipto tornou-se o primeiro país árabe a assinar um tratado de paz com Israel em 1979, seguido pela Jordânia em 1994. Desde 2020, mais quatro países da Liga Árabe – Emiratos Árabes Unidos, Bahrein, Sudão e Marrocos – assinaram os Acordos de Abraão de normalização das relações com Israel.
O acordo assinado por Cartum permitiu-lhe ser retirado da lista negra do terrorismo dos EUA. Mas, ao contrário de Marrocos, o processo de normalização tem avançado lentamente, em parte devido à guerra civil sudanesa. (…). Mas quando o Sudão decidiu, dois dias após o início da guerra em Gaza, restabelecer os laços com o Irão (…), ficou a dúvida sobre a efectividade deste acordo.
Por seu lado Marrocos absteve-se de condenar publicamente Israel, limitando-se a expressar a sua "profunda preocupação com a deterioração da situação e o início das operações militares na Faixa de Gaza". No entanto, o país tem assistido a alguns dos maiores protestos pró-Palestina do continente, envolvendo dezenas de milhares de manifestantes. A matizada posição de Rabat demonstra a sua hesitação em pôr em causa as relações com Israel. O que está em causa para Marrocos é o reconhecimento israelita da sua soberania face ao disputado Sahara Ocidental, que o opõe à Frente POLISARIO, apoiada pela Argélia, entre outros.
Na mesma linha, a posição pró-Israel do Quénia reflecte a importância estratégica do país no Corno de África, especialmente o seu papel como primeira linha de defesa numa região assolada pelo crescimento de grupos islâmicos de linha dura. (...).
Desde o estabelecimento de laços diplomáticos entre o Quénia e Israel há seis décadas, estes países têm colaborado no desenvolvimento económico e na segurança. (…). Após 1976, quando Nairobi deu apoio operacional a uma força militar israelita durante a crise dos reféns de Entebbe, no Uganda, o Quénia tem sofrido uma série de ataques no seu território. (…). Entre eles, contam-se o atentado bombista de 1980 contra o Hotel Norfolk, de propriedade judaica, (...), o atentado bombista em 2002 contra o Hotel Paradise em Mombaça, de propriedade israelita, e o atentado de 2013 contra o centro comercial Westgate, também de propriedade israelita, em Nairobi.
O caso da Nigéria ilustra bem os altos e baixos dos laços entre África e Israel ao longo da história. Embora a Nigéria tenha assumido uma posição neutral na actual guerra em Gaza, o gigante da África Ocidental tem alternado entre o apoio aos palestinianos e o apoio a Israel. (…).
Após a guerra israelo-árabe de 1973, a Nigéria cortou relações com Telavive, que só foram restabelecidas duas décadas mais tarde, em Setembro de 1992, levando ao florescimento do comércio entre os dois países. Em 2013, o antigo presidente Goodluck Jonathan tornou-se o primeiro chefe de Estado nigeriano a visitar Israel.»

Ofensiva diplomática

«A reacção de África à guerra israelo-palestiniana mostra também o resultado da ofensiva diplomática de Israel para restabelecer os laços com África. Nos últimos anos, Netanyahu liderou o esforço israelita de entrar em África. Fez escala na Etiópia, no Quénia, no Ruanda e no Uganda durante uma visita de Estado em 2016. No ano seguinte, Netanyahu discursou na Libéria na Cimeira de Chefes de Estado e de Governo da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), tornando-se o primeiro dirigente fora de África a fazê-lo. Até agora, Israel tem reforçado as relações com uma série de países africanos, em especial com vários Estados importantes do Norte de África e da África Subsariana e pelo menos 46 países da UA já reconhecem Israel.
"Nos últimos 10 anos, Israel tem feito esforços significativos para construir relações com África, mas estas são sobretudo transaccionais, uma forma de ganhar apoio na ONU e noutros fóruns internacionais", disse à Inkstick o jornalista Antony Loewenstein, que esteve em Jerusalém entre 2016 e 2020.
No livro The Palestine Laboratory, Loewenstein investigou a tecnologia militar israelita, a recolha de dados e a guerra cibernética desenvolvidas e testadas no combate aos palestinianos na Cisjordânia ocupada e em Gaza. Segundo ele, essa tecnologia tornou-se moeda de troca nos negócios de Israel, quer com ditaduras quer com democracias, incluindo as africanos. (…).
De acordo com o Ministério da Defesa de Israel, as exportações de defesa do país para África aumentaram para 6,5 mil milhões de dólares em 2016 – um aumento impressionante de 800 milhões de dólares em relação ao ano anterior. Estas exportações significam lucros elevados para as empresas israelitas, mas Loewenstein argumenta que os negócios lucrativos não são o único objectivo. Israel espera que os países-cliente, que beneficiam do seu armamento e da sua tecnologia de espionagem, mudem a sua posição em votações importantes na ONU. (…).
A 30 de Dezembro de 2014, o enviado nigeriano ao Conselho de Segurança da ONU, Joy Ogwu, absteve-se numa votação que exigia que Israel pusesse fim à sua ocupação de Gaza e da Cisjordânia. Em Abril de 2013, a Nigéria tinha pago 40 milhões de dólares a uma empresa israelita, a Elbit Systems, por um sistema de telecomunicações e vigilância que poderia ajudar os esforços do regime a controlar as actividades dos cidadãos na Internet.
O programa de espionagem Pegasus, criado pela empresa israelita NSO Group, também se generalizou em África. Descrito como "a arma cibernética mais poderosa do mundo", o Pegasus foi associado a vários abusos cometidos por regimes africanos, nomeadamente no Ruanda, no Gana, em Marrocos e no Togo.
"Há muitas provas de que Israel apoia regimes repressivos em África e alguns desses Estados têm vindo a apoiar Israel nas últimas semanas", acrescentou Loewenstein. "Não creio que seja uma coincidência". (…).»

MARROCOS: CORRUPÇÃO E REPRESSÃO

(Boletim nº 128 - Janeiro 2024)

A passagem do primeiro aniversário da revelação do processo de corrupção dos eurodeputados, vulgarmente designado por "Marrocosgate", foi a oportunidade para a divulgação de mais elementos sobre as teias deste processo.

Marrocos: a luta pela liberdade

A corrupção

Que envolveu Abderrahim Atmoun, o embaixador de Marrocos acreditado em Varsóvia, «acusado de pagar campanhas políticas e de oferecer presentes luxuosos a deputados do Parlamento Europeu», como Pier Antonio Panzeri e Eva Kaili, entre outros.
Estes "outros" não se limitaram ao PE, como agora foi revelado. A «unidade #Investigation» da RTBF — o canal francófono da Rádio Televisão Belga – «investigou as práticas da diplomacia marroquina na Bélgica. Descobriu as suas ligações surpreendentes com o deputado federal Hugues Bayet (PS) e com a deputada regional de Bruxelas Latifa Aït-Baala (MR) [Mouvement Réformateur].» Esta deputada «produz e realiza filmes sobre a história do Sahara Ocidental e da Frente POLISARIO. Para o efeito, pôde contar com o apoio financeiro das autoridades marroquinas. (…) Ficamos a saber que a sua associação, Freemedia, recebeu 165.000 dirhams, o equivalente a 15.000 euros, em 2010-2011. (…). Noutro documento, uma nota de orientação em papel timbrado da sua associação Freemedia, descobrimos as intenções prosseguidas por Latifa Aït-Baala com o seu filme sobre a Frente POLISARIO. A nota diz o seguinte: "É agora necessário levantar o véu sobre a verdadeira face da POLISARIO e a sua falta de legitimidade para defender ou representar qualquer população, causa ou interesse". Os documentários de Latifa Aït-Baala foram exibidos em lugares de poder, como o Parlamento Europeu e o Parlamento Federal [belga].»
Quanto a Hugues Bayet, que foi eurodeputado entre 2014 e 2019, colaborou com Pier Antonio Panzeri nos dossiers ligados a Marrocos. «Em Maio de 2022 lançou o COBESA, o Comité belga de apoio ao plano marroquino de autonomia do Sahara. (...). Este comité afirmava claramente as suas ambições: encorajar o governo belga a tomar uma posição a favor da proposta marroquina. (…). A inauguração do COBESA no Press Club de Bruxelas contou com a presença do embaixador marroquino, Mohamed Ameur. (…). Segundo informações recolhidas junto do Press Club, (...) o "embaixador visitou brevemente a sala alguns dias antes. Pagou a factura no valor de 620 euros".»
«Em 20 de Outubro de 2022, o deputado do PS levantou uma questão na Câmara dos Deputados. Tendo como alvo Hadja Lahbib, a Ministra dos Negócios Estrangeiros [da Bélgica], que se encontrava de visita a Marrocos, pediu ao governo que tomasse uma posição sobre o plano de autonomia marroquino para o Sahara Ocidental: "para os socialistas, parece muito claro que a nova proposta de Marrocos e o seu plano de autonomia para o Sahara constituem uma base bastante séria para o início das negociações".»
Interrogado pela RTBF sobre a actividade deste deputado do PS, Pierre Galand, ex-senador deste partido que acompanha de muito perto o processo de descolonização do Sahara Ocidental, declarou: «"Não conheço a história dele. Não sei porque é que ele criou este comité assim de repente. Só vos posso dizer que os marroquinos têm tendência a comprar pessoas. É tudo o que há a dizer. Eles pagam. (…). Há anos que Marrocos faz isso."» E contou uma história passada com ele, fundamentando a sua afirmação.
«As acusações contra Hugues Bayet são graves. No final deste inquérito, enviámos uma última pergunta ao Partido Socialista, perguntando muito claramente quais eram as verdadeiras ligações entre Hugues Bayet e as autoridades marroquinas. O Partido Socialista nunca respondeu a esta pergunta específica.»
Mas o trabalho jornalístico não se ficou por aqui. «A unidade #Investigation da RTBF investigou o MR e as suas "ligações" com o Sahara Ocidental, um território sob ocupação marroquina. No outono de 2022, o partido de Georges-Louis Bouchez fez uma série de declarações oficiais e de deslocações à região.»
Seguem-se as «explicações em três actos.» O primeiro decorreu em Setembro de 2022, quando quatro parlamentares deste partido se deslocaram a Marrocos, com uma passagem-relâmpago por El Aiun, a capital do Sahara Ocidental ocupado. Passagem esta que foi revelada quatro meses depois pelo jornal valão La Libre Belgique, tendo então sido vivamente criticada. «Entrevistado na BX1 em Janeiro de 2023, o chefe do partido MR de Bruxelas, David Leisterh, afirma que "assumiu a responsabilidade desta viagem" e que o Sahara Ocidental "é uma região muito estável". Acrescentou que tinha passado... 24 horas no local. Contactado por #Investigation, David Leisterh recusou-se a comentar.»
O segundo acto foi representado em Outubro daquele mesmo ano pela MNE Hadja Lahbib, que em visita oficial a Rabat reconheceu, em nome do Estado belga, que «"o projecto de autonomia de Marrocos para o Sahara Ocidental constitui uma base séria e credível", o que foi vivamente criticado pelos maiores especialistas belgas em direito internacional numa carta aberta publicada no jornal Le Soir
Finalmente, ainda naquele mês de Outubro, «Georges-Louis Bouchez desloca-se em missão oficial a Marrocos. O Presidente do MR foi convidado pelo partido liberal local. Oficialmente, a deslocação é unicamente ao território marroquino. Esta é a informação que pode ser consultada no sítio web do partido liberal.» Mas «A unidade #Investigation da RTBF conseguiu ter acesso a um documento confidencial. O seu conteúdo? A agenda do dirigente do MR. E uma viagem ao Sahara Ocidental feita em total secretismo. A informação foi-nos confirmada por um quadro do partido Liberal. Problema: o assunto parece estar a incomodar o MR. O seu porta-voz Qassem Fosseprez respondeu: "Todas as respostas estão no sítio web do MR. Não tenho nada a acrescentar". O que é que Georges-Louis Bouchez foi lá fazer? Com quem se encontrou? E porquê esconder a sua visita a este território anexado por Marrocos? O Mouvement Réformateur fechou-se em copas.»

A repressão

Como escreveu Elias Ferrer Breda, «Há muitas razões para que o governo marroquino tenha sido tão agressivo no lobbying na Europa – ao ponto de alegadamente cometer actividades ilegais, incluindo subornos. Uma questão fundamental tem sido a obtenção de legitimidade para a sua ocupação ilegal do Sahara Ocidental.» E uma dessas «muitas razões» é a urgência de preservar o regime, manifestada abertamente na repressão, quer sobre os seus concidadãos, quer sobre a população do Sahara Ocidental ocupado.
Isto mesmo foi reconhecido pelo Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Detenção Arbitrária que, em finais de Novembro, instou Marrocos a libertar imediatamente os presos de Gdeim Izik. «O professor e antigo Presidente-Relator do Grupo de Trabalho das Nações Unidas, Mads Andenas, declarou: "A decisão é uma confirmação importante das análises já feitas por numerosos observadores do julgamento, pela Amnistia Internacional e pela Human Rights Watch, por vários titulares de mandatos das Nações Unidas e pelo Comité Contra a Tortura das Nações Unidas. Conhecendo a tendência viciosa e a preocupante espiral descendente de Marrocos, que se recusa a assumir compromissos, nega violações graves e submete as vítimas e as suas famílias a represálias, pedimos a todos os Estados e terceiros que pressionem Marrocos para aplicar esta decisão e libertar os prisioneiros".»
Como conclui Ferrer Breda, «Ao longo dos anos, os relatórios da Amnistia Internacional, da Human Rights Watch e do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU têm repetido as acusações de que as forças de segurança marroquinas estão a torturar, a negar o direito de protesto e a liberdade de expressão, com julgamentos injustos e outras violações dos direitos humanos. Não é de surpreender que estas acusações não se limitem ao território ocupado; parecem ser um modus operandi comum das forças de segurança em todo o território marroquino, de Tânger a Rabat e a Agadir.»