sexta-feira, 3 de abril de 2020

Boletim nº 83 - Abril 2020

CENTRAR O SAHARA OCIDENTAL NO PROCESSO DE DESCOLONIZAÇÃO

Para começar o ano em que termina a Terceira Década Internacional para a Erradicação do Colonialismo, proclamada pelas Nações Unidas, e sendo o Sahara Ocidental a última colónia de África, a Associação de Amizade Portugal-Sahara Ocidental lançou uma iniciativa visando reforçar e exigir o empenho da ONU e sensibilizar a opinião pública portuguesa.

Pela descolonização do Sahara Ocidental

Deste esforço resultou a Carta Aberta dirigida ao Secretário-geral da ONU, António Guterres, no dia 17 de Março, subscrita por 63 personalidades portuguesas, reconhecidas em diversos sectores de actividade e intervenção.
«Vivemos num mundo em turbulência, e a questão do Sahara Ocidental parece ser só mais uma, entre muitas. No entanto, o povo saharauí mantém a exigência de decidir o seu futuro, e o Direito Internacional é inequívoco», afirmam as e os subscritores. «O custo humano – bem como político, económico, social, cultural e ambiental - destas mais de quatro décadas de impasse é indescritível».
Ao reconhecer «a contribuição fundamental» de António Guterres «para a solução do caso de Timor Leste» e o «papel das Nações Unidas nesse processo», as e os subscritores esperam que com esta experiência a ONU possa voltar a fazer a diferença, «ao empenhar-se decididamente na negociação que leve as partes a acordar na realização de um referendo livre e justo à população saharauí, de acordo com o recenseamento já realizado».
Neste sentido, as «cidadãs e cidadãos portugueses e do mundo», reiteram ao Secretário-geral que ele «pode contar com todo o apoio e capacidade de mobilização de quem acredita que é nos momentos difíceis que o esforço, a criatividade e a perseverança nos princípios nos distinguem.»
O contacto com o grupo de subscritores/as foi extremamente estimulante: algumas pessoas têm acompanhado o problema ao longo de anos e continuam atentas e solidárias; outras redespertaram para a questão, evocando memórias de acções e debates em décadas anteriores; para outras ainda foi uma revelação, à qual aderiram prontamente. Recebemos agradecimentos por terem tido a oportunidade de participar na iniciativa, pedidos para continuarem a receber informação e afirmação de disponibilidade para colaborações no futuro.
O eco na comunicação social, à qual também foi enviado um comunicado de imprensa, foi diminuto, mas muito diversificado: no Pravda em português, no Sete Margens, no Jornal Económico e no Esquerda.net (por ordem de publicação). Ao mesmo tempo, abriram-se portas para dar ao Sahara Ocidental uma atenção e um lugar que não tem tido na informação portuguesa.
A Carta, traduzida em francês e inglês, foi igualmente partilhada com grupos de solidariedade, em particular europeus, de alguns dos quais nos chegaram apreço e encorajamento, contribuindo para estreitar laços e cumplicidades.
Veja aqui a Carta na íntegra e a lista de subscritores/as.

SAHARA OCIDENTAL: A AMEAÇA DA PANDEMIA

A pandemia do coronavírus veio ensombrar ainda mais a vida da população saharauí, quer se encontre no território ocupado do Sahara Ocidental, nos acampamentos de refugiados ou nas prisões marroquinas. O que torna mais urgente que “rompamos o silêncio”.

Adiado para Outubro

Nos princípios de Março a organização do Festival Internacional de Cinema do Sahara (FiSahara) anunciou que, devido à situação criada pelo coronavírus, tinha decidido adiar a realização do festival para Outubro. O FiSahara - o mais original festival da história da cinematografia – estava previsto decorrer no acampamento de refugiados de Auserd (região de Tindouf, Argélia) com arranque marcado para 14 de Abril. A sua primeira mostra ocorreu em 2003 e hoje reúne muitos apaixonados da 7ª arte vindos de várias partes do mundo. O tema deste ano era: «Rompamos o silêncio: Memória e resistência».
Esta medida inscreveu-se nas orientações do Ministério da Saúde da República Árabe Saharauí Democrática (RASD) que logo nos princípios de Março definiu um conjunto de acções de prevenção que incluíam campanhas de sensibilização e um plano de comunicação em matéria de prevenção dirigido a professores, pais e alunos. O Ministério solicitou igualmente à população a máxima colaboração, incluindo a difusão apenas dos dados divulgados pelos canais autorizados, de modo a evitar a propagação de boatos e notícias falsas.
Mas com o avançar da pandemia pelo mundo os responsáveis saharauís tiveram de adoptar medidas mais restritivas, tal como, aliás, o foram fazendo a maioria dos governos, seguindo as instruções dadas pela OMS (Organização Mundial de Saúde). «O governo saharauí aprovou medidas que entraram em vigor ontem [19 de Março] à noite, incluindo a medida de confinamento para impedir a propagação do Covid-19 na República Saharaui», informou o sitio ECSAHARAUI. Que acrescenta:
«As autoridades saharauís decidiram introduzir um regime de alerta máximo devido à ameaça de propagação do coronavírus. As aulas nas escolas estão suspensas. Todos os eventos desportivos e de entretenimento foram cancelados.
«O governo saharauí ordenou na quinta-feira o confinamento da população residente nos campos de refugiados saharauís, nos territórios libertados do Sahara Ocidental e nas regiões militares para impedir a propagação do surto de coronavírus que afecta o mundo, causando milhares de mortes e infectando todas as partes do planeta.
«Isso significa que os 170.000 cidadãos dos cinco campos (Dakhla, Smara, Bojador, Auserd e El Aaiún), além da Unidade Administrativa de Chahid Alhafed, terão saídas restritas a partir das 00:00h de sexta-feira [dia 20] à noite e até novo aviso.»
Mas na situação em que se vive nos acampamentos e nos territórios libertados receia-se que estas medidas não impeçam a degradação das condições de vida. Uma notícia saída no Diario 16, assinada pelos jornalistas Manuel Domínguez Moreno e José Antonio Gómez, dá-nos conta disto mesmo: «A escassez de hospitais e a falta de médicos nos campos de refugiados onde o povo saharauí vive podem provocar uma crise de saúde com consequências apocalípticas». E acrescentam: «Estamos a ver como o COVID-19 está a fazer colapsar os sistemas nacionais [de saúde] de países avançados como a China, a Itália, a Coreia ou a Espanha. Se esta situação ocorre nesses lugares economicamente privilegiados, o que acontecerá nos campos de refugiados do povo saharauí, onde há tantas deficiências de saúde?
«Se o impacto do COVID-19 em infectados e mortos é enorme em países com recursos, nos acampamentos onde os saharauís vivem seria catastrófico, sobretudo depois de em 2018 os recursos financeiros com que a Frente POLISARIO contava terem sido drasticamente reduzidos.
«As condições de vida nos acampamentos e os limitados recursos económicos tornam a disponibilidade de pessoal de saúde qualificado um dos principais problemas que os profissionais enfrentam para garantir o direito à saúde da população de refugiados saharauís.
«Para acudir a esta situação, ONG como Médicos del Mundo tentam aliviar as deficiências do pessoal de saúde através da formação contínua, de diferentes programas e do apoio à formação local das matronas, prestando atendimento especializado com equipas voluntárias.
«Se o coronavírus chegar aos acampamentos de Tindouf (Argélia), onde vivem mais de 180.000 seres humanos em condições desumanas, atingiria os saharauís de um modo mais agressivo do que, por exemplo, em Espanha ou Itália. A população de risco nestes acampamentos é muito mais elevada pela situação em que vivem: diabetes, desnutrição, desidratação. Infecções ou desidratação são algumas das doenças mais comuns que apenas trinta médicos têm de enfrentar.
«Por outro lado, as infra-estruturas hospitalares são casas de adobe com pouca ventilação e sem água corrente. Além disso, na grande maioria, é impossível realizar procedimentos cirúrgicos porque não existem salas de cirurgia esterilizadas.
«Para a transferência de doentes quase não existem ambulâncias onde haja oxigénio, nem, obviamente, ventiladores. Também existe uma grave falta de medicamentos essenciais em qualquer hospital ocidental, principalmente antibióticos. Portanto, estão altamente expostos a uma epidemia.»
A pensar na actual situação no Sahara Ocidental, e particularmente na que vivem os presos políticos saharauís nas masmorras marroquinas, umas largas dezenas de associações defensoras dos direitos humanas e de solidariedade com a causa do povo do Sahara Ocidental dos cinco continentes — entre as quais a AAPSO (Associação de Amizade Portugal-Sahara Ocidental) — escreveram uma carta a Filippo Grandi, Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, a Michelle Bachelet, Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos e aos 15 membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas alertando-os para a situação em que se encontram os detidos, que «são vítimas de maus-tratos, tortura e negligência médica intencional». «No contexto desta pandemia, são alvos fáceis para o regime marroquino», havendo «uma necessidade urgente de intervir para a sua protecção.»
«No território que Marrocos controla», conforme relata o jornalista Jesús Cabaleiro Larrán no Periodistas en español, no passado dia 27, «estima-se que mais de 3.000 colonos marroquinos deixaram o Sahara devido à disseminação do coronavírus. Especificamente, haveria mais de mil em El Aaiún e mais de 1.250 em Dakhla, no sul do território. Nesta última cidade, as autoridades marroquinas fretaram mais de 28 autocarros. Além disso, também houve quem partisse de avião e em táxis colectivos (...).
«As razões para este êxodo são diversas, desde o fecho do comércio a não confiarem nas instalações hospitalares existentes no território em caso de complicações.»
Como escreveu
1
Exterminem todas as bestas, Lisboa, Editorial Caminho, 2005, p. 17.
Sven Lindqvist, «Você já sabe quanto baste. Eu também. Não é de informação que carecemos. O que nos falta é a coragem para compreender o que sabemos e tirarmos conclusões.»