segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

SOPRAM VENTOS DE GUERRA EM MARROCOS

(Boletim nº 127 - Dezembro 2023)

Se no último mês se assistiu a um escalar do conflito militar entre Marrocos e a Frente POLISARIO, correndo em paralelo um processo de rearmamento por parte de Rabat, por outro, forças marroquinas estão envolvidas na faixa de Gaza no conflito entre Israel e a Palestina, com a conivência do poder político de Marrocos. 

Aeroporto militar de Smara

Exército saharaui ataca aeroportos militares marroquinos

Quatro décadas após o último ataque, a 5 de Novembro passado, as forças do Exército de Libertação Saharaui (ELS) voltaram a atacar o aeroporto militar situado na região de Smara (no norte do território ocupado), tendo este sido atingido por sete mísseis que causaram relevantes danos estruturais. Por sua vez, a 9 de Novembro, o ELS atacou pela primeira vez outro aeroporto, situado na região vizinha de Mahbes, concretamente na zona de Grair Labouhi.
Estes aeroportos são locais de onde partem os veículos aéreos não tripulados (drones) marroquinos que flagelam regularmente o Sahara Ocidental, tornando-se assim um óbvio alvo de contra-ataque. A operação desenvolvida pelo ELS destinou-se a incapacitar o exército marroquino de atacar e a ganhar liberdade de movimento. Marrocos, por seu lado, manteve-se em silêncio e impediu o acesso às zonas próximas dos ataques, de forma a evitar a divulgação de imagens.
Em paralelo, o Estado-Maior Saharaui, dirigido pelo Presidente da República Árabe Saharaui Democrática (RASD), Brahim Ghali, reuniu-se para discutir os recentes desenvolvimentos, declarando que «o ELS passou do assédio com artilharia, para operações de ataque directo e incursão a posições inimigas». Renovou ainda a advertência de que «todo o Sahara Ocidental, no seu espaço aéreo, terrestre e marítimo, é uma zona de guerra», sublinhando várias operações de incursão, como o raide de Uarkziz no sector de Agha.
Estes ataques representam assim uma escalada na guerra que se desenrola desde Novembro de 2020 (quando Marrocos rompeu o acordo de cessar-fogo), aparentando terem sido realizados com misseis de grande precisão, lançados a partir de uma zona não identificada.
Alguns analistas, aliás, consideram que a chegada deste novo arsenal obrigará Marrocos a uma resposta ainda mais agressiva no conflito no Sahara Ocidental, que o Secretário-geral da ONU, António Guterres, durante os últimos anos qualificou de «baixa intensidade».
Estas investidas relevam a fragilidade do aparelho militar marroquino, tendo em conta que possuem um muro defensivo de mais de 2.500 km, protegido por campos de minas com largura de 2 km, separando o Sahara Ocidental ocupado da zona livre, e dotado de radares que alegadamente detectam movimentos a 60 km de distância. É também de salientar que os ataques ocorreram em zonas onde os marroquinos seriam aparentemente mais fortes.
Num desenvolvimento posterior, a 16 de Novembro, «pelo menos quatro mísseis atingiram a base militar de Tamegroute, no sul de Marrocos, local onde estão estacionadas tropas do seu exército, junto à fronteira com o Sahara Ocidental». A região de Tamegroute situa-se junto à estância balnear de Irqi, conhecida pela presença permanente de membros da família real do Qatar, o que provocou um impacto acrescido. Refira-se ainda que esta cidade se encontra a mais de 100 km a norte da fronteira entre Marrocos e o Sahara Ocidental e a cerca de 60 km da fronteira com a Argélia. É, por conseguinte, a primeira vez que o ELS visa um alvo tão distante em território marroquino.
Numa aparente resposta, a 18 de Novembro, Marrocos bombardeou dois veículos civis utilizando drones, tendo os ataques ocorrido na aldeia de Z'gula, local onde centenas de saharauis e mauritanos extraem ouro numa mina tradicional. Um dos veículos era privado, de matrícula mauritana e nele viajavam três indivíduos que morreram no ataque. E no dia 19 a Frente POLISARIO reconheceu que um drone marroquino tinha morto 5 dos seus combatentes.

Mercenários marroquinos no cerco à faixa de Gaza

Segundo o relatado pelo jornalista marroquino Ali Lmrabet, «dezenas de mercenários marroquinos já foram mortos ou feitos prisioneiros pela resistência palestiniana», sendo que o jornal espanhol El-Mundo, confirma a presença de fuzileiros espanhóis, albaneses, franceses, indianos, árabes e africanos, recrutados por Telavive, para apoiar as suas tropas na operação terrestre no enclave palestiniano sitiado.
Certamente com o pleno consentimento do Rei de Marrocos, quiçá até com o seu empenho, o alistamento de mercenários marroquinos é confirmado pelo escritor Jacob Cohen, em entrevista ao Algerie patriotique, ao afirmar que «a monarquia marroquina não tem mais nada a recusar ao seu protector e aliado israelita». O mesmo é dito por Mohamed Salem Ould-Salek, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros saharaui, que acrescenta existirem desde há muito, «dezenas de conselheiros israelitas nos serviços de informação e no exército marroquino», os quais «determinam a política interna e externa de Marrocos».
«É por isso, aliás, que Marrocos retomou rapidamente as suas relações com Israel. Basta ler a imprensa marroquina, que fala da factura de cerca de 400 milhões de dólares de importações provenientes do Estado judaico. Há uma política (…) de aproximação entre os dois países», observou o actual conselheiro diplomático do presidente Brahim Ghali, acrescentando que «os soldados mais extremistas ao serviço do exército israelita são sefarditas marroquinos».
Segundo o El-Mundo, estes mercenários são recrutados e enviados para o terreno de operações pela Black Shield, uma empresa especializada em segurança privada e vigilância que forma e emprega «agentes de segurança, tratadores de cães e outros perfis.»
Em Junho de 2020, o Algerie patriotique já tinha publicado declarações de quatro antigos altos funcionários da Mossad (serviços secretos israelitas) que revelaram o carácter secreto das relações entre os dois Estados. Estas relações, «muito íntimas», remontam à década de 1960. «Penso que fui o primeiro israelita a sentar-se ao lado do rei de Marrocos [Hassan II], fui eu que iniciei os contactos entre Israel e Marrocos», afirmou Rafi Eitan, chefe de operações da Mossad entre 1950 e 1960. Yossi Alpher, oficial da Mossad entre 1969 e 1981, sublinhou que «foi a Mossad que forjou as relações políticas estratégicas» com o regime de Rabat, confirmando o papel central desempenhado pela agência israelita.
Porém, segundo Driss Ghali, escritor marroquino licenciado em Ciências Políticas, «o ataque do Hamas pôs fim à normalização das relações entre Israel e Marrocos», uma vez que «a população marroquina escolheu o seu lado, sem apoiar o terrorismo». Por outro lado, afirma, «a classe política sabe que Israel é um aliado necessário na estratégia de afirmação do poder do Reino no Magrebe». Para Ghali, a operação levada a cabo pelo Hamas a 7 de Outubro, «virou o tabuleiro de xadrez do Médio Oriente e desferiu um golpe numa das políticas mais valiosas para o reino alauíta: a normalização com Israel. Esta política de aproximação, promissora mas frágil (…) foi varrida pela onda de choque (…) do Hamas», com efeitos colaterais nefastos uma vez que revelou uma «espécie de intoxicação» nos círculos do Makhzen, o qual se considerava «finalmente libertado da sua relação tradicional com a França e a Europa Ocidental». Com um aliado como Israel, Marrocos «já não iria precisar de aceitar a arrogância de Paris».
«O 'parêntesis encantado' (...) da normalização com Telavive 'explodiu' a 7 de Outubro com a ofensiva do Hamas (…), o qual pôs a nu os seus pontos cegos da [referida] normalização, a começar pelo relegar da causa palestiniana para segundo plano».
Para retomar o rumo com Israel, Rabat precisa que o diferendo palestiniano seja resolvido de forma a pôr em prática «a tese da 'simultaneidade' segundo a qual Marrocos pode ser, ao mesmo tempo, o melhor amigo dos palestinianos e o parceiro estratégico dos israelitas. Desde 7 de Outubro, a ilusão da equidistância dissipou-se na poeira das bombas e dos mísseis.»
Não tendo sido convidado a participar no debate sobre a normalização desde o início, o povo marroquino recorreu às «redes sociais para apoiar o Hamas e exprimir a sua rejeição da normalização» e esta «revela-se um objecto frágil (…) tal como o sonho de um dia controlar todo o território do Sahara Ocidental, razão principal da normalização com o Estado hebreu».

Corrida às armas

O rearmamento acelera em Marrocos, enumerando Alonso Palacios vários factores fundamentais para esse desiderato: «o primeiro é o apoio decisivo dos Estados Unidos e de Israel (…) que deu um impulso a uma política de aquisição de armas à qual, de outro modo, teria sido difícil de aceder. O segundo factor é, evidentemente, a tensão com a Argélia (…) que se agravou nos últimos meses em consequência do conflito do Sahara Ocidental, (…) as hostilidades também se intensificaram com a Frente POLISARIO.
«Em terceiro lugar, o ambicioso programa de armamento tem como objectivo transformar Marrocos na principal potência militar do Magrebe. Um objectivo que afecta directamente a Espanha (…), voltando a pairar a reivindicação perpétua de Marrocos sobre Ceuta e Melilla».
Marrocos aumentou em 4,1% a dotação orçamental de Defesa para 2024, atingindo os 11,3 mil milhões de euros (9,6% do PIB do país), tendo como objectivo «adquirir e manter o equipamento das forças armadas e apoiar o desenvolvimento da indústria da defesa».
Em contraponto, o orçamento geral de Espanha para 2023 inclui «uma dotação para o Ministério da Defesa de 12,8 mil milhões de euros», mais 1,5 milhões de euros do que Marrocos. A comparação não é equivalente, uma vez que, no caso de Espanha, estamos a falar de 2023 em comparação com a previsão de Marrocos para 2024. «Mas é, sem dúvida, ilustrativa do elevado montante que Marrocos está a injectar no sector da defesa. O facto dos dois orçamentos serem similares é algo a ter em conta pelos estrategas militares espanhóis. (…).»
«O projecto de orçamento prevê ainda a criação, em 2024, de 7.000 novos postos de trabalho para funcionários públicos na administração da defesa, o mesmo número dos criados em 2023, sendo já o segundo maior empregador depois do Ministério do Interior (mais 7.944 lugares).»
Note-se também que Marrocos aprovou em 2021, «a lei 10-20 relativa aos materiais e equipamentos de defesa e segurança, que visa desenvolver uma indústria de armamento com a instalação de unidades industriais e o fabrico de armas por operadores marroquinos e com a participação de operadores estrangeiros».


 


POLÍTICA EXTERNA DE ESPANHA: «A DUALIDADE DE CRITÉRIOS»

(Boletim nº 127 - Dezembro 2023)

O governo de Espanha tem assumido posições antagónicas face aos conflitos no Sahel e no Médio Oriente, num bom exemplo da chamada política de “dois pesos, duas medidas”. O jornalista Ignacio Cembrero publicou a sua reflexão sobre esta ambivalência, cuja tradução aqui divulgamos.

A explicação para a dualidade de critérios

«OS DOIS PESOS E AS DUAS MEDIDAS DE SÁNCHEZ: DIREITO INTERNACIONAL PARA GAZA, MAS NÃO PARA O SAHARA [OCIDENTAL]

 Marrocos é a explicação para a duplicidade de critérios do Presidente do governo, que sabe que Rabat pode utilizar instrumentos como a imigração irregular para colocar a Espanha em apuros.

"Israel deve também respeitar o direito internacional, incluindo o direito internacional humanitário". O Presidente do governo Pedro Sánchez repetiu esta frase em todas as etapas da sua mini-viagem pelo Médio Oriente na semana passada.
Chegou mesmo a dizê-lo na cara do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanhayu, na quinta-feira, 23 de Novembro. Referia-se aos "ataques indiscriminados", segundo ele, do exército israelita contra civis na Faixa de Gaza. "O número de palestinianos mortos é verdadeiramente insuportável", sublinhou. Esta frase tornou-se a manchete de muitos jornais do mundo islâmico. O número de palestinianos mortos até segunda-feira, 27, ronda os 15.000, segundo as autoridades da Faixa de Gaza, a que se juntam milhares de pessoas soterradas nos escombros e cujos corpos ainda não foram recuperados.
A invocação do direito internacional também esteve presente em todos os discursos de Sánchez desde que a Rússia invadiu a Ucrânia em Fevereiro de 2022. Sánchez deslocou-se por três vezes a Kiev para manifestar a sua solidariedade para com o Presidente Volodomir Zelenski. Em Fevereiro deslocou-se mesmo à cidade de Bucha e ao bairro de Irpin, em Kiev, onde se suspeita que o exército russo tenha cometido crimes de guerra.
Esta preocupação com o direito internacional em locais situados a mais de 3.500 Kms das fronteiras espanholas contrasta com o desinteresse por outro território situado a menos de 200 Km do extremo oriental das Canárias e que foi colónia espanhola até 1975: o Sahara Ocidental.
Até Março de 2022, a diplomacia espanhola escondeu-se atrás das resoluções da ONU sobre o Sahara [Ocidental] para manter uma posição aparentemente equidistante entre Marrocos, que controla 80% do território, e a Frente POLISARIO, que controla os restantes 20%. O Sahara Ocidental tem 266.000 Kms quadrados, uma área equivalente a metade do território espanhol.
A equidistância era mais aparente do que real, porque no tempo de José Luis Rodríguez Zapatero como primeiro-ministro, Luis Planas, então embaixador de Espanha em Marrocos, já tinha oferecido apoio jurídico aos marroquinos para melhorar o seu plano de autonomia para o Sahara [Ocidental]. Foi apresentado em 2007 para contornar o referendo sobre a autodeterminação da população autóctone. Os contributos de Planas foram registados nos telegramas do Departamento de Estado revelados em 2010 pela WikiLeaks.
A equidistância desapareceu por completo quando, a 18 de Março de 2022, Mohammed VI de Marrocos revelou num comunicado que tinha recebido uma carta de Sánchez. Nela, o Presidente do governo considerava o plano de autonomia como "a base mais séria, realista e credível" para a resolução do diferendo do Sahara [Ocidental]. Outros países europeus apoiam a proposta marroquina mas em termos menos exuberantes.
O apoio à autonomia não faz parte das resoluções do Conselho de Segurança da ONU. A última, aprovada a 30 de Outubro, apelou pela enésima vez a "uma solução política justa, duradoura e mutuamente aceitável, que preveja a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental".
Embora Sánchez aplique dois pesos e duas medidas nas suas declarações, existe um ligeiro paralelismo entre o Sahara [Ocidental] e a Palestina. "O conflito saharaui é como o conflito palestiniano, só será resolvido quando for atacado pela raiz", declarou, por exemplo, Arancha González Laya, antiga ministra dos Negócios Estrangeiros, ao diário El Independiente. "O acordo israelo-marroquino [de 10 de Dezembro de 2020] é uma ocupação em troca de outra ocupação", escreveu a jornalista Noa Landau no diário israelita Haaretz.
É verdade que a situação nesta antiga colónia espanhola não é tão grave como na Ucrânia ou em Gaza. No entanto, desde Novembro de 2020, Marrocos e a POLISARIO têm vindo a travar uma guerra de baixa intensidade, na qual se registaram baixas militares e civis de ambos os lados. Em três anos de hostilidades, Rabat só reconheceu uma, um civil morto a 29 de Outubro em Smara, enquanto a POLISARIO reconheceu oficial ou oficiosamente algumas, a última das quais a 19 de Novembro. Nesse dia, um drone marroquino matou cinco dos seus milicianos. A Argélia também denunciou em 2021 a morte de três camionistas argelinos.
O conflito do Sahara é menos grave, mas a Espanha tem uma responsabilidade que não tem na Ucrânia ou na Palestina. É a potência administrante de jure, mesmo que, na prática, não desempenhe esse papel. Só o faz actualmente no espaço aéreo do Sahara [Ocidental] que, 47 anos após a sua saída do território, continua sob o seu controlo, através da empresa pública Enaire. Apenas os voos militares marroquinos estão isentos deste controlo.
Esta responsabilidade espanhola foi, por exemplo, estabelecida no relatório de Hans Corell, Subsecretário-geral das Nações Unidas para os Assuntos Jurídicos, em Janeiro de 2002. Nele recordou que, em 1975, a Espanha não transferiu a soberania sobre o território nem conferiu o estatuto de potência administrante a Marrocos e à Mauritânia porque não o podia fazer unilateralmente.
Além disso, a Assembleia Geral da ONU aprova todos os anos uma resolução que estipula que as potências administrantes, entre as quais a Espanha, continuam a manter as suas obrigações até que a própria instituição mude de opinião. "Mesmo que a Espanha não queira ter nada que ver com o território", como afirma o ministro José Manuel Albares, "um Estado só pode renunciar aos seus direitos, mas não às suas obrigações", recordou Juan Soroeta, professor de Direito Internacional Público na Universidade do País Basco, ao jornal El Independiente.
As afirmações de Soroeta não são um acaso. Os sucessivos responsáveis pelo departamento jurídico do Ministério dos Negócios Estrangeiros, com algumas excepções, consideraram nos seus relatórios, que não são públicos, que a Espanha continuava a ser a potência administrante de jure do Sahara. Os sucessivos ministros ignoraram com a mesma teimosia estas declarações.
À porta fechada, em Espanha, o plenário da divisão criminal da Audiência Nacional também sublinhou, em 2014, que a potência administrante da antiga colónia não tinha mudado. Essa sessão plenária foi presidida por Fernando Grande-Marlaska, que era então um dos seus juízes e que é actualmente Ministro do Interior e um dos membros do governo mais complacente com Marrocos, a julgar pelas suas declarações.
A mentalidade fechada de Sánchez foi tão longe que na negociação do acordo de governo com Sumar não há qualquer referência ao Sahara [Ocidental]. Nem sequer são incluídos alguns parágrafos das resoluções do Conselho de Segurança enquanto a Ucrânia e a Palestina são mencionadas em alguns. Além disso, o documento acordado apela ao reconhecimento do Estado da Palestina.
A rendição a Marrocos não se limita ao Sahara [Ocidental]. Há muitos outros exemplos. Talvez um dos mais chocantes tenha sido o voto dos eurodeputados socialistas espanhóis contra uma resolução do Parlamento Europeu que instava as autoridades marroquinas a libertar três jornalistas influentes. Apenas os socialistas espanhóis e a extrema-direita francesa se opuseram à resolução, que foi aprovada, a 19 de Janeiro, por maioria esmagadora.
A explicação para esta dualidade de critérios é Marrocos; é a determinação de manter a todo o custo uma relação cordial com um vizinho que pode sufocar ainda mais Ceuta e Melilla – as alfândegas comerciais anunciadas por Sánchez há quase 20 meses não foram ainda abertas – e que recorre à imigração e à cooperação antiterrorista como instrumentos de pressão sobre Espanha.
Quando, há alguns meses, José Manuel Albares elogiou a diminuição da imigração graças aos acordos com Rabat, estava, na realidade, a reconhecer que só quando o Governo espanhol agrada ao seu vizinho é que este faz um esforço para travar a chegada de imigrantes sem documentos.
Há anos que os ”thinks-tanks” e os especialistas em imigração de toda a Europa apontam o dedo a Marrocos como um país que recorre à arma da migração. O último a analisar em profundidade as acções de Marrocos é o investigador italiano Costantino Pistilli, que acaba de publicar um livro intitulado El gran chantaje. La apertura de fronteras como instrumento de presión política. El caso Marruecos-España (Paesi Edizioni, Roma 2023). Nele, demonstra que a imigração irregular não é apenas um problema humanitário, mas responde também a estratégias políticas dos países de origem.»


 


domingo, 3 de dezembro de 2023

TESH SIDI: «NÃO DESISTIREMOS!»

(Boletim nº 127 - Dezembro 2023)

Tesh Sidi, a nova deputada de origem saharaui no Parlamento de Espanha, fez uma reflexão sobre o acordo de governação agora celebrado no qual não consta o problema da descolonização do Sahara Ocidental. Mas, como ela nos lembra, esta derrota não nos deve levar à desistência. É essa reflexão que aqui partilhamos.

«Não nos perdoariam sermos cobardes»
«Há poucas semanas foi assinado o acordo entre o Partido Socialista [PSOE] e o Sumar, e a alegria de muitos reflectiu-se nas redes sociais. Finalmente há um acordo entre formações progressistas! Mas, ao mesmo tempo, também foram tecidas duras críticas a todas as ausências temáticas do documento, por muitas e muitos que tinham o texto já pronto para ser anunciado. E depois muitas pessoas escreveram-me nas redes sociais.
Como sempre, e como é meu hábito, respondo a todas as mensagens e tento ser pedagógica, porque é a minha forma de fazer política; mas não podia negar a dor que sentia, a impotência e a raiva que muitas e muitos outros sentiram nesse dia. No meu caso, porém, o processo de incerteza de mais de três meses chegava ao fim. As cartas estavam na mesa e, por mais que as minhas cartas fossem importantes para mim, não eram uma linha vermelha para os outros 349 membros da Câmara de Deputados.
Isto pode parecer lógico para muitos e muitas que estão profundamente envolvidos na política nacional, para os quais esta é uma agenda prioritária; mas foi complexo para uma nova deputada, com pouca experiência parlamentar e muitas representatividades que são transversais à sua pessoa. No acordo não havia uma única menção ao Sahara Ocidental, nem uma única menção a medidas tão importantes como a iniciativa RegularizaciónYa.
Costuma dizer-se que um acordo é uma série de pontos sobre os quais as partes chegam a um consenso e que tudo o que não está incluído se deve ao facto de o não ter conseguido alcançar. É assim que os especialistas políticos o consideram, mas é algo muito complexo para transmitir a um eleitorado que te vê como uma referência na sua própria luta. É complexo para uma saharaui integrar um governo em que uma das suas partes nega a existência do seu povo e procura agradar ao ocupante. É complexo para uma saharaui não se sentir impotente quando o seu povo resiste há mais de 50 anos. É complexo para uma saharaui que criticou tão duramente Pedro Sánchez fora da instituição. É complexo para uma migrante que sofreu tanto racismo institucional e tanta violência burocrática: 24 anos para obter a cidadania, viver num limbo jurídico desde que nasci porque Espanha não reconhece a minha origem...É complexo sentir que se carregam tantas lutas às costas e que não se consegue alcançar o que nos é exigido do exterior.
É então que surge a segunda voz dentro de nós, a que é pragmática, de cabeça fria, capaz de contar até dez e procurar uma solução; a que é capaz de aguentar a pressão, mesmo que por vezes seja injusta. Esta foi talvez a melhor coisa que aprendi enquanto engenheira, até há poucos meses. Como diz sempre o meu irmão, "Roma e Pavia não se fizeram num dia". Talvez os episódios stressantes - como o encerramento de bancos – passem a ocupar o meu dia a dia e ser activista e política seja mais complexo do que pensava.
Talvez quando aceitei fazer parte de uma lista eleitoral não soubesse quantas contradições e sacrifícios temos de fazer quando institucionalizamos o nosso activismo, mas agora pergunto-me se tinha escolha em não ser política. A verdade é que continuo a pensar que não, que não tinha escolha. Que nós, que acreditamos firmemente na transformação da instituição através da ocupação de espaços como única forma de mudar as coisas, temos de assumir o desafio de entrar e resistir; que, como mulheres e migrantes, este espaço também é nosso e ocupá-lo é um acto de responsabilidade e um exemplo para as gerações futuras, que não nos perdoariam por começarmos sempre de novo; não nos perdoariam por sermos cobardes e não ousarmos.
Nesse dia recebi mensagens de vários compatriotas - na sua maioria homens - e uma delas levou-me a uma reflexão profunda sobre a complexidade de fazer política. A mensagem dizia: "Vota NÃO a Sánchez e terás o respeito do teu povo e estarás na capa dos livros de história", ao que respondi: "As mulheres não estão habituadas a estar na capa dos livros de história". Mesmo que doa, sabemos que é verdade. Entendemos o feminismo como um movimento político transformador, capaz de construir políticas de paz e de respeito pela existência. Depois, cada uma de nós tentou dar-lhe um nome, mas, no fim de contas, o mais importante para mim é poder dizer que a minha luta, acima de tudo, é feminista. Porque o que nós mulheres sofremos na política, no activismo e nos espaços de poder é apenas uma demonstração clara de como é necessário ocuparmos espaços para educar as nossas filhas e filhos para um futuro mais justo e coerente.
Outras mensagens que recebi tinham a frase típica: "Foste usada, apesar de saber que és uma pessoa fantástica". Reduzir todo o meu trabalho a essa frase sempre me pareceu desrespeitoso, com um certo tom colonial - para não falar da condescendência patriarcal para com uma jovem mulher que é tratada como uma criança inocente. Compreendo que esta leitura vitimizadora é uma forma de me perdoar e justificar a minha presença na instituição, porque é mais complexo compreender que sou capaz de conduzir processos de negociação interna para mudar a vida dos cidadãos, porque muitos ainda não aceitam que nós, migrantes, também damos um murro na mesa quando é necessário. Estamos perfeitamente conscientes da facilidade com que as nossas vozes são abafadas; é por isso que sabemos que precisamos de mais pessoas como nós no interior para fazer da nossa agenda uma linha vermelha.
A verdade é que as negociações de um acordo de governo entre formações como Sumar e PSOE, com algumas linhas ideológicas semelhantes e outras totalmente diferentes, são um processo complexo. A referência ao Sahara Ocidental ou a muitas medidas migratórias estiveram no documento desde o início, mas não conseguimos que fossem incluídas no acordo final. No entanto, devo deixar claro que não desistimos da questão do Sahara ou das questões migratórias.
Hoje, dias após a apresentação desse acordo que nos deixou com um "amargo de boca", acordámos um conjunto de medidas que facilitarão a vida da população saharauí, dando-nos um impulso para reforçar aquela sociedade civil e o movimento de solidariedade em prol do Sahara Ocidental, tendo sempre como objectivo a descolonização do território. Isto pode parecer letra morta para um povo que o Estado espanhol abandonou nos últimos 50 anos e a quem já foram feitas tantas promessas; é por isso que não me atrevo a fazê-las. Porque sei que, tal como eu, todo o povo saharauí construiu uma carapaça para continuar a resistir e é por isso que temos de interiorizar que estar na instituição pode também tornar-se uma outra forma de resistência.
Estou certa de que, durante esta legislatura, seremos capazes de realizar grandes mudanças sociais para a nossa cidadania. Não só teremos travado a direita e a extrema-direita, com as suas políticas neoliberais, como estou certa de que este barco, que zarpou a 23 de Julho, pode fazer uma legislatura longa e estável. É isso o que devemos à cidadania e, por conseguinte, não podemos permitir-nos a irresponsabilidade de repetir as eleições.
Orgulho-me do trabalho invisível que constrói a confiança e, hoje, entro pela porta do Congresso dos Deputados com a intenção de votar Sim à investidura, consciente do que isso significa. Mas, neste imenso palácio repleto de história, o empenho de muitos e muitas na causa dos migrantes e dos saharauis faz-me sentir que não estou sozinha. O que hoje parece ser um ponto final parágrafo, garanto-vos que é apenas um ponto e vírgula: um passo intermédio até à autodeterminação do povo saharaui.
Chego ao hemiciclo. Sento-me no meu lugar. Respiro fundo. Já estou cá dentro. E, em breve, seremos muitas mais.»


 

sábado, 4 de novembro de 2023

SAHARA OCIDENTAL, PALESTINA: «RESISTIR A UM EXÉRCITO DE OCUPAÇÃO É UM DIREITO RECONHECIDO ...»

 (Boletim nº 126, Novembro 2023)


Do rio que tudo arrasta se diz que é violento.
Mas ninguém diz violentas
As margens que o comprimem.

Bertolt Brecht (1)

Não nos parece que seja hoje possível falar do processo de descolonização do Sahara Ocidental sem incluir o papel que o Estado de Israel tem vindo a desempenhar nele. Não é de agora, mas os EUA, com a administração Trump, tornaram isso claro. E este papel abarca preferencialmente o campo militar e da segurança. Isto é, Israel é um agente activo na guerra entre o regime colonial marroquino e o movimento de libertação saharaui.
Suleiman M. Pema, membro do Movimento Nigeriano para a Libertação do Sahara Ocidental (NMLWS), num artigo publicado em The Guardian, estabeleceu um paralelo entre as situações vividas nos dois territórios:
«Tanto a ocupação da Palestina por Israel como a ocupação do Sahara Ocidental por Marrocos partilham algumas características comuns.
«Ambas estão enraizadas no colonialismo e no nacionalismo, uma vez que Israel e Marrocos reivindicam laços históricos e religiosos com as terras que ocupam.
«Ambas são sustentadas pela força militar e pela violência, uma vez que Israel e Marrocos usam os seus poderosos exércitos para suprimir qualquer resistência ou dissidência das populações ocupadas.
«Ambas são desafiadas por movimentos populares de libertação e independência, uma vez que palestinianos e saharauis formaram organizações políticas e grupos armados para lutar pelos seus direitos.
«Ambas enfrentam a oposição do direito e da legitimidade internacionais, uma vez que Israel e Marrocos violaram numerosas resoluções e tratados da ONU que afirmam o direito à autodeterminação de palestinianos e saharauis.
«Ambas são apoiadas por aliados externos, especialmente os Estados Unidos, que lhes têm fornecido apoio diplomático, ajuda económica e assistência militar.»
E conclui:
«A ocupação da Palestina por Israel e a ocupação do Sahara Ocidental por Marrocos são dois exemplos de conflitos em curso que têm causado imenso sofrimento e injustiça a milhões de pessoas. Ambos os casos exigem uma acção urgente e eficaz por parte da comunidade internacional para defender o Estado de direito e os direitos humanos, e para apoiar as legítimas aspirações dos palestinianos e saharauis à liberdade e à dignidade.
«Israel e Marrocos violaram consistentemente as leis internacionais sem qualquer receio de sanções, uma vez que têm o apoio dos EUA, França e Reino Unido no Conselho de Segurança da ONU.»
Carmen Parejo Rendón, directora da revista digital La Comuna, chama a atenção para o papel desempenhado pelos EUA e seus aliados europeus na situação que se vive no norte de África e Médio Oriente, nomeadamente aquando da invasão do Sahara Ocidental por Marrocos:
«Henry Kissinger, secretário de Estado dos EUA (1973-1977), observou mais tarde: "Percebendo que os nossos interesses seriam mais bem servidos por uma divisão marroquino-mauritana do Sahara do que pela sua independência sob influência argelina, a posição dos EUA foi de neutralidade pública e de apoio privado, ainda que limitado, a Marrocos". (…).
«A verdade é que as lutas, quer do povo palestiniano, quer do povo saharauí, se inserem em processos de descolonização frustrados pelos interesses de potências estrangeiras, e ainda hoje vemos como este cenário continua a servir o propósito de desestabilizar regiões inteiras, num contexto em que os EUA declararam uma guerra total ao mundo pela sua crescente perda de hegemonia.
«As potências ocidentais, antigas potências coloniais em muitos casos, como a França, a Grã-Bretanha e mesmo a Espanha, que partilham interesses com os Estados Unidos, querem manter o actual estado de coisas, pois foi isso que lhes permitiu a sua posição hegemónica. Acumulação à custa da espoliação económica, cultural e política do resto dos povos do mundo.»

CONSTRUIR PONTES

Mas apesar da partilha desta base histórica e social, as relações entre os movimentos de libertação dos dois povos não têm sido fáceis. A dependência política e financeira dos movimentos palestinianos face aos regimes árabes autoritários, aliados de Marrocos, condiciona-os a não pôr em causa o regime de Rabat, como nos recorda Mah Iahdih Nan:
«O povo saharaui nunca sentiu essa empatia e solidariedade por parte dos dirigentes palestinianos, salvo em casos excepcionais como o da organização Frente Popular de Libertação da Palestina do dirigente histórico George Habach, falecido em 2008.
«Na melhor das hipóteses, fazem um jogo de diversão para não se molharem e, na pior, defendem claramente a ocupação, os abusos e os assassínios cometidos pela autocracia marroquina, como fazem alguns representantes da Autoridade Palestiniana. (…).»
Isto não impediu a Frente POLISARIO de lançar «o seu apelo aos povos livres do mundo para que se solidarizem com o povo palestiniano e apelem à comunidade internacional e à consciência mundial para que ponham termo à terrível violação dos direitos humanos na Palestina ocupada.»
Marrocos, Outubro 2023
A aliança Marrocos-Israel e a guerra no médio-oriente provocaram um claro abalo na sociedade marroquina, bem visível nas manifestações que atravessaram o país.
Segundo Ignacio Cembrero:
«Aos olhos de Israel, o reino alauita não é um país árabe qualquer. Pouco mais de 10% da população de Israel é de origem marroquina. (…).
«Estes laços estreitos com Israel colocam actualmente as autoridades marroquinas numa posição difícil. (…).
«Alguns partidos políticos marroquinos saíram da sua letargia em defesa dos palestinianos. O Partido do Progresso e do Socialismo, herdeiro diluído do partido comunista, fê-lo, responsabilizando a "entidade sionista" pela escalada militar. O mesmo aconteceu, em termos mais ponderados, com a União das Forças Populares Socialistas, membro da Internacional Socialista.
«Os mais contundentes foram os islamistas do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (PJD), um partido enfraquecido eleitoralmente em 2021, mas ainda com apoio popular. O seu dirigente, Abdelillah Benkiran, exprimiu a 7 de Outubro o seu "grande orgulho pela evolução da situação na Palestina", ou seja, pelo ataque do Hamas. O seu partido descreveu-o como "uma operação heróica".
«David Govrin, que dirige a missão diplomática israelita em Rabat – que ainda não tem o estatuto de embaixada – emitiu uma longa declaração explicando aos marroquinos que "o Hamas é totalmente responsável pelo ataque criminoso". Em 48 horas, a direcção do PJD reagiu de novo e, desta vez, exigiu que as autoridades marroquinas o "declarassem persona non grata". (…).
«Um membro da família real, Moulay Hicham, descrito como o "príncipe rebelde" e residente nos EUA, demarcou-se da posição oficial marroquina. "Resistir a um exército de ocupação é um direito reconhecido, mas matar e raptar pessoas inocentes, independentemente da sua nacionalidade, é (...) moralmente condenável", escreveu em várias redes sociais. As suas palavras, que recordam o "direito de resistência", tiveram grande eco em Marrocos.»
A France-Presse descreve assim a manifestação de 15 de Outubro em Rabat:
«Multidões que se estendiam por dois quilómetros percorreram a capital Rabat na manifestação de massas convocada por uma aliança de partidos islamistas e uma coligação de esquerda. (…).
«"Abaixo o sionismo", diziam alguns cartazes, enquanto outros declaravam que "o Hamas é a Palestina".
«Alguns manifestantes pisaram bandeiras israelitas e americanas, denunciando o apoio de Washington a Israel. Outros cartazes denunciavam "o terrorismo independentemente dos seus autores".
«O protesto, que foi pontuado por orações contra "a tirania e a opressão", foi o maior em Marrocos desde que foram normalizadas as relações com Israel em Dezembro de 2020, num acordo patrocinado pelos EUA.»

 (1) «Da violência», in Poemas, tradução Arnaldo Saraiva, Editorial Presença, p. 71.

 

A ONU ÀS VOLTAS DO SAHARA OCIDENTAL: «O QUE É URGENTEMENTE NECESSÁRIO»

(Boletim nº 126 - Novembro 2023)

Em Outubro as Nações Unidas dedicam uma particular atenção ao processo de descolonização do Sahara Ocidental. E mais uma vez sem conseguir encontrar o caminho para a solução há muito definida e contra a qual alguns se opõem.

Há que responsabilizar Marrocos

Nos princípios do mês decorreram os trabalhos da 4ª Comissão das Nações Unidas, vulgarmente designada de Comissão de Descolonização. A questão do Sahara Ocidental ocupou três dias dos debates, com mais de 160 peticionários.
Um deles foi José Manuel Pureza, professor universitário e ex-deputado pelo Bloco de Esquerda em várias legislaturas. Traçou um paralelismo entre o processo de descolonização de Timor-Leste, que ele conheceu e acompanhou de perto durante muitos anos, e o do Sahara Ocidental.
«Nesta breve declaração, gostaria de sublinhar três semelhanças cruciais entre os casos do Sahara Ocidental e de Timor-Leste que me parecem da maior relevância para o nosso debate aqui.
«A primeira é a da corajosa resistência de ambos os povos contra a ocupação e em defesa da sua identidade histórica e política, nomeadamente quando o ocupante tentou e tenta seduzir o povo com promessas de desenvolvimento. Essa resistência popular teve e tem o seu argumento mais forte na exigência do cumprimento do direito internacional. Em ambos os casos, as Nações Unidas condenaram a ocupação como uma violação do direito internacional. Esta centralidade do direito internacional como critério decisivo para avaliar a realidade dos dois povos trouxe para o primeiro plano dos dois processos não só a ocupação mas também as grosseiras violações quotidianas dos direitos humanos e do princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais.
«A segunda semelhança é que, em ambos os casos, os ocupantes tentaram impedir a realização do referendo, opondo-lhe aquilo a que chamavam planos de autonomia especial para os dois territórios. Contra isso, as Nações Unidas não deixaram de assumir a sua responsabilidade no caso de Timor-Leste e organizaram o referendo, algo que, até agora, não aconteceu no Sahara Ocidental, devido ao boicote permanente do ocupante e ao défice de pressão política dos actores internacionais relevantes.
«Finalmente, a terceira semelhança. O rescaldo da autodeterminação de Timor-Leste inaugurou um clima de cooperação e de relações pacíficas entre o então novo Estado independente e a Indonésia. A mesma atitude já foi assegurada pela Frente POLISARIO no que respeita às relações entre o Sahara Ocidental auto-determinado e todos os países vizinhos. É a não concretização do direito fundamental à autodeterminação que cria uma condição de instabilidade e insegurança que afecta toda a região.»
Na mesma altura António Guterres apresentou ao Conselho de Segurança (CSONU) o relatório a que está obrigado pela Resolução 2654 (2022).
Apesar de abrir com um alerta – «A situação no Sahara Ocidental continuou a caracterizar-se por tensões e hostilidades de baixa intensidade entre Marrocos e a Frente Popular para a Libertação de Saguía el-Hamra y Rio de Oro (Frente POLISARIO). A situação actual colocou desafios significativos às operações da MINURSO, em particular à sua logística e reabastecimento» – o relatório reduz-se a uma leitura administrativa de um conjunto diversificado de ocorrências com, na verdade, significado político.
O documento inventaria os acontecimentos que o SG considerou relevantes durante o período abrangido pelo mesmo (Outubro 2022 a Outubro 2023). Vários parágrafos são dedicados à visita de Staffan de Mistura ao território do Sahara Ocidental ocupado por Marrocos, onde foi confrontado com a situação dos direitos humanos no território. «Vários interlocutores da sociedade civil, de forma transversal, apelaram às Nações Unidas para que fizessem mais para promover os direitos humanos, para prestar protecção e a controlar e investigar alegadas violações e abusos. Surgiram alegações de que vários activistas que se opõem às políticas de Marrocos foram detidos durante a estada do meu Enviado Pessoal no Sahara Ocidental.»
E relembra que «O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) não pôde efectuar qualquer visita ao Sahara Ocidental pelo oitavo ano consecutivo, apesar dos múltiplos pedidos e do Conselho de Segurança, na sua resolução 2654 (2022), ter apelado a uma cooperação reforçada, nomeadamente facilitando visitas.»
Numa carta ao SGONU de 16 de Outubro, o Secretário-geral da Frente POLISARIO, Brahim Ghali, analisa criticamente o relatório de António Guterres.
«Este é o terceiro relatório publicado desde a comprovada violação do cessar-fogo de 1991 pelo Estado ocupante de Marrocos. Mais uma vez, o Secretariado das Nações Unidas absteve-se, lamentavelmente, de dizer a verdade e de responsabilizar o Estado ocupante pelas consequências do seu acto. A Frente POLISARIO, mais uma vez, lamenta profundamente este silêncio injustificável que equivale a uma condescendência com a impunidade. (…).
«Além disso, o relatório volta a não identificar o Estado ocupante de Marrocos como o único responsável pelos ataques aéreos e outros ataques criminosos contra civis e outros, e fica-se com uma série de ataques aéreos "anónimos" que simplesmente aconteceram.
«A Frente POLISARIO sublinha uma vez mais que o ataque deliberado a civis e a objectos civis constitui um crime de guerra em conformidade com o Estatuto do Tribunal Penal Internacional. (…). O Estado ocupante de Marrocos deve ser responsabilizado pelos seus contínuos crimes de guerra no Sahara Ocidental. (…).
«A imparcialidade da MINURSO reside no respeito estrito dos objectivos do seu mandato, mas não essa "imparcialidade" que iguala duas partes que não são originalmente iguais porque há um agressor claro, o Estado ocupante de Marrocos, e uma vítima, o povo saharaui. Por conseguinte, o enfraquecimento gradual da credibilidade e da imparcialidade da MINURSO e o seu desvio do seu mandato principal são totalmente inaceitáveis.»
Depois de saudar os encontros de De Mistura com alguns activistas dos direitos humanos e antigos presos políticos saharauis,
«a Frente POLISARIO reitera a sua forte condenação da situação "anómala" em que os enviados da ONU precisam de "obter o consentimento" do Estado ocupante de Marrocos para visitar o Sahara Ocidental ocupado que está sujeito a um processo de descolonização sob os auspícios das Nações Unidas. A este respeito, a Frente POLISARIO sublinha mais uma vez que o Enviado Pessoal deve ter acesso regular e sem restrições ao Território e insta o Conselho de Segurança a incluir um forte pedido nesse sentido na sua próxima resolução sobre a renovação do mandato da MINURSO.»
Sobre a recusa de Marrocos em facilitar as visitas do Alto-Comissariado para os DH (ACNUDH):
«Mais uma vez, o Estado ocupante de Marrocos não é considerado responsável por obstruir o trabalho dos organismos das Nações Unidas e por lhes negar repetidamente o acesso ao Território. É, pois, imperativo que, na sua próxima resolução sobre a renovação do mandato da MINURSO, o Conselho de Segurança exija que o ACNUDH tenha acesso total e sem restrições ao Sahara Ocidental ocupado. (…).»
«Exigimos uma MINURSO robusta e com plenos poderes não só para cumprir o seu mandato, mas também para funcionar como uma operação de paz moderna que monitoriza, protege e informa sobre os direitos humanos na sua área de responsabilidade, entre outras coisas. Face à deterioração da situação dos direitos humanos no Sahara Ocidental Ocupado, é inaceitável do ponto de vista ético e político que a MINURSO continue a ser uma excepção, numa altura em que a promoção e a protecção dos direitos humanos se tornam uma prioridade em todas as operações de paz das Nações Unidas. (…).»
«No entanto, como temos reiterado em várias ocasiões, ninguém deve ter ilusões de que um processo de paz genuíno e credível possa começar e avançar no Sahara Ocidental sem acabar com a impunidade com que o Estado ocupante de Marrocos tem sido autorizado a obstruir o referendo de autodeterminação, que é o mandato central da MINURSO, e, eventualmente, violar o cessar-fogo de 1991 e mergulhar a região em mais uma espiral de violência e instabilidade.»
No dia 20 os EUA apresentaram aos membros do CSONU uma proposta de Resolução para discussão. Segundo a ONU,
«Moçambique e a Rússia propuseram posteriormente algumas alterações. (…). A Rússia (...) argumentou que o projecto de texto era desequilibrado e não incorporava as alterações que tinha proposto. (…).»
«Durante a única ronda de negociações, parece que vários membros do Conselho – incluindo a França, o Gabão e os Emiratos Árabes Unidos (EAU) – apoiaram a abordagem do relator e apelaram à manutenção do projecto de resolução tal como está. Moçambique e a Rússia, no entanto, aparentemente consideraram o projecto de texto desequilibrado e propuseram várias revisões.
«Uma das suas principais preocupações era que o projecto de resolução distinguisse mais claramente Marrocos e a Frente POLISARIO dos países vizinhos em causa, nomeadamente a Argélia e a Mauritânia. Parece que tanto Moçambique como a Rússia também propuseram acrescentar uma nova redacção que sublinha a necessidade de permitir ao povo saharaui exercer o direito à autodeterminação através da organização de um referendo. A Rússia terá também proposto uma redacção que apela à MINURSO para que cumpra integralmente o seu mandato de realizar um referendo. A Rússia parece ter mantido a sua preocupação, que já havia manifestado em anos anteriores, sobre a diluição das referências nas resoluções da MINURSO ao referendo e à autodeterminação do povo do Sahara Ocidental. (…).
«Parece que Moçambique propôs uma nova redacção sublinhando a necessidade urgente de incluir no mandato da MINURSO uma componente de monitorização dos direitos humanos para um acompanhamento rigoroso da situação dos direitos humanos no território do Sahara Ocidental. (…).»
No dia 30 foi aprovada pelos 15 membros do CSONU – com duas abstenções, de Moçambique e da Rússia – a Resolução 2703 (2023) prorrogando o mandato da MINURSO por mais um ano (até 31 de Outubro de 2024). Nenhuma das alterações sugeridas foi aceite.
Dias depois a Frente POLISARIO divulgou um comunicado onde esclarece a sua posição sobre este documento das Nações Unidas.
«O Conselho de Segurança perdeu mais uma oportunidade de adoptar medidas concretas que permitam à MINURSO cumprir plenamente o seu mandato, tal como estabelecido na Resolução 690 (1991) do Conselho de Segurança. O Conselho de Segurança também não abordou de forma decisiva as prolongadas restrições impostas pelo Estado ocupante de Marrocos à MINURSO que comprometem seriamente o carácter internacional, a credibilidade e a imparcialidade da Missão.
«A Frente POLISARIO não pode deixar de manifestar, uma vez mais, o seu repúdio pelo persistente silêncio do Conselho de Segurança, em particular de alguns membros influentes, sobre as graves consequências da violação do cessar-fogo de 1991 pelo Estado ocupante de Marrocos, que põem em causa não só as perspectivas de relançamento do processo de paz, mas também a paz, a segurança e a estabilidade em toda a região. (…).
«A este respeito, a Frente POLISARIO reafirma que o plano de resolução das Nações Unidas/Organização da Unidade Africana continua a ser o único acordo mutuamente aceite pelas duas partes, a Frente POLISARIO e Marrocos, e aprovado por unanimidade pelo Conselho de Segurança nas suas resoluções 658 (1990) e 690 (1991), através das quais o Conselho instituiu, sob a sua autoridade, a MINURSO para realizar um referendo livre e justo, sem constrangimentos militares ou administrativos, a fim de permitir ao povo do Sahara Ocidental exercer o seu direito inalienável à autodeterminação e à independência.
«O quadro jurídico internacional para uma solução pacífica e duradoura para a descolonização do Sahara Ocidental foi claramente definido pelos órgãos competentes da ONU e aceite pelas duas partes que se comprometeram formalmente com ele perante a comunidade internacional. Não vale a pena, portanto, tentar justificar uma inacção e uma complacência injustificáveis procurando novas "fórmulas" fora desse quadro, porque o que está em jogo é muito importante, incluindo a paz e a segurança em toda a região.
«O que é urgentemente necessário neste momento crítico é acabar com a impunidade e responsabilizar a parte que tem estado a obstruir o processo de paz e tomar medidas concretas para permitir que a MINURSO cumpra plenamente o seu mandato. Este é o único caminho viável que conduz à consecução de uma paz justa e duradoura e ao restabelecimento da segurança e da estabilidade na nossa região.»

 


 


quarta-feira, 4 de outubro de 2023

ONU: A DIPLOMACIA EM ACÇÃO

(Boletim nº 125 - Outubro 2023)

Numa visita mantida em segredo pelas Nações Unidas (imposição marroquina!), o Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU, Staffan de Mistura, conseguiu finalmente visitar no dia 4 de Setembro passado o território ocupado do Sahara Ocidental, no âmbito de um périplo regional de conversações.

Encontro em Nova Iorque
Nos últimos dois anos De Mistura efectuou várias visitas à região para consulta às partes interessadas, não tendo sido nunca autorizado por Marrocos a visitar o território ocupado. Antes de ir ao Sahara Ocidental, De Mistura esteve em Rabat e reuniu-se somente com o embaixador marroquino junto da ONU, Omar Hilale, sinal da frieza que reina entre as partes.
No dia 4, visitou El Aauin tendo as forças ocupantes de Marrocos reprimido uma manifestação pacífica organizada por associações saharauis de Direitos Humanos que exigiam o direito à autodeterminação e à independência. Um forte contingente militar foi mobilizado para isolar a cidade, tornando-a «literalmente sitiada para impedir qualquer manifestação», tendo os manifestantes sido espancados e insultados e perseguidos pelas artérias da cidade. Ficaram feridas 11 pessoas e não se apurou o número exacto de detidos. Estas ocorrências, certamente, não terão sido ignoradas por De Mistura e terão ajudado a tomar conhecimento in loco da repressão que se vive no território, bem como da situação respeitante aos presos políticos saharauis e aos militantes de Direitos Humanos.
O factor de mudança para a concretização desta visita foi certamente a pressão americana. Marrocos «foi obrigado e não teve outra escolha senão deixar De Mistura prosseguir a sua missão para fazer sair o conflito do impasse em que se encontra», segundo a agência EFE. Após, em 2020, Donald Trump ter reconhecido a soberania de Marrocos sobre o Sahara Ocidental em troca da normalização das relações israelo-marroquinas, a administração Biden voltou à posição tradicional americana, reiterada pelo Secretário de Estado Antony Blinken, de apoiar os esforços da ONU na procura de uma solução para o conflito.

Apoio americano a De Mistura

O apoio dos Estados Unidos a De Mistura visará criar um ambiente favorável ao relançamento do processo negocial pela ONU, a fim de retirá-lo do imobilismo em que se encontra. As Nações Unidas declararam que estão empenhadas em «fazer avançar de forma construtiva o processo político sobre o Sahara Ocidental», sublinhando que o Enviado Pessoal iria ter «reuniões com todas as partes interessadas antes da publicação do relatório do SG para o Conselho de Segurança (CS) em Outubro».
Neste sentido, Joshua Harris, Sub-secretário de Estado adjunto para o Norte de África, visitou, a 2 de Setembro, os acampamentos de refugiados saharauis em Tindouf (Argélia) onde manteve conversações com as autoridades saharauis, culminando com um encontro com o Secretário-geral da Frente POLISARIO, Brahim Ghali. Segundo o já citado jornal El Watan de 4 de Setembro, Harris afirmou que foi uma «oportunidade para ver em primeira mão a situação muito grave com que se confronta o povo do Sahara Ocidental», assegurando que o objectivo da sua visita era «transmitir a sinceridade do governo [dos EUA] no seu apoio ao processo político das Nações Unidas, visando uma solução digna para o Sahara Ocidental». De igual forma, Harris declarou o «apoio total» dos Estados Unidos aos esforços de De Mistura, sublinhando ao mesmo tempo a «necessidade urgente de acção».
Brahim Ghali transmitiu ao interlocutor norte-americano que o apoio real e prático aos esforços do Enviado Pessoal se materializaria através da criação de «condições necessárias para que a Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO) possa implementar a missão que lhe foi atribuída pelo CS, de acordo com o Plano de Resolução da ONU e da OUA [agora União Africana] de 1991». O dirigente saharaui afirmou ainda que o seu povo não é a favor da guerra, mas que permanece firmemente comprometido com os seus direitos inalienáveis e com as suas aspirações nacionais inegociáveis de liberdade e independência. Defendê-las-à a qualquer preço, utilizando todos os meios legítimos garantidos pela Carta das Nações Unidas e pela Lei Constitutiva da União Africana (UA).
No dia seguinte, Harris reuniu-se em Argel com o seu homólogo do Ministério dos Negócios Estrangeiros argelino, sem que se tenha tornado pública informação deste encontro.
Após passar por Tindouf e Argel, o Sub-secretário de Estado viajou até Rabat, onde se encontrou com as autoridades locais. A embaixada americana em Rabat emitiu então um comunicado afirmando que Washington considera o plano de autonomia «como uma via possível para satisfazer as aspirações do povo do Sahara Ocidental». Por outras palavras, tornou público que é um plano possível mas não a única opção em cima da mesa.

Brahim Ghali em Nova Iorque

Posteriormente, a 11 de Setembro, nas Nações Unidas, ocorreram conversações envolvendo António Guterres, De Mistura e Brahim Ghali. Neste encontro, Ghali aproveitou para recordar as circunstâncias que levaram à aprovação pelas duas partes no conflito (a Frente POLISARIO e Marrocos) do Plano de Resolução da ONU e da OUA de 1991, que o CS aprovou por unanimidade, com o objectivo de permitir ao povo saharaui exercer o seu direito à autodeterminação e independência, à semelhança de todos os povos e países colonizados.
Depois de se referir aos obstáculos criados pelo Estado ocupante para impedir a realização de um referendo de autodeterminação, o Secretário-geral da FPOLISARIO relevou a rejeição saharaui relativamente ao silêncio da ONU sobre as práticas desenvolvidas por Marrocos no território ocupado, sob o olhar da MINURSO. Também apelou ao SG da ONU e ao CS para que responsabilizem Marrocos pela violação do cessar-fogo de 13 de Novembro de 2020, numa escalada perigosa que mina os esforços das Nações Unidas, ameaçando a segurança e a estabilidade da região.
Ghali sublinhou ainda que o povo saharaui tem feito múltiplas concessões para que o processo de paz possa avançar de forma a alcançar o seu direito inalienável, inegociável e imprescritível ao exercício da autodeterminação e independência, recordando neste contexto o compromisso da parte saharaui de cooperar com os esforços do SG e do seu Enviado Pessoal para o Sahara Ocidental.
Este encontro afectou visivelmente o regime de Rabat, como foi visível no comportamento da sua diplomacia. Para mostrar a sua “desvalorização” da função das Nações Unidas, Marrocos fez-se representar na sua 78ª Assembleia Geral ao nível mais baixo, entregando essa responsabilidade ao seu embaixador junto da ONU, Omar Hilale. Que se inscreveu como o último da lista de oradores que subiram à tribuna para proferir o discurso oficial do seu país.

A Argélia também intervém

Entretanto a 9 de Agosto passado, em Washington, Blinken, em reunião com o Ministro dos Negócios Estrangeiros argelino, Ahmed Attaf, assegurou o apoio dos Estados Unidos aos esforços da ONU para o Sahara Ocidental, declaração que releva a importância que os EUA conferem à posição argelina neste dossier, bem como à grande importância geo-estratégica da Argélia no Norte de África, tão afectado por eventos de instabilidade.
A 13 de Setembro, Ahmed Attaf recebeu De Mistura em Argel, para mais uma visita de trabalho, no âmbito do périplo que o Enviado Pessoal do SG efectuou na região. De Mistura deslocou-se depois à Mauritânia onde se reuniu com o Presidente Mohamed Ghazouani, país observador neste processo conduzido pela ONU.
Após esta ronda de conversações, espera-se que os esforços dos vários intervenientes conduzam finalmente a uma solução justa e duradoura para este conflito, a qual, em conformidade com o Direito Internacional, responda às aspirações do povo saharaui.

terça-feira, 3 de outubro de 2023

MARROCOS: «A TERRA TREME»

(Boletim nº 125 - Outubro 2023)

A África ocidental está a passar por uma onda de tensões e conflitos que penalizam as suas populações. Crispações internas agravadas pela crise sistémica que estamos a viver. Marrocos, numa situação particular - enfrenta uma guerra e a luta diplomática contra a ocupação do Sahara Ocidental - também não escapa a este desafio.

Tempos que já lá vão (Jun. 2017) ...
A começar pelos abalos por que estão a passar os países herdeiros do colonialismo francês que tem vindo a ser posto em causa pela vaga de golpes de Estado militar que varreram nos últimos tempos as antigas colónias francesas em África : «71% dos países africanos onde ocorreram os 67 golpes militares das últimas décadas são antigas colónias francesas.».
O Presidente Macron reconheceu que o colonialismo foi um erro profundo. Na conferência de imprensa, ao lado do Presidente da Costa do Marfim, «o chefe de Estado francês disse que "demasiadas vezes", a França é percebida como tendo "um olhar de hegemonia" e de "colonialismo ridículo", que foi um erro profundo, uma "falta da República" francesa.»
Como salientou Jorge Saponaro,
«O golpe de Estado de finais de Agosto de 2023 [no Gabão] deixou claro que a sociedade exige uma mudança, tendo em conta a corrupção que atingiu níveis extremos. Possivelmente, os interesses ligados à França e, sobretudo, às empresas que operam em sectores-chave ligados à exploração mineira, fecharam os olhos e viram o golpe como um mal menor, para evitar que o Gabão seguisse o caminho de outros países que decidiram abandonar os seus laços com o Ocidente.»
Estas disrupções militares estão a ter repercussões em toda a região da África ocidental e Marrocos não lhes escapa, sinal de uma crescente interdependência dos países que a constituem. Como nota Ignacio Cembrero,
«O derrube de Ali Bongo [presidente do Gabão] é também um revés para Marrocos, cujo rei Mohammed VI mantinha uma relação estreita com o presidente gabonês. Este último sofreu um acidente cardiovascular e optou por passar grande parte da sua convalescença em Rabat, em 2018. "O rei é meu irmão, nosso irmão, porque era muito dedicado a mim", recordou Bongo em Abril. Foi a única personalidade estrangeira que conseguiu encontrar-se com o monarca alauíta nos últimos 32 meses. O soberano tem também uma residência em Pointe-Denis, muito perto de Libreville, onde passa frequentemente longas férias. Em Rabat, especula-se que o antigo presidente poderá exilar-se em Marrocos.
No entanto, o novo homem forte do Gabão não parece constituir uma ameaça para os investimentos marroquinos no país, estimados em pelo menos 600 milhões de euros, sobretudo no sector bancário, que se aproximam dos investimentos franceses (750 milhões de euros), centrados no sector petrolífero. O general Oligui Nguema [que preside ao governo de transição] estudou na Academia Militar Real de Méknes [Marrocos] e anos mais tarde regressou a Marrocos como adido militar na embaixada do seu país.»
Frédéric Lejeal, no semanário Le Point, escreve : a França «paga as consequências de 70 anos de intervencionismo em África, de ingerência política, por vezes para instalar ou preservar regimes autocráticos de acordo com os seus interesses.»

Férias estragadas

As férias de Mohamed VI têm sido passadas sobretudo em França e no Gabão. Mas segundo alguns jornalistas, a relação do general Oligui Nguema com o rei marroquino não é tão amistosa como a do deposto Ali Bongo. Lembram ainda que no ano passado, durante os seus quatro meses de estada em França, ele nunca foi recebido por Macron, o que é interpretado como resultado do mal-estar entre os dois governos devido à espionagem pelos serviços secretos de Rabat dos telemóveis do Presidente francês e dos seus ministros pelo programa israelita Pegasus. Lembram também que desde Janeiro que Marrocos não tem embaixador acreditado em Paris.
Estava, pois, o rei de férias em França quando no dia 8 de Setembro Marrocos foi abalado por um terramoto com epicentro em Ighil, a cerca de 60 kms a sudoeste de Marraquexe, com uma amplitude de 6,8 e que provocou milhares de mortos e de feridos e avultados prejuízos materiais.
O regime marroquino mostrou-se muito selectivo na ajuda e apoio internacional, só a tendo aceitado inicialmente de quatro Estados: Reino Unido, Espanha, Catar e Emiratos Árabes Unidos. O que levantou um coro de suposições sobre as razões de tal atitude.
Mas apesar das equipas de Espanha terem sido autorizadas a entregar ajuda e a prestar auxílio, a recepção que tiveram da parte das autoridades não foi aquela que esperavam. Segundo conta a jornalista Triana Abad,
«A ONGD [Organização Não-Governamental de Desenvolvimento] Equipos de Respuesta Inmediata en Catástrofes de Andalucía, que se deslocou a Marrocos nestes dias para colaborar com a ajuda humanitária que foi solicitada ao país após as consequências do terramoto, destaca o tratamento vexatório sofrido na fronteira de Tânger para passar com os veículos e poder descarregar as roupas e materiais que estão a ser doados à população.
De acordo com um dos membros da ONG, depois do trabalho efectuado e dos procedimentos burocráticos que foram levados a cabo para poder colaborar, tudo feito e gerido em conjunto com uma associação marroquina que solicitou a ajuda, a situação na fronteira não só foi caótica em termos de informação, como também, o tratamento demonstrado de forma depreciativa para com todos aqueles que estavam ali à espera de uma resposta para entrar no país, foi contínuo.
Mais de 2.000 quilos de roupa e tendas, para servir de tecto às famílias afectadas, acabaram por ser rejeitados após mais de sete horas de espera em Tânger por uma resposta que permitisse a passagem da fronteira, acabando com a consequente recusa dos responsáveis. Uma recusa que terminou com a devolução dos bens ao seu destino e com a frustração e indignação dos trabalhadores humanitários, que viram falhar a sua tentativa de ajudar as famílias. (…).
E não foram apenas os membros [desta associação] que deram o alerta para esta situação. (…). A recusa de introduzir os donativos no país é justificada com o facto de "se tratar de roupa usada". Aparentemente, as instruções dos funcionários fronteiriços para a deixar passar na fronteira são claras: a roupa deve ser nova e até ter etiquetas que o comprovem.»
Escreve Intissar Fakir, directora do Programa sobre o Norte de África e o Sahel no Middle East Institute:
«O terramoto (...) pôs em evidência dois dos problemas persistentes do país: a disparidade de desenvolvimento entre as zonas rurais e urbanas e o estrangulamento inerente a um poderoso e pesado processo de tomada de decisões. (…).
A subalternização das zonas empobrecidas e negligenciadas resulta de uma opção política mantida ao longo de décadas. Com ou sem razão, o governo marroquino optou por colocar a maior parte dos seus recursos em zonas e comunidades consideradas como as de maior retorno económico – nomeadamente, as zonas costeiras com grande concentração populacional. Assim, o desenvolvimento das infra-estruturas centrou-se na ligação dos núcleos de produção elevada a zonas que facilitam o acesso ao transporte marítimo e rodoviário, permitindo uma maior integração da indústria marroquina nas cadeias de valor globais ou regionais. O Alto Atlas está a um mundo de distância desta estratégia económica. (…).
Outra questão importante que já suscitou a ira local e uma crescente preocupação internacional foi o silêncio e a lentidão do governo na resposta ao terramoto. Para uma crise que exige uma acção rápida e decisiva, o governo foi apanhado de surpresa – uma consequência das características estruturais do sistema político marroquino. (...). Todos têm de se submeter ao rei e aguardar as suas directivas. Esta estrutura de poder fortemente centralizada não só está a criar um estrangulamento nos esforços de socorro e salvamento, como também é agravada pela tradição de um controlo apertado da imagem do rei e da família real. (…).»
Face às críticas de que foi alvo o comportamento das autoridades marroquinas — e particularmente do rei – o regime deu instruções ao seu corpo diplomático para que desenvolvesse acções no sentido de respaldar a sua imagem. Foi o caso de Espanha onde a embaixadora Karima Benyaich apareceu na comunicação social a garantir:
«apesar de estar fora do país, Mohamed VI esteve presente desde o primeiro momento e criou um fundo de solidariedade. "Foi o primeiro a oferecer 100 milhões de euros dos seus próprios fundos", acrescenta, ao mesmo tempo que é categórica perante as críticas ao monarca pela sua demora em chegar ao "ponto zero".
"Nestas circunstâncias, o mais importante é a acção, não a fotografia", defende Benyaich, que lamenta a informação que pode ter posto em causa a credibilidade da Coroa e a convivência dos marroquinos que vivem em Espanha.»
A embaixadora é filha de mãe espanhola, tendo renunciado provisoriamente a essa nacionalidade para poder assumir em 2018 as funções em Madrid.
E o embaixador de Marrocos em Lisboa seguiu-lhe as pisadas no dia seguinte, com uma entrevista ao Diário de Notícias, onde procurou enaltecer o papel do rei.
«No plano delineado com a ajuda de Mohamed VI, prosseguiu, tem de se ter em conta também as "especificidades locais", os "hábitos da cultura", e, acima de tudo os muitos órfãos deixados pela catástrofe.
"Há também o impulso de solidariedade, que vai continuar, porque há um sentimento que tem sido precisamente o de atender a todos e cuidar de órfãos. Sua Majestade Mohamed VI está atento a esses órfãos e este é um gesto simbólico muito forte", acrescentou.»
Atitude idêntica teve também o Sindicato Nacional da Imprensa de Marrocos, uma organização serventuária do regime, que «ficou particularmente irritada com a primeira página do semanário satírico Charlie Hebdo, que sublinhou a incoerência de enviar donativos para o reino presidido por uma das maiores fortunas do mundo. "Enviem os vossos donativos a Mohammed VI, um dos monarcas mais ricos do planeta, com 6 mil milhões de dólares", titulava o semanário, com uma ilustração da figura inflacionada do rei, coberto de notas e esmagando os seus súbditos.»
O "boneco" que irritou o Palácio
No Sahara Ocidental, igualmente atingido pelo sismo de forma moderada, o Governo saharaui, em comunicado emitido pelo Ministério da Informação da República Saharaui, exprimiu no dia 10 «ao fraterno povo marroquino, nestas difíceis circunstâncias, o seu apoio e as suas orações pelos milhares de vítimas do devastador terramoto.»
Mas nem os golpes militares nem o terramoto levaram o regime marroquino a rever a sua práxis. Segundo testemunho de Stéphane Aubouard, chefe de redacção da revista Marianne, no dia 20 de Setembro, «De manhã cedo, uma dúzia de agentes da polícia marroquina veio prender os nossos correspondentes especiais Quentin Müller e Thérèse Di Campo no seu hotel em Casablanca, antes de os enviar manu militari no primeiro avião para Paris.» Os jornalistas tinham ido a Marrocos para «informar sobre a forma como o povo marroquino encara o rei Mohammed VI, que tem sido particularmente discreto desde o terramoto (…). No momento em que escrevemos, Marianne continua a aguardar explicações das autoridades marroquinas sobre as razões que levaram à expulsão do nosso pessoal.»
Quentin Muller partilhou nas redes sociais «que será publicada em breve uma longa investigação sobre Mohammed VI, a respectiva Corte e serviços de segurança com base nas "informações exclusivas" que recolheu e que "retratam um regime cada vez mais duro, assustado com qualquer impulso de contestação local".»
Ficamos a aguardar.