sexta-feira, 5 de agosto de 2022

MARROCOS: REPRESSÃO CRESCENTE

(Boletim nº 111, Agosto 2022)

A aceitação de dois pedidos de asilo solicitados por cidadãos marroquinos (um deles enquanto cidadão francês) na China e no Canadá, devido às perseguições de que eram alvo por parte da polícia política marroquina, ilustra bem a natureza do regime de Rabat e até onde ele chega quando se trata de reprimir a sua própria população. O que se junta à violência continuada contra o povo saharaui no território ocupado.

A repressão permanente

A violação dos direitos humanos é uma prática intrínseca do actual regime marroquino, bem documentada e divulgada por organizações e instituições empenhadas na defesa destes direitos. Um desses testemunhos foi-nos dado pelos presos políticos saharauis, do chamado grupo de Gdeim Izik, e respectivas famílias que, a 1 de Julho, apresentaram uma queixa contra o reino de Marrocos junto do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Detenção Arbitrária, alegando actos de tortura e repressão política.
O Grupo de Apoio de Genebra para a Protecção e a Promoção dos Direitos Humanos que divulgou em comunicado esta informação, lembra que «O grupo de Gdeim Izik refere-se a um grupo de aproximadamente 25 activistas saharauis, jornalistas, defensores dos direitos humanos, activistas políticos, advogados e manifestantes que foram detidos antes e depois do violento desmantelamento do campo de protesto de Gdeim Izik em Novembro de 2010. Com confissões assinadas sob tortura como principal prova de acusação, 23 dos prisioneiros de Gdeim Izik foram condenados a penas de prisão que variaram entre os 20 anos e a prisão perpétua por um tribunal militar em 2013, e depois, a 19 de Julho de 2017, por um tribunal de recurso civil para 19 dos seus membros. (…).»
«"Marrocos é conhecido por ser excelente na assinatura e ratificação de tratados da ONU e pelos seus esforços incansáveis para obter lugares nas várias comissões da ONU", disse Mads Andenas, conselheiro jurídico dos prisioneiros de Gdeim Izik e ex-relator do Grupo de Trabalho da ONU sobre Detenção Arbitrária. "Contudo, Marrocos também é conhecido pelo seu notório incumprimento e desrespeito dos instrumentos internacionais, pela sua não aplicação das decisões da ONU e pela punição das vítimas que cooperam com a ONU. Para que os nossos instrumentos de direitos humanos valham mais do que o papel em que estão escritos, não se pode permitir que esta espiral descendente e a erosão dos organismos da ONU continue.»
No dia seguinte chegava-nos um apelo da ASVDH (Associação Saharaui das Vítimas de Violações dos Direitos Humanos), dando conta de que a sua «sede, foi hoje, 2 de Julho de 2022, alvo de um assalto pela polícia de ocupação e dos seus serviços de informações, a fim de impedir a realização da primeira sessão da reunião do seu Conselho de Coordenação. (…).
«Desde a renovação do Conselho Executivo e do Conselho de Coordenação da ASVDH, as autoridades marroquinas recusaram-se a receber o dossier administrativo da associação e continuaram a obstruir o seu trabalho, o que constitui uma violação flagrante do direito internacional dos direitos humanos e do direito humanitário internacional.»
O apelo refere ainda que «no momento em que Bachri Ben Taleb, presidente da ASVDH, registava esta intervenção, um agente ocupante num carro preto "Dacia Duster" com o número "Maroc 205440" deu um pontapé no telefone do presidente que lhe feriu a mão e partiu o telefone.»
A população marroquina também é vítima desta violência. Eis dois exemplos, um ocorrido o ano passado e o outro recentemente.
O primeiro envolveu um casal de youtubers marroquinos. Como conta o jornalista Ali Lmrabet, «Desde Agosto [de 2021], a youtuber Dounia Moustaslim, mais conhecida pelo seu nome de casada Dounia Filali, e o seu marido Adnane Filali são oficialmente reconhecidos como refugiados políticos marroquinos na República da China. (…).»
«De um local não revelado na China, Dounia Filali e o seu marido Adnane, que concordaram em falar com o Middle East Eye [MEE], ainda estão espantados. São os primeiros marroquinos a ter obtido este precioso “abre-te sésamo” na China. Mas o caminho tem sido longo e tortuoso.»
Ali Lmrabet conta a história de como o casal se viu forçado a esta opção.
«Dounia Filali e o seu marido Adnane são a história de um jovem casal marroquino que se mudou pela primeira vez para Hong Kong em 2017, fundou uma empresa de vendas online, e um ano mais tarde, a fim de evitar continuar a pagar preços astronómicos pelo seu alojamento, mudou-se para Shenzhen, uma cidade a poucas centenas de metros de distância da antiga colónia britânica.
«O casal não deixou Marrocos por razões políticas ou mesmo económicas. O pai de Adnane, Mohamed Filali, é cartoonista e proprietário da empresa de que uma das suas publicações, a revista Akhbar Souk, foi uma das mais vendidas no reino durante o tempo de Hassan II. Algumas das suas edições atingiram facilmente um milhão de exemplares vendidos.
«O tio do Sr. Filali é Abdelmajid Fenjiro, antigo director-geral da MAP, a agência noticiosa oficial, e antigo embaixador do reino no Líbano. Um grande notável do regime, entretanto falecido. Isto significa que nada predestinou este casal, ligado à burguesia ociosa de Rabat, à dissidência política.
«Tudo corria bem para o casal até que Dounia Filali teve a ideia de criar na China um canal de televisão no Youtube. (…).
«”Cada um dos vídeos de Dounia começou a ultrapassar as 200.000 visualizações em poucos dias e pareceu sensato deixar o nosso negócio e concentrarmo-nos na gestão do canal", disse Adnane Filali ao MEE.
«Em Marrocos, enquanto se abordam assuntos de sociedade, mesmo os mais sensíveis, está-se relativamente a salvo de problemas. Mas se por acaso se alguém se interessar por uma questão política, como as falhas da monarquia, os poderes excessivos das várias polícias políticas e o conflito interminável do Sahara Ocidental – especialmente se tratar a informação de forma neutra – então a máquina da polícia política, grosso modo organizada em duas grandes estruturas, a DGST (Direction Générale de la Sûreté du Territoire, mais conhecida pelo seu nome obscuro de DST) e a DGED (Direction Générale des Études et de la Documentation), começa a trabalhar para o forçar a alinhar-se com as teses oficiais, ou, em caso de recusa, para o esmagar. (…).
«Para Dounia Filali, os tormentos começaram quando decidiu entrevistar Mohamed Ziane, ex-Ministro dos Direitos Humanos de Hassan II e antigo Bastonário, em Dezembro de 2020.
«Advogado do jornalista Bouachrine e dos detidos do movimento do Rif, Mestre Ziane tornou-se nos últimos anos o pior pesadelo dos serviços secretos marroquinos e do seu chefe Abdellatif Hammouchi, a quem refere pelo nome e critica nas suas muitas intervenções. (…).
«A entrevista de Ziane teve um efeito catalisador no canal Filali. O número de visualizações dos seus vídeos, mesmo os antigos, explodiu e o número de subscritores acompanhou-o. Mais de 265.000 até à data
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297.000 em 25 de Julho 2022.
.
«A partir desse momento, alguém altamente colocado decidiu colocar o casal Filali numa lista negra de importunos a abater. Por todos os meios. E a caça ao homem começou.
«Foi desencadeada uma gigantesca operação de desinformação mediática para silenciar o jovem casal. Com métodos, um modus operandi e uma linguagem nunca antes utilizados, mesmo durante os piores anos do regime de Hassan II. (…).
«Não tendo conseguido assustar os Filali, a pressão aumentou. Desta vez, as acusações imundas publicadas na imprensa marroquina estranhamente não provocaram qualquer reacção do Sindicato Nacional da Imprensa Marroquina (SNPM) ou do Conselho Nacional da Imprensa, os valentes cavaleiros da ética jornalística nacional quando se trata de atacar os raros meios de comunicação independentes. Dounia Filali foi apresentada como o resultado de um incesto cometido pelo seu avô sobre a sua mãe. Um sítio recomendou que ela praticasse 'prostituição' em vez de jornalismo e outro atacou os seus seios de forma directa. (…).
«Em Maio, o casal foi anonimamente avisado de que tinham sido trocados comentários ameaçadores contra eles num grupo privado da rede social Instagram. Foram feitas ameaças de morte explícitas, escritas e audiovisuais, de cara descoberta, por marroquinos que viviam na China. (…).
«Confrontados com uma ameaça directa, os Filali decidem comunicar o assunto às autoridades chinesas (…). A polícia pediu-lhes, entretanto, que suspendessem as suas actividades nas redes sociais até que o caso fosse esclarecido. (…).
«Entretanto, o casal tinha iniciado um procedimento junto do ACNUR
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Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.
para pedir asilo político. Sem acreditar muito nisso. (…). Uns dias mais tarde, as coisas mudam. O seu caso é recuperado pela questão do programa espião israelita Pegasus, no qual Marrocos desempenha um papel de primeiro plano.
«A revelação desta enorme rede de espionagem pela imprensa internacional desperta de certa forma os chineses. Os altos funcionários da polícia de Shenzhen substituíram a polícia local e convocaram o casal para lhes dizer que estavam a assumir a investigação sobre as ameaças que tinham recebido. (…).
«Alguns dias mais tarde, em Agosto, o ACNUR anunciou que lhes concedia o estatuto de refugiados políticos na China. Uma estreia para os cidadãos marroquinos. (…).
«Com novos documentos de residência, Dounia e Adnane Filali foram recentemente autorizados a retomar as suas actividades nas redes sociais. Começaram com uma entrevista a Ali Aarrass, um ex-preso político que passou uma década nas prisões do reino Xerifiano, período durante o qual ele foi, como testemunha a documentação audiovisual que conseguiu fazer sair da prisão, horrivelmente torturado. O vídeo já ultrapassou as 100.000 visualizações.»
O segundo caso teve como protagonista Zakaria Moumni, antigo campeão do mundo de light contact, na sua variante tailandesa. Desembarcou no Canadá em 5 de Abril de 2017, apresentando um passaporte francês e um pedido de asilo político, para grande espanto dos funcionários que o atenderam. Mas conforme conta o diário Le Monde na sua edição de 18 de Junho passado, «a 26 de Maio de 2022, a Comissão de Imigração e Refugiados do Canadá» concedeu-lhe «o estatuto de refugiado "na acepção do artigo 96" da Lei Canadiana de Imigração e Protecção de Refugiados, que abrange qualquer pessoa que tenha um "receio bem fundamentado de perseguição com base na raça, religião, nacionalidade, pertença a um determinado grupo social, ou opinião política”.»
Moumni «tinha deixado a França depois de mais uma série de ameaças, que tinha atribuído aos serviços de segurança marroquinos. Um país a cuja nacionalidade tinha renunciado e onde esteve preso durante 18 meses.
Após ter ganho o título de campeão em 1999, tentou arranjar um lugar de treinador ou formador, um prémio normalmente atribuído a desportistas de alto nível, o que lhe foi negado, injustamente na sua opinião. «Tinha abordado o Rei de Marrocos em várias ocasiões para denunciar a "corrupção" no seio da sua federação e tinha sido recebido pelo seu conselheiro, Mounir ElMajidi, que rapidamente se mostrou ameaçador», conta o Le Monde.
«Em Setembro de 2010, ao sair de um avião em Rabat vindo de França, foi detido pelos serviços secretos marroquinos e levado para o centro de interrogatórios de Témara. Aí foi torturado e privado de comida. "Eles disseram-me: ‘Este é o matadouro de Sua Majestade. Aqui fazemos o que queremos! (…)’”.
«No final de um julgamento rápido, Zakaria Moumni foi condenado a três anos de prisão efectiva por ter "extorquido" 2.800 euros a dois cidadãos marroquinos. Um "golpe fabricado", segundo os seus advogados de defesa.»
Em Fevereiro de 2014 apresentou num tribunal de Paris uma queixa por tortura contra «Abdellatif Hammouchi, o patrão da contra-espionagem marroquina». Rabat pagou-lhe na mesma moeda apresentando uma queixa por difamação que em Janeiro de 2015 foi recusada pelo tribunal de apelo.
«Um opositor regular da tortura, o Sr. Moumni tem sido alvo de repetidas ameaças de morte deixadas no seu atendedor de chamadas ou publicadas nas redes sociais. (...). Em Dezembro de 2016, apresentou uma queixa por tentativa de homicídio após ter sido atacado com uma faca. A queixa foi encerrada uma vez que os atacantes não tinham sido identificados. "Tinha esgotado todos os recursos: entre queixas, cartas a Bernard Cazeneuve (então Ministro do Interior), a François Hollande... Eu só estava a pedir protecção...", recorda ele.
«Decidiu então deixar a França, levando consigo as provas das suas audiências pela polícia judiciária francesa e pela DGSI, bem como os resumos das investigações judiciais.... Todos estes elementos levaram as autoridades canadianas a considerar que, se a França é de facto um Estado presumido capaz de proteger os seus cidadãos, não foi esse o seu caso. "As suas numerosas queixas contra as autoridades marroquinas corroboram as suas alegações de perseguição em França", nota a comissão canadiana. A facilidade com que os seus agressores conseguiram localizá-lo apesar das múltiplas mudanças de residência, a recorrência das ameaças e a sua multiplicação ao longo do tempo "levam o tribunal a concluir que o requerente foi vítima de perseguição política em França".
«Na fundamentação da sua decisão, a comissão acrescenta que "as provas indicam que as autoridades francesas tinham conhecimento da situação do requerente, uma vez que este tinha estado em contacto com agentes do Ministério do Interior durante muito tempo. "Tendo em conta todas as ameaças, parece que as autoridades francesas não demonstraram um mínimo de vontade de o proteger", acrescenta a comissão.
«A nota de decisão comenta duramente a relação entre os Estados marroquino e francês: "Num tal contexto, onde as relações diplomáticas e de segurança entre a França e Marrocos são muito importantes, parecia mais provável que as autoridades francesas privilegiassem esta relação em detrimento das queixas do requerente pela sua segurança em França", continua o organismo de protecção dos refugiados, sublinhando que "existe uma estreita colaboração entre as autoridades francesas e o Sr. Hammouchi, Director-geral da Segurança Territorial de Marrocos"... (…).»

SAHARA OCIDENTAL: A QUESTÃO ESTÁ VIVA EM PORTUGAL

(Boletim nº 111, Agosto 2022)

A primeira quinzena de Julho foi relevante para a questão do Sahara Ocidental em Portugal: 677 cidadãs e cidadãos, e organizações da sociedade civil, subscreveram uma Carta Aberta ao governo português; iniciou as suas funções o novo Representante da Frente POLISARIO em Portugal; e o MNE João Gomes Cravinho anunciou que tinha convidado o Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU para o Sahara Ocidental, Staffan de Mistura, a visitar o nosso país.

Convite a Staffan de Mistura
A Carta Aberta, promovida por um conjunto de personalidades e de organizações da sociedade civil, e entregue no dia 6 de Julho, lembra ao Primeiro-Ministro António Costa e ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, que “O povo do Sahara Ocidental espera e luta, há 47 anos, por uma solução que acabe com a última colónia de África, que finalize um processo de descolonização inacabado”.
As e os subscritoras/es solicitam ao Governo português que:
- mantenha na sua agenda, em coerência com o Direito Internacional, com a Constituição da República Portuguesa e com o apoio dado ao povo timorense, a defesa clara e explícita do direito à autodeterminação do povo do Sahara Ocidental;
- estabeleça um diálogo continuado sobre a questão com as duas partes do conflito, a FPOLISARIO e o Reino de Marrocos, de modo a estar sempre informado em primeira mão e a poder colaborar na construção de uma solução credível e duradoura que acabe com a guerra em curso e favoreça a estabilidade da região;
- contribua activamente para que as negociações sob os auspícios da ONU reconheçam a imprescindibilidade de realizar um referendo para que seja o povo saharaui a decidir sobre o seu próprio futuro;
- acompanhe e procure por todos os meios fazer cessar as violações de direitos humanos no Sahara Ocidental, nomeadamente apoiando a constituição de uma capacidade de monitorização da matéria no âmbito da MINURSO;
- cumpra rigorosamente as sentenças dos Tribunais da União Europeia relativas aos acordos comerciais celebrados entre a União Europeia e Marrocos e não envolva Portugal em empreendimentos localizados no território não-autónomo do Sahara Ocidental.
Na mesma semana chegou a Lisboa o novo Representante da Frente POLISARIO em Portugal, Omar Mih, o que se espera facilite a interlocução entre o governo português e as duas partes do conflito, ultrapassando a fase na qual só uma (o Reino de Marrocos) tem sido oficialmente ouvida.
O Ministro João Gomes Cravinho anunciou, no dia 15 de Julho, durante a sessão de encerramento da conferência “A Diplomacia e a Independência de Portugal”, que tinha convidado o Enviado Pessoal do secretário-geral da ONU Staffan de Mistura a visitar o nosso país «em breve, provavelmente a seguir às férias de verão.»
As suas palavras foram pouco claras, o que permitiu a apropriação por parte de Marrocos da passagem em que disse à agência Lusa: «O plano de autonomia de Marrocos em 2008 foi um plano importante, significativo, um passo que representou um avanço. Agora convinha que houvesse algum movimento para desbloquear a situação». Ao mesmo tempo, o ministro explicitou: «Aquilo que nós queremos sublinhar é o nosso apoio ao processo que as Nações Unidas estão a desenvolver e pensamos que ao fim destas décadas deve-se procurar chegar a um entendimento».
Na Carta Aberta que o MNE recebeu poucos dias antes destas declarações diz-se: «Acreditamos que Portugal tem condições especiais para desempenhar um papel que faça prevalecer o direito sobre a força, apoiando-se na sua experiência e na credibilidade ganha pelo contributo decisivo que deu para o sucesso do processo de autodeterminação do povo de Timor-Leste, tendo em conta as suas relações amistosas com as partes envolvidas, assim como a pertença à UE e à CPLP, e a prioridade que concede ao respeito pelos Direitos Humanos e à resolução pacífica de todos os conflitos no quadro do Direito Internacional.»

ONU: A DIFICULDADE DE NEGOCIAR

(Boletim nº 111, Agosto 2022)

O resultado da segunda visita à região do Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU para o Sahara Ocidental foi pouco encorajador. Na semana seguinte, um dos seus antecessores, o embaixador Christopher Ross, dirigindo-se a uma iniciativa europeia, partilhou a sua experiência e ideias sobre o processo, contribuindo para se perceber o que se está a passar.

Falta de apoio para negociar

Visando relançar o processo negocial sobre o Sahara Ocidental, no passado dia 1 de Julho o Secretário-geral da ONU, através do seu porta-voz Stephan Dujarric, anunciou que o seu Enviado Pessoal para aquele território, Staffan de Mistura, iria empreender nos dias seguintes uma nova ronda de negociações na região, com encontros com as autoridades marroquinas em Rabat e uma visita ao Sahara Ocidental.
«Durante esta fase de contactos», disse Dujarric, «o Enviado Pessoal pretende continuar a guiar-se pelos precedentes claros estabelecidos pelos seus antecessores», esperando aprofundar as consultas que iniciou aquando da sua anterior visita, em Janeiro, onde se deslocou igualmente aos acampamentos de refugiados na região de Tindouf (Argélia).
Agora previa-se uma deslocação a El Aiun, capital do Sahara Ocidental, em 4 de Junho, onde se encontraria com membros da MINURSO, facto que não ocorreu por Marrocos não o ter permitido. Recorde-se que as visitas dos Enviados Pessoais ao território saharaui têm tido sempre a "aprovação" prévia da potência ocupante que impõe condições para o seu “consentimento”, e em algumas ocasiões as vetou. O último Enviado a encontrar-se oficialmente com grupos saharauis pró-independência foi Christopher Ross em 2012 e o governo marroquino proibiu-o posteriormente de viajar para o Sahara, entrando em conflito directo com ele e declarando-o como 'persona non grata'. A actual iniciativa diplomática de Staffan de Mistura resultou assim num fracasso.
Ross aceitou partilhar a sua experiência enquanto Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU para o Sahara Ocidental entre 2009-2017 por ocasião do "1º Dia Europeu da Amizade com o Povo Saharaui", realizado em Florença, Itália, no dia 7 de Julho.
Ross: uma longa experiência
«(…) Visitei pela primeira vez os campos de refugiados em 1981 e vi em primeira mão as trágicas condições de vida da população. Estava determinado a que, se alguma vez surgisse a oportunidade de ajudar a pôr fim ao seu sofrimento e permitir-lhes regressar à sua pátria de uma forma mais humana, eu faria tudo para os ajudar. (…).
«Em 2007, antes da minha nomeação, o Conselho de Segurança tinha apelado a negociações, sem condições prévias e de boa-fé, entre Marrocos e a FPOLISARIO. O seu objectivo, segundo o Conselho, era, e continua a ser, o de alcançar "uma solução política mutuamente aceitável, que preveja a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental".
«Em Abril desse ano as duas partes apresentaram as suas propostas: Marrocos para uma ampla autonomia do Sahara Ocidental sob a sua soberania, a FPOLISARIO para um referendo que incluísse a independência como opção e que delineasse as relações estreitas que um Estado independente teria com Marrocos. Estas propostas eram mutuamente exclusivas e deixavam pouco espaço a compromissos. (…).
«Infelizmente, nada que se possa chamar uma negociação teve alguma vez lugar e a comunidade internacional tem todo o direito de saber porquê. A FPOLISARIO compareceu em cada sessão pronta para discutir ambas as propostas, mas Marrocos veio com uma importante condição prévia: que se discutisse apenas a sua própria proposta. Escusado será dizer que a FPOLISARIO se recusou a aceitar o que via como um dictat, e as negociações foram um nado-morto desde o início. (…).
«Na ausência de progressos sobre o futuro do território, os direitos humanos em particular emergiram como um campo de batalha substituto, com cada lado a acusar o outro de violações graves. Em cada um dos seus relatórios ao Conselho de Segurança, o Secretário-geral apelou à monitorização independente dos direitos humanos, mas em vão. Enquanto a FPOLISARIO manifestou a sua vontade de aceitar o controlo nos campos de refugiados na Argélia, Marrocos recusou-se a permitir a sua presença na parte do Sahara Ocidental sob o seu controlo, alegando que violaria a sua auto-proclamada soberania.
«O próprio Conselho de Segurança também desempenhou um papel importante na perpetuação do impasse de 13 anos ao não exercer qualquer pressão real sobre as partes no que respeita ao conteúdo de um acordo, devido a divisões entre os seus membros.
«Alguns, nomeadamente a França e os seus aliados africanos, apoiam a autonomia. Outros, incluindo o Reino Unido e, mais recentemente, a Rússia, defendem a autodeterminação. Em Dezembro de 2020, como se sabe, o Presidente Trump deu o passo insensato de reconhecer a soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental, uma soberania que não existe e que não lhe cabia reconhecer. A acção de Trump foi irreflectida por três razões. Em primeiro lugar, complicou o processo de negociação, fazendo com que tanto Marrocos como a FPOLISARIO, bem como a Argélia, endurecessem ainda mais as suas posições. Em segundo lugar, destruiu quaisquer perspectivas iniciais de integração e cooperação regional, incluindo sobre migração ilegal, droga, contra-terrorismo e outras questões de segurança. E, em terceiro lugar, prejudicou as relações dos EUA com a Argélia, o seu outro grande parceiro no Norte de África e um dos principais defensores da autodeterminação. A Espanha imitou o exemplo dos EUA em Março de 2022, declarando a autonomia como a solução mais séria, realista e credível e desencadeando uma crise nas suas relações com a Argélia. É instrutivo a este respeito que nenhum outro grande país, nem mesmo a França, tenha seguido os EUA e a Espanha na declaração de apoio aberto à posição marroquina.
«Em suma, temos duas partes incapazes de negociar, o Conselho de Segurança dividido e os EUA e a Espanha a complicar as coisas. Mas para além de evitar compromissos e pressões substanciais, o Conselho permitiu que as partes, particularmente Marrocos, ignorassem impunemente a sua orientação. A FPOLISARIO e a Argélia, por seu lado, ignoraram o apelo do Conselho para um recenseamento formal dos refugiados, preferindo salientar que a estimativa da ACNUR de 2017 responde a essa necessidade. Entretanto, Marrocos ignorou o apelo do Conselho para evitar condições prévias nas negociações, o apelo para examinar a proposta da FPOLISARIO e o apelo para permitir o livre acesso da MINURSO a todos os interlocutores na sua área de operações.
«O que se segue agora quando o último Enviado Pessoal, Staffan de Mistura, começa a sua segunda viagem ao Norte de África?
«Se o seu mandato se limitar a deslocar-se de lugar em lugar e a organizar reuniões das partes, como foi o caso dos seus três antecessores, enfrentará as mesmas dificuldades que eles enfrentaram.
«Marrocos já está a insistir que a Argélia venha para a mesa de negociações como parte de pleno direito. A Argélia e a FPOLISARIO recusam-se a prosseguir nessa base.
«Creio que a única forma de De Mistura esperar quebrar o impasse é se o Conselho lhe der um mandato mais amplo, semelhante àquele em que James Baker trabalhou entre 1997 e 2004. Durante esses anos, a procura de um acordo estava nas mãos do Enviado Pessoal e não das partes. Baker apresentou diversas variantes de um plano de acordo e comprometeu-se com as partes sobre os seus detalhes. Os seus esforços falharam porque cada uma destas variantes levavam a um referendo sobre a autodeterminação em algum momento e porque Marrocos revogou o seu compromisso sobre esse referendo após a morte do rei Hassan II em 1999. Em sucessivos discursos ao longo dos anos, o rei Mohamed VI estabeleceu linhas vermelhas: nenhuma negociação excepto sobre os pormenores da autonomia, nenhum referendo que inclua a independência, e nenhum controlo dos direitos humanos. Pergunta-se, como é que De Mistura pode ter sucesso?
«O que devem então fazer os membros da comunidade internacional, incluindo governos e sociedade civil?
  1. Para dar espaço ao reinício do processo negocial, devem convencer todos os interessados a evitar novas acções provocatórias que possam conduzir a uma escalada das hostilidades.
  2. Devem apoiar plenamente De Mistura nos seus esforços para reavivar o processo negocial, em particular exortando as partes, os Estados vizinhos e as principais partes interessadas internacionais a envolverem-se plenamente nele.
  3. De acordo com as orientações do Conselho de Segurança, deveriam trabalhar para convencer Marrocos a negociar sem condições prévias e a comprometer-se com a proposta da FPOLISARIO numa base de reciprocidade.
  4. Se o processo de negociação permanecer bloqueado, devem trabalhar com os membros do Conselho de Segurança para dar a De Mistura um mandato mais amplo.
  5. Em conformidade com as orientações do Conselho de Segurança, devem trabalhar para convencer Marrocos a permitir o acesso da MINURSO a todos os interlocutores na sua área de operações. Paralelamente, devem encorajar Marrocos a abrir o território sob o seu controlo a jornalistas, académicos e outras partes interessadas. Medidas como estas permitiriam ao mundo avaliar os desejos dos habitantes do Sahara Ocidental que vivem sob controlo marroquino. Qualquer solução que não tenha em conta as opiniões desta população seria intrinsecamente desestabilizadora.
  6. Deveriam trabalhar para convencer a FPOLISARIO a retomar o seu antigo costume de receber o EPSG/Chefe da MINURSO em Rabouni, Argélia, em vez de no Sahara Ocidental a leste do muro. Devem também pressionar a FPOLISARIO e a Argélia para verificar a exactidão da estimativa da população de refugiados do ACNUR de 2017 por meios apropriados. Tal como acontece com os Saharauis Ocidentais que vivem sob controlo marroquino, qualquer solução que não tenha em conta a opinião desta última população seria igualmente desestabilizadora por natureza.
  7. De acordo com as orientações do Conselho de Segurança, deveriam trabalhar para convencer Marrocos a aceitar medidas independentes e credíveis para assegurar o pleno respeito pelos direitos humanos, como a FPOLISARIO está preparada para o fazer numa base de reciprocidade.
  8. Finalmente, mas de grande importância, deveriam trabalhar para mobilizar uma ajuda humanitária muito maior aos refugiados que vivem em condições miseráveis nos acampamentos.
«O povo autóctone do Sahara Ocidental já sofreu o suficiente e o seu direito a participar na determinação do seu futuro foi perdido na poeira do conflito e no nevoeiro das palavras.
«É tempo de pôr fim a este sofrimento e restaurar o seu direito à autodeterminação no contexto da solução política mutuamente aceitável solicitada pelo Conselho de Segurança.»