quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

MARROCOS: A REPRESSÃO COMO RESPOSTA ÀS CRISES

(Boletim nº 116, Janeiro 2023)

A política externa agressiva do regime marroquino faz-nos, por vezes, esquecer a sua situação interna. Mas isso não impede a “velha toupeira” de fazer o seu trabalho e de expor as crispações sociais, que a repressão não consegue impedir.

Rabat, 4 Dezembro 2022 (foto CADTM)

No dia 4 de Dezembro realizou-se em Rabat uma manifestação para protestar contra o aumento do custo de vida e a escalada repressiva do regime, que reuniu cerca de 3.000 pessoas.
Eric Toussaint, do CADTM (Comité pour l’Abolition des Dettes Illégitimes), entrevistou Jawad Moustakbal da ATTAC Marrocos, questionando-o sobre «Quais são as razões económicas, sociais e políticas para o sucesso da mobilização em Rabat a 4 de Dezembro?»
«Os participantes na marcha cantavam slogans denunciando os recentes ataques ao poder de compra, e o chefe de governo, o multimilionário Aziz Akhenouch, com cartazes que diziam: "Akhenouch fora".
«Esta mobilização, iniciada por organizações sindicais e políticas de esquerda e agrupada numa coordenação denominada Frente Social Nacional, é uma resposta à profunda deterioração das condições de vida da maioria.
«Existem causas estruturais e conjunturais que explicam a deterioração das condições de vida da maioria dos marroquinos e marroquinas.
«As razões estruturais estão ligadas às escolhas económicas neoliberais que têm sido adoptadas por aqueles que governam o nosso país há décadas. As políticas de liberalização e privatização, por exemplo, beneficiaram uma elite local que gira em torno do "palácio" e que muitas vezes se associa a multinacionais ocidentais para açambarcar territórios (água, terras florestais, minas, etc.) ou as empresas públicas mais rentáveis, ou mesmo sectores estratégicos e vitais como a distribuição de água, energia, educação ou saúde.
«A abertura das fronteiras às mercadorias, exigida pelos acordos neocoloniais de comércio livre que Marrocos assinou, enfraqueceu o nosso tecido económico e levou à perda de empregos no ambiente urbano, enquanto que a adopção de uma agricultura orientada para a exportação, já desde há ¼ de século, continua a empobrecer os nossos pequenos agricultores e a agravar a nossa dependência alimentar.
«Estas políticas são recomendadas pelo FMI e pelo Banco Mundial e implementadas à letra pelos verdadeiros detentores do poder, a saber o Rei e os seus conselheiros. (…).
«Estes factores estruturais são os principais responsáveis por esta situação porque também limitam a capacidade do Estado para fazer face às condições económicas, reduzindo constantemente o orçamento dos serviços públicos e aumentando a nossa dependência alimentar e energética. O que aumenta a nossa fragilidade em relação às flutuações dos preços dos produtos que são essenciais para o nosso povo e para a nossa economia. A isto juntam-se os efeitos da seca, que se tornou mais intensa e mais frequente nos últimos 20 anos, em ligação com a crise ecológica e o aquecimento global.
«As desigualdades sociais em Marrocos são também as mais elevadas da região, de acordo com os últimos relatórios da Oxfam. A repressão parece ser a única resposta do Estado marroquino para gerir estas múltiplas crises exacerbadas pelas suas políticas.»
Moustakbal, a pedido de Toussaint, passa depois em revista as grandes mobilizações sociais em Marrocos nos últimos doze anos.
«As lutas pela defesa dos territórios (água, terra, florestas, etc.) têm sido constantes. Nunca cessaram, especialmente nas zonas mais marginalizadas, a que o colonizador francês chamou “o Marrocos inútil”. Estas lutas são uma resposta a um processo bastante violento de acumulação por despossessão liderado pelas classes dominantes. Para além destas lutas "permanentes", podemos distinguir 3 grandes mobilizações:
  • «Em 2011: O movimento de 20 de Fevereiro foi a mobilização mais maciça e prolongada, com marchas envolvendo dezenas de milhares de participantes em mais de uma centena de cidades de Marrocos. Simultaneamente com este movimento, que se concentrava mais nas grandes cidades e centros urbanos de média dimensão e cujas reivindicações eram principalmente democráticas e políticas, vários movimentos de protesto pelos direitos sociais, habitação, terra e trabalho surgiram em várias partes do país e aproveitaram o ambiente favorável criado pela chamada Primavera Árabe.
  • «Em 2016-2017 - Hirak (movimento de protesto) do Rif: Na sexta-feira 28 de Outubro de 2016, ocorreu um trágico e fatal incidente na cidade de Al Hoceima, no nordeste de Marrocos, quando um agente estatal apreendeu as mercadorias de Mouhcine Fikri, um vendedor de peixe, e as atirou para dentro de um camião de lixo. Quando o vendedor entrou desesperadamente no camião para recuperar o seu peixe, "um polícia local ordenou ao motorista do camião basculante que ligasse o compactador e o 'esmagasse'", de acordo com activistas e testemunhas. O camião esmagou horrivelmente Fikri, causando a sua morte. Este triste acontecimento levou a 10 meses de manifestações pacíficas. Estas manifestações mobilizaram todos os habitantes de Al-Hoceima e das cidades vizinhas. Este movimento, que era o eco do movimento de 20 de Fevereiro, retomando alguns dos seus slogans e organizando marchas e/ou sit-ins todos os fins-de-semana, caracterizou-se também por muitas inovações em termos de organização, comunicação e envolvimento das camadas sociais mais amplas através de assembleias populares nos cafés, onde a lista de reivindicações foi discutida e aprovada, abrangendo toda a região, bem como todos os aspectos da vida das pessoas (económicos, sociais, políticos, ambientais, culturais e desportivos).
  • «Em 2017-2018 - Hirak (movimento de protesto) de Jerada: Este movimento nasceu na sequência da conjunção de dois acontecimentos sucessivos: o primeiro foi a repressão de uma manifestação contra o aumento dos preços da electricidade e a detenção de dois jovens estudantes do ensino secundário; o segundo ocorreu no dia seguinte e resultou da morte de dois irmãos que se afogaram no fundo de uma das minas improvisadas escavadas nas proximidades da cidade para extrair carvão. Desde o encerramento em 1998 do Charbonnages du Maroc, que operava três grandes poços dentro de Jerada, a população, que dependia inteiramente da mina, começou a cavar poços na floresta circundante para explorar sozinha os veios de carvão. Por conseguinte, foram organizadas manifestações na praça principal da cidade com a participação de milhares de mulheres e homens. As exigências deste movimento centraram-se em três áreas principais: a tarifação da água e da electricidade, uma alternativa económica e a aplicação do princípio da responsabilização.
«Há também a campanha de boicote de 2018 que acho interessante mencionar aqui. De facto, após a liberalização dos preços dos combustíveis e a abolição dos subsídios para certos produtos básicos, Marrocos testemunhou muitas tentativas espontâneas de organizar campanhas de boicote contra produtos pertencentes a personalidades influentes próximas do governo. A campanha de 2018 dizia respeito a três marcas: a empresa Centrale para produtos lácteos do grupo Danone, a Sidi Ali pertencente a Meriem Bensaleh, ex-presidente da associação patronal, e a marca Afriquia, que detém a maior parte do mercado de distribuição de hidrocarbonetos e pertence ao actual chefe de governo Aziz Akhenouch. Este último é um dos homens mais ricos do continente. Acumulou a sua riqueza aproveitando a sua proximidade com o Palácio Real. A campanha de boicote foi muito bem sucedida e encontrou uma simpatia popular generalizada, não só nas redes sociais, mas também no terreno. As três empresas perderam vendas, algumas das quais chegaram aos 40% do seu volume de negócios e foram forçadas a rever as suas políticas de preços. Foi o caso da Danone relativamente à produção de leite.»
A situação actual da agricultura marroquina foi abordada numa edição recente
1
Aurélie Collas, «L’agriculture marocaine assoiffe le pays», Le Monde, 9 Outubro 2022.
do diário Le Monde: «Marrocos encontra-se numa situação de "stress hídrico estrutural", como o Banco Mundial assinalou em Julho num relatório sobre a economia marroquina. Com 600 metros cúbicos de água por pessoa por ano - em comparação com 2.600 metros cúbicos em 1960 - a procura de água excede largamente os recursos. "Nos 500 metros cúbicos, alcançaremos o limiar crítico de escassez. Muitas regiões já estão abaixo deste nível", adverte o Sr. Amraoui
2
Fouad Amraoui, professor em ciências da água na universidade Hassan II de Casablanca.
. O país encontra-se perante um dilema: como conciliar um modelo agrícola intensivo que representa 14% do PIB e emprega 40% da população activa, mas absorve 85% do consumo nacional de água, com o imperativo de preservar o que resta dos seus recursos hídricos?»
Semanas depois, o jornal
3
Aurélie Collas, «Au Maroc, l’oued victime des “voleurs d’eau“», Le Monde, 30 Outubro 2022.
voltou ao tema:
«"Não são agricultores, mas investidores nómadas: alugam terras aos agricultores durante uma estação agrícola, semeiam, colhem, embolsam os seus lucros e partem", acrescenta Kabir Kacha, membro da Associação Marroquina dos Direitos Humanos (AMDH) em Khénifra, muito activa na causa do Wadi [curso de água sazonal] Chbouka. "Levam água de graça, não pagam impostos, não contratam mão-de-obra local, não vendem aqui os seus legumes, mas enviam-nos para fábricas de batatas fritas. Não acrescentam qualquer valor à região. Pelo contrário, destroem o ambiente", denuncia este professor de filosofia, (...).
«Em Lehri, são chamados "ladrões de água". Desde Junho os habitantes enviaram sete cartas para alertar as autoridades públicas: o governador da região, os ministérios do interior, do equipamento, da agricultura, etc. Foram organizadas várias manifestações. "Mas, em todas, a polícia ordenou-nos que ficássemos em casa. Tudo é feito para nos manter calados", protesta Kenza (nome alterado), um residente da aldeia, referindo-se também a um comunicado do conselho municipal, datado de 20 de Junho, que acusa os manifestantes de "criar divisões" e afugentar os "investidores agrícolas". "Obviamente, as autoridades locais estão a protegê-los. A grande questão é porquê? O que têm a ganhar?", pergunta Mohamed Zendour, presidente da secção local da AMDH.»
Peça chave na preservação do regime autoritário é o controlo sobre os meios de comunicação social e a repressão sobre os que desafiam o status quo. Ganha, assim, um maior relevo o prémio atribuído pela organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), na 30ª edição dos prémios dedicados à Liberdade de Imprensa celebrada na capital francesa, ao jornalista Omar Radi, condenado a seis anos de prisão por «violação e espionagem».
Radi, um jornalista que se destacou pelo trabalho de investigação em temas sensíveis, como a corrupção, ao longo dos últimos dez anos, tornou-se alvo de uma investigação policial em Junho de 2020 por «espionagem» quando a Amnistia Internacional revelou que o seu telemóvel tinha sido alvo do programa israelita Pegasus. Um mês mais tarde foi preso, alegadamente por «violação».
Já antes a RSF tinha denunciado «que a situação dos meios de comunicação social no país é a pior desde que Mohammed VI se tornou rei em 1999.» Khaled Drareni, representante da organização para o Norte de África, comentou: «O regresso às práticas dos anos mais negros de Marrocos é perturbador e inaceitável. Contraria a imagem de respeitabilidade que o governo gosta de mostrar ao mundo e, acima de tudo, vai contra as legítimas aspirações da população marroquina ao exercício efectivo das suas liberdades, incluindo a liberdade de imprensa. Exigimos que as autoridades libertem os jornalistas presos, anulem as suas condenações, especialmente as de Souleiman Raissouni e Omar Radi, e desistam de qualquer processo judicial pendente.»
Mas não são só os jornalistas a serem vítimas da repressão policial. O medo da mudança leva o regime a prender figuras da elite que com ele colaboraram. É o caso de Mohammed Ziane, ministro dos Direitos Humanos em 1995 e 1996, preso e condenado a três anos de detenção em Novembro passado. «O Sr. Ziane, de 79 anos de idade, foi processado por uma queixa do Ministério do Interior marroquino com 11 acusações, incluindo "insultar funcionários públicos e o poder judicial", "insultar um organismo constituído", "difamação", "adultério" e "assédio sexual".»
Todas estas práticas repressivas estão devidamente identificadas e são do conhecimento das Nações Unidas. A Revisão Periódica Universal levada a cabo pela Comissão dos Direitos Humanos da ONU abordou no passado mês de Novembro a situação em Marrocos, recolhendo e sistematizando um vasto leque de informações cujo relatório é público.


 


segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

SAHARA OCIDENTAL: MORREM OS NOSSOS PRINCÍPIOS ANTES DA ÚLTIMA COLÓNIA DE ÁFRICA?

(Boletim nº 115, Dezembro 2022)

Yazid Ben Hounet e Sébastien Boulay escreveram um texto sobre o processo de descolonização do Sahara Ocidental para a revista Esprit que esta acabou por não publicar. Os autores disponibilizam-no agora, justificando por que o fazem.

«A colonização é um crime»

Este texto foi escrito a pedido do editor adjunto da revista Esprit (datado de 12 de Setembro de 2022, texto sobre o Sahara Ocidental de um máximo de 8.000 caracteres). O trabalho foi apresentado a 13 de Outubro de 2022 e confirmada a sua recepção. Foi depois recusado a 15 de Novembro de 2022 com o argumento de que "apesar das qualidades do vosso artigo, particularmente rigoroso e bem informado", outro texto sobre o Sahara Ocidental – que nunca foi mencionado antes – deveria aparecer no próximo número da revista. Assim, estamos a disponibilizar a nossa contribuição no sítio da OUISO e autorizamos aquelas e aqueles que o desejem a publicá-lo e divulgá-lo o mais amplamente possível.
Na quarta-feira, 18 de Abril de 2018, o L’ Humanité publicou uma Carta Aberta dirigida a Emmanuel Macron, assinada por dezenas de especialistas em direito internacional, relações internacionais, direitos humanos e norte de África. Nela apontavam o dedo para a responsabilidade da França na não descolonização do Sahara Ocidental.
Vista de França, a questão do Sahara Ocidental, quando é abordada nos media (ou seja, raramente), resume-se muitas vezes a um conflito territorial entre Marrocos e um “movimento independentista”, a Frente POLISARIO, “apoiado pela Argélia”. Do ponto de vista internacional, e de especialistas da área, a situação do Sahara Ocidental é sobretudo a de uma descolonização travada por Marrocos, que ocupa quase 80% do território, com o apoio (nos bastidores) da França. Ela gera violações de direitos humanos e crimes de colonização nos territórios sob ocupação marroquina.

Uma descolonização impedida

Colónia espanhola de 1884 a 1976, o Sahara Ocidental desde muito cedo despertou a cobiça do vizinho Marrocos e, posteriormente, da Mauritânia, que invadiram o território no final de 1975-início de 1976 conforme acordo firmado com o regime de Franco (14 de Novembro, 1975) sem o conhecimento do povo colonizado do Sahara Ocidental (os saharauis) e em violação das resoluções da ONU. Esta invasão desencadeou uma guerra de 16 anos com a Frente POLISARIO, movimento de libertação fundado em 1973 que lutou primeiro contra a Espanha pela descolonização do território e reconhecido como único representante do povo saharaui pela ONU em Maio de 1975.
A Frente POLISARIO surge na esteira dos movimentos de libertação africanos, de acordo com as resoluções da ONU
1
Resolução 1514 da Assembleia Geral das Nações Unidas de 14 de Dezembro 1960.
e da Carta da Organização da Unidade Africana (Adis Abeba, 1963)
2
Resoluções da Conferência de Addis-Abeba sobre a descolonização – documento fundador da Organização de Unidade Africana – aprovadas de 22 a 25 Maio 1963.
, documento fundador da União Africana. Esta última estabeleceu dois princípios claros para toda a África: por um lado, o respeito pelas fronteiras herdadas da colonização, a fim de evitar potenciais conflitos fronteiriços entre os países recentemente descolonizados (regra recordada na Conferência do Cairo de 1964); por outro lado, o apoio dos novos Estados independentes aos movimentos de libertação nacional em territórios ainda não descolonizados (caso da Frente POLISARIO).
A guerra provocou um êxodo maciço de refugiados saharauis para campos que o Crescente Vermelho argelino montou no sudoeste da Argélia, perto de Tindouf, onde um Estado saharaui independente – a República Árabe Saharaui Democrática (RASD) – foi proclamado a 27 de Fevereiro de 1976 pelos nacionalistas saharauis. Em 1979, a Mauritânia, exausta pela guerra, retirou-se do conflito. A RASD tornou-se membro da União Africana em 1982. Em 1991, um cessar-fogo entre a Frente POLISARIO e o Estado marroquino prevê a organização de um referendo de autodeterminação sob os auspícios da ONU que, para o efeito, criou a Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO), responsável pela fiscalização do cessar-fogo e pela organização da consulta eleitoral. Trinta anos depois, o referendo de autodeterminação ainda não ocorreu, devido a divergências recorrentes sobre as listas de eleitores; Marrocos propõe desde então (2007) um plano de autonomia ampla. Em Novembro de 2020, o conflito recomeçou naquela que continua a ser a última colónia da África.

Uma sociedade amordaçada

Na Carta Aberta mencionada acima, é explicado que a França "apoia todos os anos no mês de Abril, no Conselho de Segurança, a posição marroquina de recusar a extensão do mandato da missão de manutenção da paz das Nações Unidas (MINURSO) à fiscalização dos direitos humanos, mas também à realização de um referendo sobre a autodeterminação, objectivo primordial do cessar-fogo de 1991 e, não o esqueçamos, uma exigência das Nações Unidas desde 1966. Esta posição francesa permite ao Estado marroquino – que a ONU, a OUA-UA e a UE continuam a considerar como ocupante deste território – continuar a sua colonização promovendo nomeadamente a transmigração de populações de Marrocos, prendendo e “julgando” presos políticos saharauis em solo marroquino, duas flagrantes violações (entre outras) do direito internacional e do direito humanitário internacional.
De facto, a MINURSO continua a ser a única missão das Nações Unidas que não tem mandato para observar violações dos direitos humanos. Em 11 de Junho de 2022, a secção espanhola de Repórteres Sem Fronteiras apresentou o seu relatório sobre o Sahara Ocidental, um verdadeiro buraco negro de informação que se tornou uma área de ilegalidade para os jornalistas. Quatro décadas de abandono da última colónia africana, um conflito de baixa intensidade no terreno e nos media, fizeram do Sahara Ocidental uma cidadela jornalisticamente impenetrável, uma zona de violações dos direitos humanos contra os saharauis e jornalistas independentes. Entre o grupo de presos do conhecido Acampamento da Dignidade — Gdeim Izik (2010) — estão quatro jornalistas ao lado de activistas, vítimas de torturas, espancamentos, períodos de isolamento, além de julgamentos truncados acompanhados de penas muito pesadas que vão até à prisão perpétua. Naâma Asfari, advogado, defensor dos direitos humanos, marido de Claude Mangin-Asfari, cidadão honorário da cidade de Ivry, é um desses presos. Foi condenado, num julgamento injusto, a 30 anos de prisão. Dezoito dos seus companheiros permanecem presos desde 2010. Em 12 de Dezembro de 2016 Marrocos foi condenado pelo Comité da ONU contra a Tortura após uma denúncia apresentada pela ACAT e pelos advogados de Naâma Asfari.
Somam-se a isso outras prisões não mediatizadas e violência regular perpetrada contra activistas saharauis, em particular mulheres como Aminatou Haidar e Sultana Khaya. Num relatório contundente publicado no final de 2021, a Federação das Associações Catalãs de Amigos do Povo Saharaui e a associação NOVACT (Instituto Internacional de Acção Não-Violenta), em parceria com o Grupo de Apoio de Genebra para a Protecção e Promoção dos Direitos Humanos no Sahara Ocidental, enumeraram e contaram nada menos que 160 violações de direitos humanos só no período de Novembro de 2020 a Novembro de 2021, ou seja, uma média de uma violação a cada dois dias: ataques contra civis e seus bens, incluindo execuções; restrição generalizada de circulação e movimento; prisão domiciliária, espancamentos e destruição de bens; detenções arbitrárias e outras medidas de privação da liberdade; ataques físicos e tortura; julgamentos injustos, etc. A intensidade de tais violações dos direitos humanos é medida quando relacionada com o dimensão da população saharaui que vive sob ocupação (entre 100.000 e 200.000 pessoas)
3
O INED estima a população do Sahara Ocidental em 626.000 habitantes em 2021. Como resultado da colonização massiva, os saharauis estão em minoria, e representam actualmente cerca de um terço da população na parte ocupada por Marrocos. Vários relatórios de ONG estimam o número de saharauis nos campos de refugiados perto de Tindouf em cerca de 175.000. A estes há que acrescentar os saharauis que vivem nos territórios controlados pela RASD (cerca de 20% do Sahara Ocidental), na Mauritânia e no exílio (Europa - principalmente Espanha; EUA, etc.).
.
Estas violações são ainda agravadas pelo muro marroquino no Sahara Ocidental, um dos mais longos do mundo, e paradoxalmente um dos menos visíveis nos principais meios de comunicação social. Divide o Sahara Ocidental, e o seu povo, em duas partes. Mais de 7 milhões de minas anti-pessoais, espalhadas ao longo da sua extensão, põem em risco a vida dos saharauis e dos seus rebanhos todos os dias.
Desde a Carta Aberta (Abril de 2018), dirigida a Emmanuel Macron, o apoio da França a esta usurpação colonial foi reforçado: instalação de uma delegação da Câmara de Comércio e Indústria francesa em Dakhla, na parte ilegalmente ocupada por Marrocos (1 de Março de 2019), estabelecimento através do Instituto de Investigação para o Desenvolvimento (IRD) de parcerias científicas marroquino-francesas abrangendo o Sahara Ocidental, abertura de uma delegação do partido presidencial, LREM [La République En Marche], também em Dakhla (8 de Abril de 2021). Hoje, enquanto a guerra grassa na Ucrânia e obriga os países europeus a repensar o seu aprovisionamento energético, o governo francês parece particularmente empenhado na sua aproximação à Argélia... Decerto que o Presidente francês se lembrará das observações que fez em Argel a 15 de Fevereiro de 2017: «Sim, a colonização é um crime contra a Humanidade».
Yazid Ben Hounet, CNRS, Laboratoire d’Anthropologie Sociale (CNRS-EHESS-Collège de France)
Sébastien Boulay, Université Paris Cité, Centre Population et Développement (UMR 196 Ceped)
«E varre-me todos os ocultadores, todos os inventores de subterfúgios, todos os charlatães mistificadores, todos os manipuladores de algaraviada. E não tentes descobrir se estes senhores estão pessoalmente de boa ou má-fé, se pessoalmente são bem ou mal intencionados, se pessoalmente, ou seja, na sua consciência íntima de Pedro ou Paulo, são colonialistas ou não, o principal é que a sua muito aleatória boa fé subjectiva não tem qualquer relação com o âmbito objectivo e social do mau trabalho que fazem como cães de guarda do colonialismo.» (Aimé Césaire, Discours sur le colonialisme, 1950).


 

CIMEIRA ÁRABE: «OPORTUNIDADE PERDIDA»?

(Boletim nº 115 - Dezembro 2022)

Reuniu em Argel, nos passados dias 1 e 2 de Novembro, a 31ª Cimeira da Liga Árabe, num momento em que os Estados que a compõem estão a atravessar várias divisões e conflitos, desde a causa palestiniana até à influência do Irão, à clivagem entre a Argélia e Marrocos ou aos conflitos armados no Iémen e na Líbia.

Relações conflituosas (foto DzairDaily)
A Liga Árabe, formada por 22 nações, reuniu pela última vez em Tunes em 2019, antes da crise sanitária e dos Acordos de Abraham, que levaram ao estabelecimento de relações diplomáticas dos Emiratos Árabes Unidos, Marrocos, Sudão e Bahrein com o Estado de Israel, considerado pela maioria dos países árabes como um "inimigo colonizador".
A agenda da Cimeira era vasta e ambiciosa, tanto do ponto de ponto de vista político como económico, com a questão da Palestina a ocupar um lugar central, para o que concorreu o acordo celebrado em 13 de Outubro em Argel entre 14 organizações da resistência palestiniana.
Marrocos tudo fez para diminuir o protagonismo dos organizadores argelinos. Inicialmente estava previsto que rei Mohamed VI chefiasse a delegação marroquina, apesar da crispação crescente entre estes países. A Argélia tinha cortado, em 24 de Agosto de 2021, as relações diplomáticas com Rabat invocando "actos hostis". Rabat — através do programa israelita Pegasus – espiou em mais de seis mil telefones argelinos, incluindo os de oficiais do exército de alta patente. Apesar disso a Argélia enviou um ministro a Rabat para entregar a Nasser Bourita, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, um convite dirigido ao rei para a Cimeira. Mas tal visita anunciada acabou por não se realizar. Nas vésperas do seu início o MNE argelino, Ramtane Lamamra, numa entrevista à cadeia saudita Al Haddath, esclareceu a situação:
«Fizemos um esforço para assegurar a participação de todos os dirigentes árabes. O povo argelino dá as boas-vindas a todos os nossos líderes. No que diz respeito ao Reino de Marrocos, (...) um enviado especial do Presidente da República deslocou-se a Rabat para fazer um convite oficial.
«O Reino de Marrocos participou nos preparativos para a cimeira com o seu embaixador e ministro dos negócios estrangeiros. Em relação ao que foi anunciado, acreditávamos que Sua Majestade o Rei Mohamed VI iria participar pessoalmente na cimeira. Fomos informados esta manhã [segunda-feira 31 de Outubro] que este não era o caso.»
De acordo com o jornalista Merouane Mokdad, «A agência oficial APS forneceu, na sexta-feira 4 de Novembro, pormenores sobre esta não comparência. De facto, a confirmação da participação do monarca marroquino na Cimeira Árabe em Argel foi notificada por nota verbal dirigida ao Ministério dos Negócios Estrangeiros argelino e foi confirmada através do canal da Liga Árabe. A parte marroquina tinha apresentado pedidos de sobrevoo e aterragem para 10 aviões para transportar o rei, o príncipe herdeiro e o resto da delegação real, de acordo com a mesma nota verbal", informou a APS.
«Nasser Bourita, ministro marroquino dos Negócios Estrangeiros, confirmou numa entrevista ao canal saudita Al Arabiya que Mohammed VI estava entre os primeiros dirigentes árabes a confirmar a sua participação na Cimeira em Argel. "Por considerações regionais e bilaterais, Sua Majestade o Rei informou a Liga Árabe da sua não-participação. Certas condições não foram satisfeitas. O rei deu instruções para uma participação construtiva na cimeira", disse ele sem fornecer mais pormenores. (…).
«De acordo com os meios de comunicação marroquinos, a delegação marroquina queixou-se de não ter sido recebida pelas autoridades argelinas "da mesma forma que as outras delegações árabes" no sábado 29 de Outubro de 2022 no aeroporto. Uma fonte diplomática argelina, citada pela agência APS, lamentou, no domingo 30 de Outubro, as declarações veiculadas pelos meios de comunicação marroquinos, atribuídas a uma fonte marroquina de alto nível sobre alegadas "violações diplomáticas" durante a recepção da delegação marroquina.»
Segundo Ramtane Lamamra, «O funcionário argelino que acolheu o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino de Marrocos no aeroporto é o mesmo que acolheu todos os outros Ministros dos Negócios Estrangeiros árabes à sua chegada.»
«Reagindo à ausência do rei Mohammed VI na cimeira de Argel, o ministro argelino dos Negócios Estrangeiros Ramtane Lamamra disse ao canal Al Haddath que Marrocos tinha "perdido uma oportunidade". "Penso que cabe aos historiadores julgar no futuro se houve uma oportunidade perdida para o Magrebe Árabe e para uma acção árabe conjunta. E se a resposta for "sim", quem assumirá a responsabilidade por esta oportunidade perdida?»

«Na cimeira de Argel, Nasser Bourita foi o único que não falou. Este silêncio não foi explicado por Rabat.» 

Mas se não falou na Cimeira não esteve, porém, calado. «Segundo a APS, Nasser Bourita tentou convencer o Secretário-geral da Liga Árabe, Ahmed Aboul Gheit, da presença de um representante da Frente POLISARIO entre os participantes na Cimeira Árabe. "Perante uma tal enormidade, que fez muitos participantes rir à socapa, o mesmo ministro admitiu finalmente (...) que a sua sagaz equipa se tinha enganado", disse a agência.
Recorde-se que a RASD (República Árabe Saharaui Democrática) não faz parte da Liga Àrabe.



domingo, 6 de novembro de 2022

FRENTE POLISARIO: DESAFIOS NUMA NOVA FASE DA LUTA

(Boletim nº 114 - Novembro 2022) 

A Frente POLISARIO prepara o seu XVI Congresso a realizar na wilaya de Dakhla, nos acampamentos de refugiados saharauis no sul da Argélia, entre 13 e 19 de Janeiro próximo. Irá ocorrer marcado pelo reinício da luta armada, em 2020, num contexto de crise sistémica que continua a agravar-se.

Anunciando o XVI Congresso (foto SPS)
Até agora o movimento de libertação realizou 15 congressos, dos quais dois extraordinários.
O primeiro decorreu em 28 de Abril de 1973 na localidade mauritana de Zueràt, ainda no tempo do domínio colonial de Madrid. Dele saiu uma declaração política analisando a situação e as razões que levaram o povo saharaui a recorrer às armas na luta contra a administração espanhola.
No 2º Congresso, realizado de 25 a 31 de Agosto de 1974, foi adoptado um programa de "acção nacional", apelando a todos, sem "discriminação" de género, raça ou posição social, a que se unissem em torno da Frente POLISARIO como o único e legítimo representante do povo saharaui. Foram também aprovadas as cores da bandeira e o hino nacional.
O 3º Congresso realizou-se entre 26 e 30 de Agosto de 1976, já depois da invasão marroquina e da proclamação unilateral, em 27 de Fevereiro desse ano, da República Árabe Saharaui Democrática (RASD). «Este Congresso apelou à luta do povo marroquino e mauritano contra os seus regimes e não contra um povo irmão e vizinho como o saharaui. (…).» Recordemos que entre 1974 e 1976 foram presos pelas forças de segurança de Rabat várias centenas de cidadãos marroquinos, dos quais 178 foram julgados em Janeiro de 1977, acusados de «atentado à segurança do Estado; conspiração para derrubar o regime; constituição de associações clandestinas com o fim derrubar o regime». E, ao mesmo tempo, «pelo seu [dos acusados] apoio ao princípio de autodeterminação do Sahara, afirmado antes e durante o processo», o que era considerado pelas autoridades «como uma ameaça à segurança externa do Estado, uma traição à nação marroquina.»
1
ALI, Karim, «Le Procès de Casablanca», Les Temps Modernes, nº 369, Avril 1977.
«Estes primeiros Congressos serviram para dirigir a guerra, organizar militarmente a POLISARIO, construir as infra-estruturas dos acampamentos e consolidar a Frente POLISARIO como a organização representativa do povo saharaui.»
A partir da assinatura do acordo de cessar-fogo em 1991 e da criação da MINURSO (Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental), a afirmação da RASD na comunidade das nações foi um tema central de debate nos congressos. «Se os primeiros Congressos se concentraram nos objectivos da guerra de libertação e na consolidação da POLISARIO, as reuniões subsequentes da organização centraram-se na consolidação do Estado saharaui e no seu lugar no continente. Nestes anos, os esforços da organização visavam obter um novo reconhecimento do Estado saharaui, alargando o círculo de relações diplomáticas de modo a abranger todos os continentes.»
Entretanto, coincidindo com a preparação do XVI Congresso e dando cumprimento a decisões do Congresso anterior de Dezembro de 2019, «O presidente saharaui ordena a reabilitação e reintegração de quadros e militantes que foram afectados no passado em consequência de "erros e abusos" (…). Esta é uma decisão histórica, que vem reparar a honra e os danos sofridos por algumas pessoas como resultado de enganos, erros e confrontos típicos de uma fase complicada da luta do povo saharaui. (…). Esta era uma decisão necessária e há muito esperada pela sociedade saharaui, uma vez que não só desagrava a honra das vítimas e das pessoas atingidas, mas também ajuda a curar as feridas e as diferenças entre sectores da sociedade saharaui. (…).»
Antecedendo esta decisão, o El Confidencial Saharaui publicou um artigo de opinião assinado por Mohamed Salem Abdelhay sobre «a necessária renovação geracional» da direcção do movimento de libertação. Mas alerta: «dadas as actuais circunstâncias políticas, que apontam para uma conspiração para impor a autonomia marroquina no nosso território, não estamos em posição de nos entregar a lutas internas enquanto travamos uma guerra total contra o nosso inimigo comum.»
E Abdelhay conclui: «Mudar a situação começa por mudar as mentes daqueles que foram atingidos pela doença do engano compulsivo, da grandeza e da ostentação, do sentimento de superioridade por razões hierárquicas ou tribais, e cada um de nós deve pensar e agir como um cidadão de um país ocupado militarmente e não como um espectador.»

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

ONU: DA POBREZA DO DISCURSO E RESPECTIVA PRÁTICA

(Boletim nº 114 - Novembro 2022)

No passado dia 3 de Outubro o Secretário-geral das Nações Unidas apresentou o seu relatório sobre a questão do Sahara Ocidental que «abrange os desenvolvimentos ocorridos desde a emissão do meu relatório anterior de 1 de Outubro de 2021 (S/2021/843) e descreve a situação no terreno, o estado das negociações políticas sobre o Sahara Ocidental, a implementação da Resolução 2602 (2021) e os desafios existentes para as operações da Missão e medidas tomadas para lhes fazer face.»

Descolonização ou ”desentendimento regional”?
Apresentado anualmente ao Conselho de Segurança, baliza a resolução que assegura o prolongamento do mandato da MINURSO — Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental – e o conteúdo do mandato do Representante Pessoal do Secretário-geral para o Sahara Ocidental, que dirige o processo negocial. Da sua leitura, sublinhamos a demissão das Nações Unidas na defesa dos seus próprios princípios.
Dias depois de ter sido aprovada uma moção na Comissão Especial de Políticas e Descolonização da Assembleia Geral das Nações Unidas (conhecida como Quarta Comissão), na qual se reconhece o Sahara Ocidental como um território não autónomo, pendente de descolonização, o relatório do Secretário-geral mantém a tendência que se tem vindo a afirmar no âmbito do Conselho de Segurança da ONU de apresentar o conflito não como uma questão de descolonização mas como um desentendimento regional do qual se exige das partes “boa-fé” e “bom senso”. O compromisso assumido pelas Nações Unidas de proceder a uma consulta à população saharaui – tal como o exige a sua própria Carta e resoluções e consubstanciado na criação da MINURSO — tem vindo a ser substituído por uma linguagem que abre a porta ao esquecimento deste compromisso. «[§90] Apesar deste contexto desafiador, continua a ser minha convicção que uma solução política para a questão do Sahara Ocidental é possível, desde que todos os interessados se empenhem de boa-fé e haja um apoio contínuo da comunidade internacional. As Nações Unidas continuam disponíveis para reunir todos os interessados na questão do Sahara Ocidental na procura de uma solução pacífica.» A ONU aparece como uma entidade benemérita que ajuda os desentendidos a entenderem-se. Como se não houvesse direito internacional e não competisse às Nações Unidas zelar pelo seu cumprimento. Como se não houvesse um território ocupado e um poder ocupante.
Neste quadro, actos ilegais de Marrocos são por vezes apontados mas nunca condenados, nem mesmo questionados, normalizando-os e branqueando as respectivas responsabilidades.
Alguns exemplos: «[§10] A 8 de Setembro de 2021 realizaram-se em Marrocos eleições legislativas, a nível regional e comunal e na parte do Sahara Ocidental sob controlo marroquino. Numa carta que me foi dirigida em 13 de Setembro, o Representante Permanente de Marrocos referiu-se às taxas de participação dos eleitores no Sahara Ocidental como "uma nova confirmação, através das urnas, do compromisso inabalável dos cidadãos das províncias do sul à sua marroquinidade".» A realização de eleições por parte do poder ocupante num território ocupado não é legítimo. Muito menos a aceitação deste tipo de argumentação que, aliás, nos poderia fazer perguntar: se as autoridades marroquinas estão tão seguras do resultado da votação, porque não aceitam o referendo?
«[§67] A exigência de Marrocos de que a MINURSO utilize matrículas de veículo marroquinas a oeste do muro de separação [isto é, na parte ocupada por Rabat], em contravenção do acordo de estatuto-de-missão, juntamente com a carimbagem dos passaportes MINURSO por Marrocos, também continuou a afectar a percepção da população local sobre a imparcialidade da Missão.
«Em Março de 2014, o meu Representante Especial chegou a um acordo verbal com o Governo de Marrocos para a substituição gradual das placas de matrícula marroquinas por matrículas das Nações Unidas (S/2014/258, §50). Esse acordo ainda não foi implementado.» Ao fim de oito anos, tudo o que a ONU tem para dizer é simplesmente reconhecer o facto?
Um dos maiores escândalos da actuação de Rabat é o sistemático fecho do território do Sahara Ocidental a todas as entidades e pessoas que não apoiam incondicionalmente a sua política de ocupação. Começando pelas próprias Nações Unidas:
«[§27] (...), o meu Enviado Pessoal tinha comunicado às autoridades marroquinas a sua intenção de visitar o Sahara Ocidental. Também assinalou publicamente esta intenção antes da sua viagem, observando que seria guiado pelo formato das visitas empreendidas pelos seus antecessores. Durante as consultas com as autoridades marroquinas sobre o planeamento da sua proposta de visita ao Sahara Ocidental, o meu Enviado Pessoal foi informado da posição do Governo de Marrocos de que não lhe seria possível encontrar-se com representantes da sociedade civil e organizações de mulheres por ocasião desta primeira visita. À luz dos princípios das Nações Unidas, em particular a importância da participação igualitária das mulheres e do seu pleno envolvimento em todos os esforços para a manutenção e promoção da paz e da segurança, e considerando também a importância do envolvimento com organizações da sociedade civil, o meu Enviado Pessoal decidiu não prosseguir com uma visita ao Sahara Ocidental durante a viagem, mas declarou que esperava fazê-lo durante as suas próximas visitas à região".»
«[§77] O Gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OHCHR) não pôde realizar quaisquer visitas ao Sahara Ocidental pelo sétimo ano consecutivo apesar de múltiplos pedidos e apesar do Conselho de Segurança na sua resolução 2602 (2021), encorajar fortemente o reforço da cooperação. A falta de informação em primeira-mão foi prejudicial para uma avaliação global dos direitos humanos na região. Além disso, defensores dos direitos humanos internacionais, investigadores, advogados e observadores foram alegadamente expulsos ou impedidos de entrar no Sahara Ocidental.»
Em 14 de Outubro o Secretário-geral da Frente POLISARIO Brahim Ghali escreveu a António Guterres dando-lhe conta da sua leitura do relatório apresentado, onde lhe chama a atenção para a parcialidade do mesmo, apontando exemplos concretos que justificam a sua crítica e a sua preocupação.
Como escreve Lehbib Abdelhay, «a única conclusão que se pode tirar do relatório do SG da ONU sobre o Sahara Ocidental é que ele dá aos saharauis motivos para prosseguirem a luta armada como única opção para alcançar os seus direitos e desconfiarem da ONU até que esta demonstre de novo a sua adesão às suas próprias resoluções sobre a questão da descolonização da última colónia africana.»

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

ONU: PROCESSO NEGOCIAL A “MARCAR PASSO”

(Boletim nº 113, Outubro 2022)

Nos princípios do passado mês de Setembro o Enviado Pessoal do Secretário-geral das Nações Unidas para a questão do Sahara Ocidental, Staffan de Mistura, iniciou uma nova ronda pela região do Magrebe. Sem resultados visíveis.

Devagar vai-se longe?

Recorde-se que em 2 de Julho De Mistura esteve em Rabat, onde o Ministro dos Negócios Estrangeiros marroquino Nasser Bourita o fez esperar durante horas antes de o receber. Tinha previsto visitar posteriormente o Sahara Ocidental ocupado. Porém, a visita foi cancelada no último minuto sem terem sido dadas razões oficiais para tal decisão.
Em finais desse mês o embaixador argelino Amar Belani, encarregado do acompanhamento da questão do Sahara e dos países do Magrebe, informou que Marrocos tinha tentado impor interlocutores “fantoche” nessa sua visita, levando o Enviado Pessoal a anular a deslocação. «As razões são óbvias e bem conhecidas», disse Belani. «Depois de terem sido muito relutantes em organizar esta visita aos territórios saharauis ocupados, as autoridades marroquinas quiseram impor interlocutores fantoches ao Sr. De Mistura, incluindo colonos disfarçados de "representantes eleitos" ou de organizações vassalas e satélites (…)». A decisão de De Mistura de adiar esta viagem, «em condições tão inaceitáveis e ofensivas, honra-o com razão e irá inevitavelmente exercer pressão sobre Marrocos, que é assim apanhado no acto de sabotar os esforços do enviado pessoal do SG da ONU», acrescentou Belani.
De Mistura iniciou no dia 3 de Setembro a sua segunda ronda pela região no quadro das «consultas com as partes interessadas» com o objectivo de alcançar uma solução para a questão saharaui, preparatória da sua intervenção na próxima reunião do Conselho de Segurança a ter lugar este mês Outubro. Desta vez, porém, a Argélia vetou o recurso à Força Aérea de Espanha para a deslocação do Enviado Pessoal, como tem sido habitual com todos os emissários da ONU, tendo este recorrido a um voo da Air Algérie. O argumento invocado por Argel é que Madrid, ao aderir ao plano de autonomia marroquino, tinha perdido idoneidade. «Porque adoptou uma posição parcial» sobre o conflito, «a Espanha foi desqualificada e não pode de forma alguma ser associada aos esforços para reactivar o processo político» na procura de uma solução, disse um alto funcionário governamental argelino.
A primeira paragem foi nos acampamentos de refugiados . Aí reuniu, «durante o primeiro dia, com a delegação saharaui responsável pelas negociações, composta pelo ministro da Cooperação, Fatma al-Mahdi e o representante da Frente POLISARIO na ONU, Sidi Mohamed Omar, e chefiada pelo chefe do Secretariado da organização política da Frente POLISARIO, Khatri Addouh, antes de realizar uma reunião individual com o Chefe do Estado-Maior, Mohamed Elouali Akeik.»
Reuniu também com representantes das organizações da juventude e responsáveis da União Nacional das Mulheres Saharauis, da qual fazia parte a sua Secretária-geral Chaba Seini. «Uma oportunidade para realçar a realidade vivida pelas mulheres saharauis, em particular a repressão e os abusos a que estão sujeitas nos territórios ocupados por Marrocos, bem como o seu papel na luta pela liberdade e autodeterminação.»
No segundo dia da sua estadia reuniu com o Secretário-geral da Frente POLISARIO e presidente da RASD, Brahim Ghali, assim como com membros do Conselho Nacional (o parlamento saharaui) e do Conselho Consultivo.
De Mistura viajou depois para Argel onde se encontrou com o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Ramtane Lamamra. O breve comunicado de imprensa do Ministério argelino emitido no final desta reunião exclui a participação da Argélia em qualquer tipo de negociações. Argel defende um diálogo directo entre as duas partes em conflito, a Frente POLISARIO e Marrocos, como, aliás, Lamamra repetiria na Assembleia Geral das Nações Unidas onde pediu «à ONU que apoiasse o Enviado Pessoal do Secretário-geral para o Sahara Ocidental para que as duas partes em conflito, Marrocos e a Frente POLISARIO, retomem as negociações directas a fim de chegarem a uma solução política "mutuamente aceitável" que garanta a autodeterminação do povo saharaui de acordo com os princípios e objectivos da Carta das Nações Unidas.»
De Mistura terminaria o seu périplo em Nuakchott, a capital da Mauritânia, onde se encontrou com o seu presidente, Mohamed Ould Ghazouani. No final da reunião não prestou declarações à comunicação social mas segundo a agência noticiosa EFE, citando uma fonte diplomática mauritana, «as discussões centraram-se nos resultados das visitas do enviado da ONU à região e no papel de Nuakchott na facilitação de uma solução para o conflito. Na reunião, Nuakchott reiterou a sua posição "neutra" sobre o assunto.»
Em finais de Outubro o Secretário-geral das Nações Unidas, depois de ouvir o seu Enviado Pessoal, apresentará ao Conselho de Segurança o seu relatório semestral sobre o processo de descolonização do Sahara Ocidental.


 

ÁFRICA: COLONIALISMO FRANCÊS CONTINUA VIVO

 (Boletim nº 113 - Outubro 2022)

O apoio que a França tem dado à ilegal ocupação marroquina do Sahara Ocidental não é uma excepção na sua política externa para África. Tanto assim que há observadores que a catalogam como “colonização 2.0”.

«A sul nada de novo» (foto Public Sénat)

Um destes observadores é Vava Tampa, um articulista centrado na análise da região dos Grandes Lagos Africanos, da descolonização e da cultura. Em 26 de Julho o The Guardian publicou um artigo seu com o expressivo título: «A Françafrique está de volta: A visita de Macron aos Camarões assinala a Colonização 2.0», onde aborda o que tem sido a política francesa em África pós-1945 e as suas consequências para as populações africanas.
«Quando o presidente francês, Emmanuel Macron, desembarcou em Yaoundé, Camarões, na segunda-feira [25 Julho] para uma visita de dois dias, os líderes fantoches franceses em toda a África tiveram uma coisa garantida: a Françafrique está de volta. A questão é o que isto significa para o futuro de milhões [dos seus habitantes].
«A resposta - e o legado de Macron - é mais repressão, mais golpes de Estado, mais corrupção, mais violência, mais sofrimento e, em última análise, mais refugiados e migrantes a fazerem viagens perigosas para a Europa em busca de segurança. Significará também uma maior incursão da Rússia e da China, que realçam os crimes coloniais europeus, mesmo quando aumentam a sua própria influência.
«Nascido após a independência das antigas colónias francesas em África, Macron apresenta-se como a antítese da Françafrique - a doutrina que dita os termos da governação nas antigas colónias francesas, pela força militar se necessário - ou, como eu a vejo, a Colonização 2.0.
«Em vez de o abolir, Macron reformou o franco colonial CFA - originalmente franc des colonies françaises d’Afrique - uma moeda ainda impressa em França e utilizada por 14 países africanos. (…).
«Nenhuma justificação para a visita de Macron pode apagar o facto de Paris continuar a ser a base da Françafrique e das suas marionetas - como Alassane Ouattara, na Costa do Marfim; Ali Bongo Ondimba, no Gabão; Faure Gnassingbé, no Togo; Gen Mahamat Déby, no Chade; Denis Sassou Nguesso, no Congo-Brazzaville; bem como Biya [nos Camarões] - que a França abriga sob o seu guarda-chuva diplomático e de segurança, apesar dos abusos grosseiros dos direitos humanos, corrupção e fraude eleitoral que empobreceram os seus países. (…).
«Macron, obviamente, sabe tudo isto, mas parece que o que mais importa ainda é a Françafrique
Dois académicos - Anis Chowdhury e Jomo Kwame Sundaram – publicaram por sua vez um artigo com o sugestivo título «Como a França subdesenvolve a África». Escreveram eles:
«Os acordos monetários coloniais anteriores à Segunda Guerra Mundial foram consolidados na zona do franco das Colonies Françaises d'Afrique (CFA), criada a 26 de Dezembro de 1945. A descolonização tornou-se inevitável após a derrota da França em Dien Bien Phu em 1954 e a retirada da Argélia menos de uma década depois.
«A França insistiu em que a descolonização deve envolver "interdependência" - presumivelmente assimétrica, em vez de entre iguais - não uma verdadeira "soberania". Para que as colónias conseguissem a 'independência', a França exigia a adesão à Communauté Française d'Afrique (ainda CFA) - criada em 1958, substituindo “colónias” por “Communauté”. (…).»
«A Guiné-Conacri foi a primeira a deixar a CFA em 1960. Perante compatriotas seus, o Presidente Sékou Touré disse ao Presidente Charles de Gaulle: "Preferimos a pobreza na liberdade à riqueza na escravatura".
«A Guiné enfrentou logo a seguir os esforços franceses de desestabilização. Notas falsas foram impressas e distribuídas para utilização na Guiné-Conacri - com consequências previsíveis. Esta fraude maciça deu cabo da economia guineense. (…).
«O ex-chefe do Service de Documentation Extérieure et de Contre-espionnage (SDECE) Maurice Robert reconheceu mais tarde que "a França lançou uma série de operações armadas utilizando mercenários locais, com o objectivo de desenvolver um clima de insegurança e, se possível, derrubar Sékou Touré". (…).
«O presidente Sylvanus Olympio, dirigente do Togo independente, foi assassinado em frente à embaixada dos EUA a 13 de Janeiro de 1963. Isto aconteceu um mês depois de ter estabelecido um Banco Central, emitindo o franco togolês como moeda com curso legal. Evidentemente, o Togo permaneceu na CFA.
«O Mali deixou a CFA em 1962, substituindo o franco CFA pelo franco maliano. Mas um golpe em 1968 afastou o seu primeiro presidente, o dirigente radical da independência Modibo Keita. Sem surpresas, o Mali voltou mais tarde a integrar a CFA, em 1984.»
Ndongo Samba Sylla é um economista senegalês de desenvolvimento e investigador no Gabinete da África Ocidental da Fundação Rosa Luxemburgo. Em Março do ano passado apresentou um texto sobre «O franco CFA como símbolo vivo das continuidades coloniais na África francófona».
«(…). A persistência de relações monetárias e financeiras neo-coloniais não favoreceu nem a transformação estrutural nem a integração regional, e fez ainda menos pelo desenvolvimento económico dos países CFA, nove dos quais, em 14, se encontram entre os Países Menos Desenvolvidos. Em termos de realizações nos domínios da saúde e da educação, os países que utilizam o franco CFA ocupam as posições mais baixas a nível mundial. Entre um total de 189 países, o Níger, a República Centro-Africana e o Chade tiveram a pontuação mais baixa no Índice de Desenvolvimento Humano de 2020. Numa perspectiva de longo prazo, os rendimentos reais médios estagnaram ou diminuíram em cinco das maiores economias que utilizam o franco CFA: Costa do Marfim, Camarões, Gabão, Senegal e República do Congo. (…). Por outras palavras, a existência do franco CFA favorece um tipo particular de liderança política. Aqueles que podem ambicionar dirigir os países CFA são aqueles que não porão em causa as suas limitações. São estes dirigentes que gozaram da solidariedade activa e do apoio do governo francês nas últimas seis décadas. (…).
«Face aos protestos crescentes contra esta relíquia colonial conduzidos por movimentos sociais e intelectuais pan-africanistas, a França, em aliança com a Costa do Marfim, decidiu em Dezembro de 2019 suavizar a sua posição sobre o franco CFA na África Ocidental. Tal como nas anteriores reformas, a actual tem um alcance muito limitado. A sua intenção é atacar os símbolos embaraçosos - o nome da moeda, a representação francesa no seio do Banco Central dos Estados da África Ocidental e o controlo do Tesouro francês sobre as reservas cambiais deste último - ignorando ao mesmo tempo os pontos que os economistas africanos criticam: a existência de uma ligação formal de subordinação monetária entre a França e os países CFA, a paridade fixa com o euro, a [não] liberdade de transferências, e também a existência de duas uniões monetárias [UEMOA - Union économique et monétaire ouest-africaine e CEMAC - Communauté économique et monétaire de l'Afrique centrale] que não têm outro fundamento que não seja a história colonial.»


 

RESPEITAR OU OBSTACULIZAR O DIREITO INTERNACIONAL, EIS A QUESTÃO

(Boletim nº 113, Outubro 2022)

Enquanto a guerra prossegue no Sahara Ocidental ao longo do “muro da vergonha”, e o processo de reatamento das negociações sob os auspícios da ONU se revela, mais uma vez, difícil, as diplomacias de ambas as partes – Marrocos e a Frente POLISARIO — mantêm-se extremamente activas. A conjuntura internacional também o propicia.

Gustavo Petro com, à sua direita, Mohamed Salek

A 22 de Setembro o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos emitiu uma sentença na qual lembra que «a noção de autodeterminação tem uma forte ressonância em África e reveste um significado particular e profundo para o seu povo. A colonização, o apartheid, a ocupação militar e as diversas formas de opressão estrangeira das quais o continente foi vítima moldaram a identidade e a história africanas como sendo intrinseca e inextricavelmente ligadas à luta pela autodeterminação.» (§ 290). E faz notar que a Carta da União Africana (UA) «consagra, além disso, explicitamente, o direito dos povos colonizados ou oprimidos a libertarem-se dos laços de dominação e o direito à assistência dos Estados-partes na sua luta pela liberdade.» (§ 295).
«(…) o Tribunal observa que a ONU e a UA reconhecem a situação da RASD como uma situação de ocupação e consideram o seu território como um dos territórios cujo processo de descolonização ainda não está totalmente concluído. Por conseguinte, ambas as organizações têm apelado consistentemente a Marrocos e à RASD para que se empenhem de boa-fé em negociações directas, com vista à realização de um referendo para garantir o direito à autodeterminação do povo saharaui.» (§301).
«O Tribunal sublinha que a ocupação continuada da RASD por Marrocos é incompatível com o direito à autodeterminação do povo da RASD, tal como consagrado no artigo 20 da Carta, e constitui uma violação desse direito.» (§303). «O Tribunal observa que tendo em conta que uma parte do território da RASD continua ocupado por Marrocos, é incontestável que os Estados que são partes da Carta têm individual e coletivamente uma obrigação para com o povo da RASD, a de proteger o seu direito à autodeterminação, em particular prestando-lhe assistência na sua luta pela liberdade, abster-se de qualquer tipo de reconhecimento da ocupação marroquina e denunciar a violação dos direitos humanos que possam resultar desta ocupação.» (§307).
«O Tribunal reitera (…) que todos os Estados-partes da Carta e do Protocolo, bem como todos os Estados-membros da União Africana, têm a responsabilidade, nos termos do direito internacional, de encontrar uma solução permanente para a ocupação, de garantir o usufruto do direito inalienável do povo saharaui à autodeterminação, e de não fazer nada que possa reconhecer essa ocupação como legal ou obstaculizar o usufruto desse direito.» (§323).
O veredicto foi resultado de uma queixa interposta por um cidadão do Gana, representado por um conhecido advogado nigeriano, Femi Falana, contra oito países – Benim, Burkina Faso, Costa do Marfim, Gana, Mali, Malawi, Tanzânia e Tunísia – pelo facto de não terem cumprido com os seus deveres de proteger os direitos políticos, económicos, sociais e culturais do povo saharaui estipulados na Carta Constitutiva da União Africana, na Carta Africana dos Direitos Humanos e noutros textos legais, incluindo os dois pactos internacionais dos Direitos Humanos. Embora estes Estados não tenham sido condenados, em resposta aos termos em que foi apresentada a queixa, o Tribunal tornou inequívoco o direito à autodeterminação do povo do Sahara Ocidental e as obrigações daí decorrentes para todos os Estados-membros da UA.

Dois pesos, duas medidas

Os êxitos diplomáticos de cada parte do conflito têm-se medido através de alguns actos concretos: o reconhecimento ou o restabelecimento de relações entre a RASD e outros Estados e a reafirmação jurídica do direito do povo saharaui à autodeterminação, por um lado; a abertura de consulados no território ocupado e declarações de apoio à proposta de autonomia no quadro da soberania marroquina, por outro.
Ao longo dos anos, fruto das pressões e das ofertas marroquinas, vários países suspenderam o reconhecimento ou recusaram continuar a reconhecer a RASD. Alguns abriram consulados em El Aiun (capital do Sahara Ocidental) ou Dakhla (cidade portuária importante), embora não tenham cidadãs e cidadãos, nem empresas, que o justifiquem: é um agradecimento à potência ocupante pelos benefícios recebidos. Estão neste caso as Comores (2019); o Bahrein, o Burkina Faso, o Burundi, a Costa do Marfim, Djibuti, os Emirados Árabes Unidos, Essuaitíni, o Gabão, a Gâmbia, a Guiné-Bissau, a Guiné-Conacri, a Guiné Equatorial, o Haiti, a Libéria, a República Centro-africana, a República Democrática do Congo, São Tomé e Príncipe, a Zâmbia (2020); a Jordânia, o Malawi, o Senegal, a Serra Leoa, o Suriname (2021); o Togo e Cabo Verde foram os mais recentes (2022).
De acordo com a sentença do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, acima mencionada, estes países (maioritariamente africanos) estão activamente a «obstaculizar [o] direito [à autodeterminação]» do povo saharaui.
Os EUA e a Espanha não constam desta lista. Donald Trump reconheceu através de um tweet, em Dezembro de 2020, já depois de perder as eleições, a soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental – declaração que não foi negada até agora pela administração Biden – mas nenhum dos planos subsequentes teve seguimento, nomeadamente o de abrir um consulado em Dakhla. Pelo contrário, o Senado norte-americano aprovou em Agosto passado uma proposta de orçamento para o ano fiscal de 2023 na qual recusa explicitamente qualquer financiamento para a construção ou funcionamento de um consulado.
A Espanha protagonizou até agora a maior cedência política à chantagem de Rabat, ao considerar oficialmente em Março que o plano de autonomia proposto pelo Reino de Marrocos em 2007 representa a proposta «mais séria, realista e credível» para a resolução da questão saharaui e, mais grave, que este posicionamento serve «para garantir a estabilidade, soberania, integridade territorial e prosperidade dos nossos dois países» (como se sabe, a “integridade territorial” de Marrocos significa, para este país, o reconhecimento da sua soberania sobre o território não-autónomo do Sahara Ocidental). Mas na Assembleia Geral da ONU, em Setembro, o Presidente do governo Pedro Sánchez limitou-se a sinalizar que o seu país «apoia uma solução política mutuamente aceitável», regressando à retórica mínima habitual.
É que não é fácil negar claramente o Direito Internacional, não só quando se sucedem sentenças que reforçam inequivocamente o estatuto do Sahara Ocidental como território sem qualquer vínculo com Marrocos, por isso não-autónomo e pendente de um processo de descolonização (Tribunal de Justiça da UE, em 2021; Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, em 2022), mas para mais quando, a propósito da invasão russa da Ucrânia, se somam as declarações veementes a favor do direito à autodeterminação dos povos e contra a aquisição de territórios pela força…
Talvez tenha sido por isso que o Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, Josep Borrell, declarou a 23 de Agosto numa entrevista à televisão espanhola (RTVE): «A posição do Governo espanhol foi e é a da UE, ou seja, defender a realização de uma consulta para que seja o povo saharaui a decidir como quer que seja o seu futuro». O MNE marroquino, Naser Bourita, discutiu directamente com Borrell, de tal modo que ele teve de dar uma nova entrevista (à agência EFE), no dia seguinte, mas não conseguiu dizer mais do que reafirmar que a solução para o problema do Sahara Ocidental «passa por uma solução negociada entre as partes», «no âmbito das Nações Unidas». Irritado, o ministro Bourita desmarcou um encontro já agendado para Setembro com o Alto Representante da UE.
Na mesma semana, Rabat tentou tirar partido da visita da MNE alemã, Annalena Baerbock, a Marrocos. Lentamente, as relações entre os dois países, praticamente suspensas desde Março de 2021 por súbita iniciativa marroquina, foram sendo retomadas. Agora, uma declaração conjunta publicada no final da visita (26 Agosto), indicou que «A Alemanha considera o plano de autonomia apresentado em 2007 como um esforço sério e credível de Marrocos e como uma boa base para uma solução aceite pelas duas partes». No entanto, estamos longe da fórmula de Sánchez: a proposta «mais séria, realista e credível» (ou, seja a única).
Pelo facto da divulgação desta posição ter coincidido com a visita de estado do Presidente francês, Emmanuel Macron, à Argélia (25-27 Agosto) com, entre outras coisas, a questão do gás em cima da mesa, ela acabou por não ter internacionalmente o relevo desejado.

A luta continua!

A República Árabe Saharaui Democrática, proclamada unilateralmente pela Frente POLISARIO a 27 de Fevereiro de 1976, foi posteriormente reconhecida por 84 países e em 1984 a RASD tornou-se membro de pleno direito da Organização de Unidade Africana (OUA). Essa circunstância levou Marrocos, em protesto, a pedir de imediato a sua demissão da organização continental, à qual voluntariamente regressou em 2017 – nesse momento já transformada em União Africana (UA) — em reconhecimento implícito do fracasso da estratégia anterior.
No último mês, o Presidente da RASD e Secretário-geral da FPOLISARIO, Brahim Ghali, foi convidado para participar em três eventos importantes: a 8ª Conferência Internacional de Tóquio sobre o Desenvolvimento Africano (TICAD), que junta os membros da UA, o Japão e algumas organizações internacionais (Tunes, 27 e 28 de Agosto); a tomada de posse do Presidente do Quénia, William Ruto (Nairobi, 13 de Setembro); e a tomada de posse do Presidente de Angola, João Lourenço (Luanda, 15 de Setembro). Foi sempre recebido com honras de Chefe de Estado, como todos os seus colegas da UA.
Marrocos reagiu intempestivamente: na véspera da TICAD8 divulgou um comunicado em que anuncia que se retira da Conferência e chama o seu embaixador na Tunísia para consultas. O governo anfitrião tomou a medida recíproca, explicitando: «Tal como a Tunísia respeita as resoluções das Nações Unidas, também está vinculada pelas resoluções da União Africana, da qual o nosso país é um dos fundadores.» De relações cortadas com a Argélia, ameaçando regularmente a Mauritânia, Rabat amplia o seu isolamento na região ...
Em Nairobi, o MNE marroquino foi recebido no dia 14 pelo novo Presidente, que logo publicou no twitter: «Na Residência Oficial em Nairobi, recebida uma mensagem de parabéns de Sua Majestade o Rei Mohamed VI. O Quénia rescinde o seu reconhecimento da RASD e dá os primeiros passos para reduzir a presença da entidade no país». Horas depois a declaração foi apagada, mas, entretanto, o Ministério dos Negócios Estrangeiros marroquino tinha divulgado um comunicado oficial: «No seguimento da mensagem de Sua Majestade o Rei Mohamed VI ao novo Presidente da República do Quénia, Senhor William Ruto, a República do Quénia decidiu revogar o reconhecimento da chamada ‘RASD’ e dar os primeiros passos para fechar a sua representação em Nairobi». E acrescentava que tinha sido assinada uma declaração conjunta na qual «por deferência ao princípio da integridade territorial e da não-ingerência, a República do Quénia [tinha dado] o apoio total ao plano de autonomia sério e credível proposto pelo Reino de Marrocos» como a única solução possível para a questão do Sahara.
Para além da surpresa, as reações internas não se fizeram esperar, vindas de vários quadrantes. Cinco dias depois, o Ministério dos Negócios Estrangeiros queniano publicou, por sua vez, um comunicado, datado do dia 16: «A posição do Quénia sobre a RASD está totalmente alinhada com a Carta da UA que apela ao direito inquestionável e inalienável de um povo à autodeterminação. (…). A Resolução 690 (1991) do Conselho de Segurança da ONU apela à autodeterminação do Sahara Ocidental através de um referendo livre e justo organizado pela ONU e pela UA. O Quénia apoia à letra a implementação desta Resolução do Conselho de Segurança da ONU». E esclarece ainda: «Faz-se igualmente notar que o Quénia não conduz a sua política externa no Twitter ou em quaisquer outras plataformas sociais, mas sim através de documentos e funcionários governamentais».
Um caso com contornos semelhantes tinha acontecido no início de Agosto no Perú. O Presidente Pedro Castillo empossou no dia 5 um novo MNE, Miguel Rodriguez, a quem o ministro marroquino dos Negócios Estrangeiros telefonou, dois dias depois. De imediato ele cancelou o reconhecimento da RASD, celebrado um ano antes. A oposição protestou veementemente e exigiu a sua demissão. Um mês depois, o Presidente aceitou a carta de renúncia do ministro, reafirmou o respeito pelo direito à autodeterminação do povo saharaui e o reconhecimento da RASD, e voltou a chamar César Landa, o anterior MNE, para preencher o cargo.
Tranquila foi a cerimónia na qual, a 8 de Agosto, dia seguinte à histórica tomada de posse de Gustavo Petro como Presidente da Colômbia, este, ao lado do MNE saharaui, Mohamed Salem Ould Salek, confirmou o reconhecimento da RASD pelo seu governo.
Também o Sudão do Sul retomou as relações diplomáticas com a República Árabe Saharaui Democrática, em encontro entre as autoridades dos dois governos, à margem da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, no dia 20 de Setembro. Mas logo à embaixada do país em Rabat foi exigido um esclarecimento sobre o significado de tal reunião. O porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Sudão do Sul assinala então em comunicado que «o encontro entre a nossa delegação [chefiada pelo Vice-Presidente do país] e o Ministro dos Negócios Estrangeiros Saharaui não nega as nossas relações estratégicas bilaterais com o Reino [de Marrocos]. Além disso, a República do Sudão do Sul é um membro da União Africana e das Nações Unidas e gostaria de reiterar que não considera adequado ter opiniões contrárias à posição da União Africana e à resolução 690 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, como um quadro de compromisso viável que permita encontrar uma solução duradoura para a disputa relativa ao Sahara Ocidental». A explicação não deve ter sido suficiente, porque no dia seguinte o MNE sudanês, Mayiik Ayii Deng, escreveu ao seu homólogo marroquino, retomando integralmente os dois parágrafos acima citados, mas acrescentando outros dois: «Neste contexto, a República do Sudão do Sul, que apenas reconhece Estados que são membros da ONU, considera que um contacto com uma delegação não significa de nenhuma forma um reconhecimento estatal. Esperando sinceramente que esta explicação seja satisfatória para permitir que os dois países amigos continuem a reforçar as suas cordiais relações diplomáticas (...)».
Neste momento, em África, a RASD tem relações diplomáticas, a nível de embaixada, com a África do Sul, Angola, Argélia, Botsuana, Etiópia, Moçambique, Nigéria, Quénia, Tanzânia, Uganda e Zimbabué e é reconhecida ainda pelo Chade, Gana, Lesoto, Líbia, Mali, Maurício, Mauritânia, Namíbia, Ruanda, Seicheles e Sudão do Sul.
No quadro da CPLP, dos seus nove membros, três reconhecem a RASD e acolhem os seus embaixadores: para além de Angola e Moçambique, também Timor-Leste.
Nas Américas, há embaixadas da RASD em Cuba, Equador, México, Nicarágua, Panamá, Uruguai e Venezuela, e o Estado saharaui é também reconhecido pelo Belize, Bolívia, Colômbia, Honduras, Peru e Trinidad e Tobago.