domingo, 6 de junho de 2021

Boletim nº 97 - Junho 2021

 

O SAHARA OCIDENTAL EM PEQUIM

Ao longo das várias décadas em que tem decorrido o processo de descolonização do Sahara Ocidental a China tem tido uma postura muito discreta. Apesar da sua participação na MINURSO e dos seus negócios com o ocupante.

Sahara Ocidental, uma questão secundária?

Mesmo quando começou a ser claro que competia com os Estados Unidos da América pela hegemonia global, nunca sobressaiu por tomar posições que, de alguma forma, se opunham ao discurso da potência cuja hegemonia desafiava.
Não que a sua política externa tivesse tido sempre este perfil. Nos anos sessenta, no auge da “Grande Revolução Cultural Proletária”, Pequim desencadeou campanhas “anti-imperialistas” e “anti-social-imperialistas” que envolviam o apoio aos movimentos de libertação, nomeadamente os africanos.
Como nos recorda
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«China’s Balancing Act in the Western Sahara Conflict», Africana Studia nº 29, 1º semestre 2018, pp 145-156.
Hang Zhou, no início da década de 1970 a política externa chinesa entrou num processo de mudança que levou à retirada do apoio a estes movimentos.
Particularmente os seus programas de ajuda passaram a centrar-se nos «benefícios mútuos» e na «cooperação económica». Isto contribuiu, na opinião de Zhou, para o distanciamento da China relativamente à Frente POLISARIO, que se mantém até hoje. E cita a ausência de convite à República Árabe Saharaui Democrática para participar no Fórum de Cooperação China-África realizado em Pequim em Setembro de 2018.
Este distanciamento, porém, não tem impedido Pequim de, no quadro das Nações Unidas, se envolver activamente na dinâmica da MINURSO. Zhou refere que a China é «actualmente, de entre os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, o maior contribuidor de pessoal militar e o segundo contribuidor financeiro» da Missão. Recorda que por duas vezes o seu comando militar esteve entregue a oficiais superiores do Exército chinês: em 2007 ao Major General Zhao Jingmin e em Dezembro de 2016 ao Major General Wang Xiaojun. E chama a atenção para o facto de a diplomacia chinesa tentar conciliar o direito internacional com a realpolitik. «Não é possível abordar a actual posição da China relativamente ao Sahara Ocidental sem ter em conta as suas relações com Marrocos e a Argélia. (…) uma região – particularmente a ocupada pela POLISARIO – que aparece como economicamente pouco atractiva para os interesses de Pequim» e apresenta as estatísticas, retiradas do China Statistical yearbook (2012-2017), das relações comerciais China-Sahara Ocidental entre 2010 e 2017. Não nos é dito, porém, que universo é abrangido por estes dados. Em compensação, as ligações comerciais com Marrocos — o primeiro país do Magrebe a aderir, em Novembro de 2017, à iniciativa da ”Nova Rota da Seda” (“Belt and Road Initiative”) – têm vindo a crescer nos últimos anos, embora de uma forma ainda incipiente. Zhou cita o caso do Investimento Directo chinês (318 milhões de U$ dólares, valor de 2017), muito aquém dos três principais investidores estrangeiros: a França (21,8 mil milhões), os Emiratos Árabes Unidos (13,2 mil milhões) e a Espanha (5,24 mil milhões). Números que também nos ajudam a compreender a política destes países no processo de descolonização do Sahara Ocidental.
Mas a China tem tido o cuidado de manter laços com a Argélia, tendo-se tornado em 2013 o maior fornecedor do país, ultrapassando a França, sendo o seu 5º parceiro comercial no continente africano e o seu maior mercado para as empresas de construção chinesas naquele continente (em finais de 2017 haviam 61.491 trabalhadores chineses na Argélia, contra 627 em Marrocos).
Para Zhou, «na sua perspectiva de realpolitik, orientada pelos interesses, a China não vê na sua actual posição na questão do Sahara Ocidental qualquer problema nas suas relações, quer com Marrocos, quer com a Argélia.»
O sítio El Confidencial Saharaui abordou recentemente esta temática, sob o título: «A competição entre as potências globais está agora a ocorrer no Norte da África», um texto de Lehbib Abdelhay:
«Durante o seu mandato, o governo Trump colocou o conceito de competição estratégica com a República Popular da China (RPC), bem como com a Rússia, a um nível central da sua política externa, inscrevendo-o em vários documentos estratégicos. Essa abordagem foi também adoptada pelo novo governo Biden que parece ter reconhecido a necessidade de uma estratégia de "longo prazo" contra Pequim.
«Esta instabilidade tem naturalmente enormes implicações para os aliados da América, os quais têm todos relações com ambos os países. Nos últimos anos muitos deles tentaram equilibrar as duas relações, com vários graus de sucesso. Ainda assim, para alguns, esse equilíbrio está a tornar-se cada vez mais difícil de manter.
«Marrocos é um bom exemplo. Apesar dos seus laços políticos com Washington, o Reino tem tentado evitar envolver-se no que considera uma disputa estratégica bilateral entre os Estados Unidos e a China. As autoridades marroquinas às vezes até brincam, dizendo que Marrocos deveria reactivar o Movimento dos Não-Alinhados da era da Guerra Fria como uma forma de evitar a difícil escolha entre Washington e Pequim. A ansiedade de Rabat é especialmente compreensível, dado o crescente activismo económico da China em África, em geral, e os seus continuados investimentos nos últimos anos em Marrocos, em particular.
«No entanto, a estratégia económica mais ampla de Rabat está claramente a empurrá-lo na direcção oposta.
«Durante aproximadamente duas décadas, Marrocos aplicou uma abordagem comercial ambiciosa projectada para se transformar num centro de transbordo logístico chave para mercadorias que entram e saem da Europa, bem como um mediador de comércio em todo o continente africano. O produto dessa visão, concretizada pela primeira vez em 2002, é o porto e a zona industrial de Tanger-Med no norte do país.
«Localizada a cerca de 30 quilómetros a leste de Tânger, ao longo do Estreito de Gibraltar, Tanger-Med foi inaugurada em 2007 e desde então tornou-se um centro de comércio mundial. Hoje, Tanger-Med é o principal porto da África e do Mediterrâneo e o 24º porto de contentores do mundo.
«Actualmente opera quatro terminais independentes com capacidade para 7.000.000 de contentores/ano. Além disso, a construção de uma instalação adjacente, projectada para armazenar hidrocarbonetos para transbordo para a Europa Central e Oriental, está agora em andamento a cerca de 100 quilómetros a leste. Em particular, quando esse complexo, oficialmente conhecido como porto de Nador West Med, entrar em operação aproximadamente daqui a dois anos, terá o potencial de posicionar Marrocos como um antídoto potente para a profunda dependência actual da Europa da Rússia no que diz respeito às suas necessidades de energia.
«No entanto, Tanger-Med é muito mais do que um simples porto. É parte de uma "plataforma industrial" que se estende por 16 milhões de milhas quadradas e está projectada para integrar a cadeia de produção para as principais empresas globais adjacentes às rotas de exportação.
«A iniciativa foi classificada em segundo lugar de importância a nível mundial pelo Financial Times e abrange seis zonas distintas de actividade, incluindo uma zona de livre comércio, uma "cidade do automóvel" (dedicada à fabricação de peças) e a maior fábrica de automóveis de África, propriedade do fabricante francês Renault.
«Este empreendimento económico avassalador promete trazer grandes quantidades de novos negócios e investimentos a Marrocos nos próximos anos. De facto, as autoridades portuárias prevêem um aumento de novas actividades à medida que a pandemia diminuir e o comércio mundial recuperar.
«No entanto, essa mesma dinâmica pode tornar-se uma faca de dois gumes para Rabat. Nos Estados Unidos, o governo federal, o Congresso e o público em geral estão a prestar cada vez mais atenção ao desafio económico, político e estratégico representado pela China. Essa abordagem, por sua vez, foi ampliada pelo curso da pandemia do coronavírus, que expôs a dependência profunda (e doentia) dos Estados Unidos relativamente à China no quadro do comércio global e de bens vitais. À medida que os EUA começam a considerar seriamente "desvincular" as suas cadeias de abastecimentos globais da China, instalações versáteis como o Tanger-Med serão um apelo inevitável. Tudo isso tornará cada vez mais difícil para o governo marroquino ficar fora nos próximos anos da crescente competição global entre os Estados Unidos e a República Popular da China. Os funcionários de Rabat têm de entender essa nova dinâmica e preparar-se para ela.
«Por sua vez a Argélia, o seu rival histórico desde a “guerra da areia” em 1966, já tem um ambicioso projecto em andamento para construir o maior porto do Mediterrâneo, El Hamdania, em Tipaza.
«A Argélia quer reconquistar o seu lugar no sector marítimo a nível do Mediterrâneo e da África. No entanto, até agora, a maioria dos seus portos está inserida em centros urbanos, o que limita qualquer possibilidade de expansão da infra-estrutura.
«O projecto portuário de El Hamdania Center, na cidade costeira de Cherchell, província de Tipaza, na Argélia, já está em andamento. Durante o Conselho de Ministros de 28 de Fevereiro, o presidente argelino, Abdelmadjid Tebboune, fixou um prazo máximo de dois meses para se tomarem todas as providências necessárias ao efectivo início das obras.
«O megaprojecto, cujas obras estão previstas para sete anos, será financiado pelo Fundo Nacional de Investimentos (FNI) e um empréstimo de longo prazo do Exim Bank of China. Inclui três fases: o porto de águas profundas, as áreas de logística e industrial, bem como os acessos por rodovia e ferrovia. O seu custo está estimado em 3.300 milhões de U$ dólares.
«Considerada uma das “infra-estruturas marítimas mais importantes da região do Mediterrâneo e do continente africano”, este projecto teve início sob o mandato do ex-Presidente Abdelaziz Bouteflika.
«Em virtude de um memorando de entendimento concluído em 17 de Janeiro de 2016, a sua implementação foi confiada a uma joint venture constituída sob a lei argelina composta pelo Public Port Services Group e duas empresas chinesas, CSCEC (China State Construction Engineering Corporation) e CHEC (China Harbor Engineering Company). Esta joint venture, regida pela regra 51/49%, é responsável pela realização dos estudos, construção, operação e gestão desta infra-estrutura portuária.
«Para navios com um calado de 20 metros, este porto de águas profundas será construído não só para o comércio marítimo nacional, mas também como centro de comércio regional. Terá 23 docas com capacidade de processamento de 6,5 milhões de contentores e 25,7 milhões de toneladas/ano de carga geral.»
Dias depois voltaram ao tema, agora sob o título «A China considera a questão do Sahara Ocidental como uma questão completamente secundária», de onde seleccionámos os seguintes excertos:
«(...). Na sequência da intervenção, a 13 de Novembro, das Forças Armadas Reais de Marrocos (FAR) para assumir o controlo da passagem fronteiriça de El Guerguerat, o presidente da República Árabe Sarauí Democrática, Brahim Ghali, assinou um decreto que pôs fim ao compromisso da RASD com o acordo de cessar-fogo assinado em 1991. Situação que corre o risco de provocar uma conflagração generalizada nesta região, extremamente sensível para a estabilidade e segurança do Norte de África e do Sahel.
«Neste contexto, pode a China, que reforça cada vez mais as suas relações económicas e estratégicas com a Argélia e Marrocos, nomeadamente através do seu projecto da ”Nova Rota da Seda”, desempenhar um papel na união destes dois países com o objectivo de encontrar uma solução viável e aceitável para todas as partes no conflito no Sahara Ocidental?
«Em duas entrevistas concedidas à agência Sputnik, o ex-ministro argelino da Indústria e Comércio, Noureddine Boukrouh, também analista político com obra publicada, juntamente com o ex-coronel dos serviços de informação argelinos, Abdelhamid Larbi Chérif, afirmam que “Pequim não pode desempenhar esse papel” por várias razões.
«“A famosa profecia atribuída a Napoleão I, que alguns historiadores localizaram em 1816 em Santa Helena: 'Que a China durma, porque quando ela acordar o mundo tremerá', está a cumprir-se diante dos nossos olhos", lembra Boukrouh, sublinhando que "A China acordou, aqui estamos nós!"
«“A China ocupou o seu lugar no mundo moderno. É uma civilização milenar que tem contribuído para a marcha da humanidade ao longo da história e que muito tem feito em termos de civilização, cultura e descobertas”, continua, argumentando que “hoje, está a competir pelo lugar de primeira superpotência do mundo, à frente dos Estados Unidos.”
«Na mesma linha, o ex-ministro lembra que no Norte de África há dois países com um potencial significativo em termos de riquezas naturais e demográficas: a Argélia e Marrocos. "Como na Ásia, a China, que está a expandir-se em África até militarmente, como mostra a sua base no Djibouti, vendeu nos últimos anos muitas armas do mesmo tipo a Marrocos e à Argélia, simultaneamente."
«Noureddine Boukrouh acrescenta que “a China não tem escrúpulos, não se preocupa com questões de direitos humanos ou o direito dos povos à autodeterminação”.
«”Segue a política dos seus interesses e não busca a defesa de ideais universais, que não integram a sua visão do mundo e que considera prejudiciais à sua cultura e ao seu modo de conceber a política e as relações internacionais”, salientando que “está numa postura que serve a sua posição de Império do Meio”.
«Como apoio à sua visão, Boukrouh cita a abordagem diplomática da China no conflito israelo-palestiniano. "Como parte da sua rivalidade com os Estados Unidos, quando este saiu da região do Médio-Oriente, a China entrou com todo o seu peso e ofereceu-se para acolher Israel e a Autoridade Palestiniana para negociações de paz."
«“Como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, a China nunca votou contra Israel. Pelo contrário, sempre teve boas relações com o país, vende-lhe armas como vende ao seu pior inimigo, o Irão”, afirma: "fará exactamente o mesmo no Magrebe no que diz respeito à questão do conflito no Sahara Ocidental." Segundo ele, “os chineses consideram este conflito uma questão completamente secundária”.
«Por fim, Noureddine Boukrouh diz que “os chineses instalar-se-ão em Marrocos e na Argélia, mesmo no Sahara Ocidental, se a Frente POLISARIO os convidar, como parte de uma estratégia para conquistar novos espaços económicos e estratégicos vitais, sem que a questão da resolução do conflito figure na sua agenda.''
«“No contexto da grave crise económica e social que assola o mundo, agravada pelo impacto da pandemia de Covid-19, a Argélia e Marrocos precisam da China, que está disposta a emprestar dinheiro e a investir em muitos projectos estruturais [...]. É a sua forma de ver as coisas que se vai impor a estes países”, conclui. (...).»