segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

SOPRAM VENTOS DE GUERRA EM MARROCOS

(Boletim nº 127 - Dezembro 2023)

Se no último mês se assistiu a um escalar do conflito militar entre Marrocos e a Frente POLISARIO, correndo em paralelo um processo de rearmamento por parte de Rabat, por outro, forças marroquinas estão envolvidas na faixa de Gaza no conflito entre Israel e a Palestina, com a conivência do poder político de Marrocos. 

Aeroporto militar de Smara

Exército saharaui ataca aeroportos militares marroquinos

Quatro décadas após o último ataque, a 5 de Novembro passado, as forças do Exército de Libertação Saharaui (ELS) voltaram a atacar o aeroporto militar situado na região de Smara (no norte do território ocupado), tendo este sido atingido por sete mísseis que causaram relevantes danos estruturais. Por sua vez, a 9 de Novembro, o ELS atacou pela primeira vez outro aeroporto, situado na região vizinha de Mahbes, concretamente na zona de Grair Labouhi.
Estes aeroportos são locais de onde partem os veículos aéreos não tripulados (drones) marroquinos que flagelam regularmente o Sahara Ocidental, tornando-se assim um óbvio alvo de contra-ataque. A operação desenvolvida pelo ELS destinou-se a incapacitar o exército marroquino de atacar e a ganhar liberdade de movimento. Marrocos, por seu lado, manteve-se em silêncio e impediu o acesso às zonas próximas dos ataques, de forma a evitar a divulgação de imagens.
Em paralelo, o Estado-Maior Saharaui, dirigido pelo Presidente da República Árabe Saharaui Democrática (RASD), Brahim Ghali, reuniu-se para discutir os recentes desenvolvimentos, declarando que «o ELS passou do assédio com artilharia, para operações de ataque directo e incursão a posições inimigas». Renovou ainda a advertência de que «todo o Sahara Ocidental, no seu espaço aéreo, terrestre e marítimo, é uma zona de guerra», sublinhando várias operações de incursão, como o raide de Uarkziz no sector de Agha.
Estes ataques representam assim uma escalada na guerra que se desenrola desde Novembro de 2020 (quando Marrocos rompeu o acordo de cessar-fogo), aparentando terem sido realizados com misseis de grande precisão, lançados a partir de uma zona não identificada.
Alguns analistas, aliás, consideram que a chegada deste novo arsenal obrigará Marrocos a uma resposta ainda mais agressiva no conflito no Sahara Ocidental, que o Secretário-geral da ONU, António Guterres, durante os últimos anos qualificou de «baixa intensidade».
Estas investidas relevam a fragilidade do aparelho militar marroquino, tendo em conta que possuem um muro defensivo de mais de 2.500 km, protegido por campos de minas com largura de 2 km, separando o Sahara Ocidental ocupado da zona livre, e dotado de radares que alegadamente detectam movimentos a 60 km de distância. É também de salientar que os ataques ocorreram em zonas onde os marroquinos seriam aparentemente mais fortes.
Num desenvolvimento posterior, a 16 de Novembro, «pelo menos quatro mísseis atingiram a base militar de Tamegroute, no sul de Marrocos, local onde estão estacionadas tropas do seu exército, junto à fronteira com o Sahara Ocidental». A região de Tamegroute situa-se junto à estância balnear de Irqi, conhecida pela presença permanente de membros da família real do Qatar, o que provocou um impacto acrescido. Refira-se ainda que esta cidade se encontra a mais de 100 km a norte da fronteira entre Marrocos e o Sahara Ocidental e a cerca de 60 km da fronteira com a Argélia. É, por conseguinte, a primeira vez que o ELS visa um alvo tão distante em território marroquino.
Numa aparente resposta, a 18 de Novembro, Marrocos bombardeou dois veículos civis utilizando drones, tendo os ataques ocorrido na aldeia de Z'gula, local onde centenas de saharauis e mauritanos extraem ouro numa mina tradicional. Um dos veículos era privado, de matrícula mauritana e nele viajavam três indivíduos que morreram no ataque. E no dia 19 a Frente POLISARIO reconheceu que um drone marroquino tinha morto 5 dos seus combatentes.

Mercenários marroquinos no cerco à faixa de Gaza

Segundo o relatado pelo jornalista marroquino Ali Lmrabet, «dezenas de mercenários marroquinos já foram mortos ou feitos prisioneiros pela resistência palestiniana», sendo que o jornal espanhol El-Mundo, confirma a presença de fuzileiros espanhóis, albaneses, franceses, indianos, árabes e africanos, recrutados por Telavive, para apoiar as suas tropas na operação terrestre no enclave palestiniano sitiado.
Certamente com o pleno consentimento do Rei de Marrocos, quiçá até com o seu empenho, o alistamento de mercenários marroquinos é confirmado pelo escritor Jacob Cohen, em entrevista ao Algerie patriotique, ao afirmar que «a monarquia marroquina não tem mais nada a recusar ao seu protector e aliado israelita». O mesmo é dito por Mohamed Salem Ould-Salek, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros saharaui, que acrescenta existirem desde há muito, «dezenas de conselheiros israelitas nos serviços de informação e no exército marroquino», os quais «determinam a política interna e externa de Marrocos».
«É por isso, aliás, que Marrocos retomou rapidamente as suas relações com Israel. Basta ler a imprensa marroquina, que fala da factura de cerca de 400 milhões de dólares de importações provenientes do Estado judaico. Há uma política (…) de aproximação entre os dois países», observou o actual conselheiro diplomático do presidente Brahim Ghali, acrescentando que «os soldados mais extremistas ao serviço do exército israelita são sefarditas marroquinos».
Segundo o El-Mundo, estes mercenários são recrutados e enviados para o terreno de operações pela Black Shield, uma empresa especializada em segurança privada e vigilância que forma e emprega «agentes de segurança, tratadores de cães e outros perfis.»
Em Junho de 2020, o Algerie patriotique já tinha publicado declarações de quatro antigos altos funcionários da Mossad (serviços secretos israelitas) que revelaram o carácter secreto das relações entre os dois Estados. Estas relações, «muito íntimas», remontam à década de 1960. «Penso que fui o primeiro israelita a sentar-se ao lado do rei de Marrocos [Hassan II], fui eu que iniciei os contactos entre Israel e Marrocos», afirmou Rafi Eitan, chefe de operações da Mossad entre 1950 e 1960. Yossi Alpher, oficial da Mossad entre 1969 e 1981, sublinhou que «foi a Mossad que forjou as relações políticas estratégicas» com o regime de Rabat, confirmando o papel central desempenhado pela agência israelita.
Porém, segundo Driss Ghali, escritor marroquino licenciado em Ciências Políticas, «o ataque do Hamas pôs fim à normalização das relações entre Israel e Marrocos», uma vez que «a população marroquina escolheu o seu lado, sem apoiar o terrorismo». Por outro lado, afirma, «a classe política sabe que Israel é um aliado necessário na estratégia de afirmação do poder do Reino no Magrebe». Para Ghali, a operação levada a cabo pelo Hamas a 7 de Outubro, «virou o tabuleiro de xadrez do Médio Oriente e desferiu um golpe numa das políticas mais valiosas para o reino alauíta: a normalização com Israel. Esta política de aproximação, promissora mas frágil (…) foi varrida pela onda de choque (…) do Hamas», com efeitos colaterais nefastos uma vez que revelou uma «espécie de intoxicação» nos círculos do Makhzen, o qual se considerava «finalmente libertado da sua relação tradicional com a França e a Europa Ocidental». Com um aliado como Israel, Marrocos «já não iria precisar de aceitar a arrogância de Paris».
«O 'parêntesis encantado' (...) da normalização com Telavive 'explodiu' a 7 de Outubro com a ofensiva do Hamas (…), o qual pôs a nu os seus pontos cegos da [referida] normalização, a começar pelo relegar da causa palestiniana para segundo plano».
Para retomar o rumo com Israel, Rabat precisa que o diferendo palestiniano seja resolvido de forma a pôr em prática «a tese da 'simultaneidade' segundo a qual Marrocos pode ser, ao mesmo tempo, o melhor amigo dos palestinianos e o parceiro estratégico dos israelitas. Desde 7 de Outubro, a ilusão da equidistância dissipou-se na poeira das bombas e dos mísseis.»
Não tendo sido convidado a participar no debate sobre a normalização desde o início, o povo marroquino recorreu às «redes sociais para apoiar o Hamas e exprimir a sua rejeição da normalização» e esta «revela-se um objecto frágil (…) tal como o sonho de um dia controlar todo o território do Sahara Ocidental, razão principal da normalização com o Estado hebreu».

Corrida às armas

O rearmamento acelera em Marrocos, enumerando Alonso Palacios vários factores fundamentais para esse desiderato: «o primeiro é o apoio decisivo dos Estados Unidos e de Israel (…) que deu um impulso a uma política de aquisição de armas à qual, de outro modo, teria sido difícil de aceder. O segundo factor é, evidentemente, a tensão com a Argélia (…) que se agravou nos últimos meses em consequência do conflito do Sahara Ocidental, (…) as hostilidades também se intensificaram com a Frente POLISARIO.
«Em terceiro lugar, o ambicioso programa de armamento tem como objectivo transformar Marrocos na principal potência militar do Magrebe. Um objectivo que afecta directamente a Espanha (…), voltando a pairar a reivindicação perpétua de Marrocos sobre Ceuta e Melilla».
Marrocos aumentou em 4,1% a dotação orçamental de Defesa para 2024, atingindo os 11,3 mil milhões de euros (9,6% do PIB do país), tendo como objectivo «adquirir e manter o equipamento das forças armadas e apoiar o desenvolvimento da indústria da defesa».
Em contraponto, o orçamento geral de Espanha para 2023 inclui «uma dotação para o Ministério da Defesa de 12,8 mil milhões de euros», mais 1,5 milhões de euros do que Marrocos. A comparação não é equivalente, uma vez que, no caso de Espanha, estamos a falar de 2023 em comparação com a previsão de Marrocos para 2024. «Mas é, sem dúvida, ilustrativa do elevado montante que Marrocos está a injectar no sector da defesa. O facto dos dois orçamentos serem similares é algo a ter em conta pelos estrategas militares espanhóis. (…).»
«O projecto de orçamento prevê ainda a criação, em 2024, de 7.000 novos postos de trabalho para funcionários públicos na administração da defesa, o mesmo número dos criados em 2023, sendo já o segundo maior empregador depois do Ministério do Interior (mais 7.944 lugares).»
Note-se também que Marrocos aprovou em 2021, «a lei 10-20 relativa aos materiais e equipamentos de defesa e segurança, que visa desenvolver uma indústria de armamento com a instalação de unidades industriais e o fabrico de armas por operadores marroquinos e com a participação de operadores estrangeiros».


 


POLÍTICA EXTERNA DE ESPANHA: «A DUALIDADE DE CRITÉRIOS»

(Boletim nº 127 - Dezembro 2023)

O governo de Espanha tem assumido posições antagónicas face aos conflitos no Sahel e no Médio Oriente, num bom exemplo da chamada política de “dois pesos, duas medidas”. O jornalista Ignacio Cembrero publicou a sua reflexão sobre esta ambivalência, cuja tradução aqui divulgamos.

A explicação para a dualidade de critérios

«OS DOIS PESOS E AS DUAS MEDIDAS DE SÁNCHEZ: DIREITO INTERNACIONAL PARA GAZA, MAS NÃO PARA O SAHARA [OCIDENTAL]

 Marrocos é a explicação para a duplicidade de critérios do Presidente do governo, que sabe que Rabat pode utilizar instrumentos como a imigração irregular para colocar a Espanha em apuros.

"Israel deve também respeitar o direito internacional, incluindo o direito internacional humanitário". O Presidente do governo Pedro Sánchez repetiu esta frase em todas as etapas da sua mini-viagem pelo Médio Oriente na semana passada.
Chegou mesmo a dizê-lo na cara do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanhayu, na quinta-feira, 23 de Novembro. Referia-se aos "ataques indiscriminados", segundo ele, do exército israelita contra civis na Faixa de Gaza. "O número de palestinianos mortos é verdadeiramente insuportável", sublinhou. Esta frase tornou-se a manchete de muitos jornais do mundo islâmico. O número de palestinianos mortos até segunda-feira, 27, ronda os 15.000, segundo as autoridades da Faixa de Gaza, a que se juntam milhares de pessoas soterradas nos escombros e cujos corpos ainda não foram recuperados.
A invocação do direito internacional também esteve presente em todos os discursos de Sánchez desde que a Rússia invadiu a Ucrânia em Fevereiro de 2022. Sánchez deslocou-se por três vezes a Kiev para manifestar a sua solidariedade para com o Presidente Volodomir Zelenski. Em Fevereiro deslocou-se mesmo à cidade de Bucha e ao bairro de Irpin, em Kiev, onde se suspeita que o exército russo tenha cometido crimes de guerra.
Esta preocupação com o direito internacional em locais situados a mais de 3.500 Kms das fronteiras espanholas contrasta com o desinteresse por outro território situado a menos de 200 Km do extremo oriental das Canárias e que foi colónia espanhola até 1975: o Sahara Ocidental.
Até Março de 2022, a diplomacia espanhola escondeu-se atrás das resoluções da ONU sobre o Sahara [Ocidental] para manter uma posição aparentemente equidistante entre Marrocos, que controla 80% do território, e a Frente POLISARIO, que controla os restantes 20%. O Sahara Ocidental tem 266.000 Kms quadrados, uma área equivalente a metade do território espanhol.
A equidistância era mais aparente do que real, porque no tempo de José Luis Rodríguez Zapatero como primeiro-ministro, Luis Planas, então embaixador de Espanha em Marrocos, já tinha oferecido apoio jurídico aos marroquinos para melhorar o seu plano de autonomia para o Sahara [Ocidental]. Foi apresentado em 2007 para contornar o referendo sobre a autodeterminação da população autóctone. Os contributos de Planas foram registados nos telegramas do Departamento de Estado revelados em 2010 pela WikiLeaks.
A equidistância desapareceu por completo quando, a 18 de Março de 2022, Mohammed VI de Marrocos revelou num comunicado que tinha recebido uma carta de Sánchez. Nela, o Presidente do governo considerava o plano de autonomia como "a base mais séria, realista e credível" para a resolução do diferendo do Sahara [Ocidental]. Outros países europeus apoiam a proposta marroquina mas em termos menos exuberantes.
O apoio à autonomia não faz parte das resoluções do Conselho de Segurança da ONU. A última, aprovada a 30 de Outubro, apelou pela enésima vez a "uma solução política justa, duradoura e mutuamente aceitável, que preveja a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental".
Embora Sánchez aplique dois pesos e duas medidas nas suas declarações, existe um ligeiro paralelismo entre o Sahara [Ocidental] e a Palestina. "O conflito saharaui é como o conflito palestiniano, só será resolvido quando for atacado pela raiz", declarou, por exemplo, Arancha González Laya, antiga ministra dos Negócios Estrangeiros, ao diário El Independiente. "O acordo israelo-marroquino [de 10 de Dezembro de 2020] é uma ocupação em troca de outra ocupação", escreveu a jornalista Noa Landau no diário israelita Haaretz.
É verdade que a situação nesta antiga colónia espanhola não é tão grave como na Ucrânia ou em Gaza. No entanto, desde Novembro de 2020, Marrocos e a POLISARIO têm vindo a travar uma guerra de baixa intensidade, na qual se registaram baixas militares e civis de ambos os lados. Em três anos de hostilidades, Rabat só reconheceu uma, um civil morto a 29 de Outubro em Smara, enquanto a POLISARIO reconheceu oficial ou oficiosamente algumas, a última das quais a 19 de Novembro. Nesse dia, um drone marroquino matou cinco dos seus milicianos. A Argélia também denunciou em 2021 a morte de três camionistas argelinos.
O conflito do Sahara é menos grave, mas a Espanha tem uma responsabilidade que não tem na Ucrânia ou na Palestina. É a potência administrante de jure, mesmo que, na prática, não desempenhe esse papel. Só o faz actualmente no espaço aéreo do Sahara [Ocidental] que, 47 anos após a sua saída do território, continua sob o seu controlo, através da empresa pública Enaire. Apenas os voos militares marroquinos estão isentos deste controlo.
Esta responsabilidade espanhola foi, por exemplo, estabelecida no relatório de Hans Corell, Subsecretário-geral das Nações Unidas para os Assuntos Jurídicos, em Janeiro de 2002. Nele recordou que, em 1975, a Espanha não transferiu a soberania sobre o território nem conferiu o estatuto de potência administrante a Marrocos e à Mauritânia porque não o podia fazer unilateralmente.
Além disso, a Assembleia Geral da ONU aprova todos os anos uma resolução que estipula que as potências administrantes, entre as quais a Espanha, continuam a manter as suas obrigações até que a própria instituição mude de opinião. "Mesmo que a Espanha não queira ter nada que ver com o território", como afirma o ministro José Manuel Albares, "um Estado só pode renunciar aos seus direitos, mas não às suas obrigações", recordou Juan Soroeta, professor de Direito Internacional Público na Universidade do País Basco, ao jornal El Independiente.
As afirmações de Soroeta não são um acaso. Os sucessivos responsáveis pelo departamento jurídico do Ministério dos Negócios Estrangeiros, com algumas excepções, consideraram nos seus relatórios, que não são públicos, que a Espanha continuava a ser a potência administrante de jure do Sahara. Os sucessivos ministros ignoraram com a mesma teimosia estas declarações.
À porta fechada, em Espanha, o plenário da divisão criminal da Audiência Nacional também sublinhou, em 2014, que a potência administrante da antiga colónia não tinha mudado. Essa sessão plenária foi presidida por Fernando Grande-Marlaska, que era então um dos seus juízes e que é actualmente Ministro do Interior e um dos membros do governo mais complacente com Marrocos, a julgar pelas suas declarações.
A mentalidade fechada de Sánchez foi tão longe que na negociação do acordo de governo com Sumar não há qualquer referência ao Sahara [Ocidental]. Nem sequer são incluídos alguns parágrafos das resoluções do Conselho de Segurança enquanto a Ucrânia e a Palestina são mencionadas em alguns. Além disso, o documento acordado apela ao reconhecimento do Estado da Palestina.
A rendição a Marrocos não se limita ao Sahara [Ocidental]. Há muitos outros exemplos. Talvez um dos mais chocantes tenha sido o voto dos eurodeputados socialistas espanhóis contra uma resolução do Parlamento Europeu que instava as autoridades marroquinas a libertar três jornalistas influentes. Apenas os socialistas espanhóis e a extrema-direita francesa se opuseram à resolução, que foi aprovada, a 19 de Janeiro, por maioria esmagadora.
A explicação para esta dualidade de critérios é Marrocos; é a determinação de manter a todo o custo uma relação cordial com um vizinho que pode sufocar ainda mais Ceuta e Melilla – as alfândegas comerciais anunciadas por Sánchez há quase 20 meses não foram ainda abertas – e que recorre à imigração e à cooperação antiterrorista como instrumentos de pressão sobre Espanha.
Quando, há alguns meses, José Manuel Albares elogiou a diminuição da imigração graças aos acordos com Rabat, estava, na realidade, a reconhecer que só quando o Governo espanhol agrada ao seu vizinho é que este faz um esforço para travar a chegada de imigrantes sem documentos.
Há anos que os ”thinks-tanks” e os especialistas em imigração de toda a Europa apontam o dedo a Marrocos como um país que recorre à arma da migração. O último a analisar em profundidade as acções de Marrocos é o investigador italiano Costantino Pistilli, que acaba de publicar um livro intitulado El gran chantaje. La apertura de fronteras como instrumento de presión política. El caso Marruecos-España (Paesi Edizioni, Roma 2023). Nele, demonstra que a imigração irregular não é apenas um problema humanitário, mas responde também a estratégias políticas dos países de origem.»


 


domingo, 3 de dezembro de 2023

TESH SIDI: «NÃO DESISTIREMOS!»

(Boletim nº 127 - Dezembro 2023)

Tesh Sidi, a nova deputada de origem saharaui no Parlamento de Espanha, fez uma reflexão sobre o acordo de governação agora celebrado no qual não consta o problema da descolonização do Sahara Ocidental. Mas, como ela nos lembra, esta derrota não nos deve levar à desistência. É essa reflexão que aqui partilhamos.

«Não nos perdoariam sermos cobardes»
«Há poucas semanas foi assinado o acordo entre o Partido Socialista [PSOE] e o Sumar, e a alegria de muitos reflectiu-se nas redes sociais. Finalmente há um acordo entre formações progressistas! Mas, ao mesmo tempo, também foram tecidas duras críticas a todas as ausências temáticas do documento, por muitas e muitos que tinham o texto já pronto para ser anunciado. E depois muitas pessoas escreveram-me nas redes sociais.
Como sempre, e como é meu hábito, respondo a todas as mensagens e tento ser pedagógica, porque é a minha forma de fazer política; mas não podia negar a dor que sentia, a impotência e a raiva que muitas e muitos outros sentiram nesse dia. No meu caso, porém, o processo de incerteza de mais de três meses chegava ao fim. As cartas estavam na mesa e, por mais que as minhas cartas fossem importantes para mim, não eram uma linha vermelha para os outros 349 membros da Câmara de Deputados.
Isto pode parecer lógico para muitos e muitas que estão profundamente envolvidos na política nacional, para os quais esta é uma agenda prioritária; mas foi complexo para uma nova deputada, com pouca experiência parlamentar e muitas representatividades que são transversais à sua pessoa. No acordo não havia uma única menção ao Sahara Ocidental, nem uma única menção a medidas tão importantes como a iniciativa RegularizaciónYa.
Costuma dizer-se que um acordo é uma série de pontos sobre os quais as partes chegam a um consenso e que tudo o que não está incluído se deve ao facto de o não ter conseguido alcançar. É assim que os especialistas políticos o consideram, mas é algo muito complexo para transmitir a um eleitorado que te vê como uma referência na sua própria luta. É complexo para uma saharaui integrar um governo em que uma das suas partes nega a existência do seu povo e procura agradar ao ocupante. É complexo para uma saharaui não se sentir impotente quando o seu povo resiste há mais de 50 anos. É complexo para uma saharaui que criticou tão duramente Pedro Sánchez fora da instituição. É complexo para uma migrante que sofreu tanto racismo institucional e tanta violência burocrática: 24 anos para obter a cidadania, viver num limbo jurídico desde que nasci porque Espanha não reconhece a minha origem...É complexo sentir que se carregam tantas lutas às costas e que não se consegue alcançar o que nos é exigido do exterior.
É então que surge a segunda voz dentro de nós, a que é pragmática, de cabeça fria, capaz de contar até dez e procurar uma solução; a que é capaz de aguentar a pressão, mesmo que por vezes seja injusta. Esta foi talvez a melhor coisa que aprendi enquanto engenheira, até há poucos meses. Como diz sempre o meu irmão, "Roma e Pavia não se fizeram num dia". Talvez os episódios stressantes - como o encerramento de bancos – passem a ocupar o meu dia a dia e ser activista e política seja mais complexo do que pensava.
Talvez quando aceitei fazer parte de uma lista eleitoral não soubesse quantas contradições e sacrifícios temos de fazer quando institucionalizamos o nosso activismo, mas agora pergunto-me se tinha escolha em não ser política. A verdade é que continuo a pensar que não, que não tinha escolha. Que nós, que acreditamos firmemente na transformação da instituição através da ocupação de espaços como única forma de mudar as coisas, temos de assumir o desafio de entrar e resistir; que, como mulheres e migrantes, este espaço também é nosso e ocupá-lo é um acto de responsabilidade e um exemplo para as gerações futuras, que não nos perdoariam por começarmos sempre de novo; não nos perdoariam por sermos cobardes e não ousarmos.
Nesse dia recebi mensagens de vários compatriotas - na sua maioria homens - e uma delas levou-me a uma reflexão profunda sobre a complexidade de fazer política. A mensagem dizia: "Vota NÃO a Sánchez e terás o respeito do teu povo e estarás na capa dos livros de história", ao que respondi: "As mulheres não estão habituadas a estar na capa dos livros de história". Mesmo que doa, sabemos que é verdade. Entendemos o feminismo como um movimento político transformador, capaz de construir políticas de paz e de respeito pela existência. Depois, cada uma de nós tentou dar-lhe um nome, mas, no fim de contas, o mais importante para mim é poder dizer que a minha luta, acima de tudo, é feminista. Porque o que nós mulheres sofremos na política, no activismo e nos espaços de poder é apenas uma demonstração clara de como é necessário ocuparmos espaços para educar as nossas filhas e filhos para um futuro mais justo e coerente.
Outras mensagens que recebi tinham a frase típica: "Foste usada, apesar de saber que és uma pessoa fantástica". Reduzir todo o meu trabalho a essa frase sempre me pareceu desrespeitoso, com um certo tom colonial - para não falar da condescendência patriarcal para com uma jovem mulher que é tratada como uma criança inocente. Compreendo que esta leitura vitimizadora é uma forma de me perdoar e justificar a minha presença na instituição, porque é mais complexo compreender que sou capaz de conduzir processos de negociação interna para mudar a vida dos cidadãos, porque muitos ainda não aceitam que nós, migrantes, também damos um murro na mesa quando é necessário. Estamos perfeitamente conscientes da facilidade com que as nossas vozes são abafadas; é por isso que sabemos que precisamos de mais pessoas como nós no interior para fazer da nossa agenda uma linha vermelha.
A verdade é que as negociações de um acordo de governo entre formações como Sumar e PSOE, com algumas linhas ideológicas semelhantes e outras totalmente diferentes, são um processo complexo. A referência ao Sahara Ocidental ou a muitas medidas migratórias estiveram no documento desde o início, mas não conseguimos que fossem incluídas no acordo final. No entanto, devo deixar claro que não desistimos da questão do Sahara ou das questões migratórias.
Hoje, dias após a apresentação desse acordo que nos deixou com um "amargo de boca", acordámos um conjunto de medidas que facilitarão a vida da população saharauí, dando-nos um impulso para reforçar aquela sociedade civil e o movimento de solidariedade em prol do Sahara Ocidental, tendo sempre como objectivo a descolonização do território. Isto pode parecer letra morta para um povo que o Estado espanhol abandonou nos últimos 50 anos e a quem já foram feitas tantas promessas; é por isso que não me atrevo a fazê-las. Porque sei que, tal como eu, todo o povo saharauí construiu uma carapaça para continuar a resistir e é por isso que temos de interiorizar que estar na instituição pode também tornar-se uma outra forma de resistência.
Estou certa de que, durante esta legislatura, seremos capazes de realizar grandes mudanças sociais para a nossa cidadania. Não só teremos travado a direita e a extrema-direita, com as suas políticas neoliberais, como estou certa de que este barco, que zarpou a 23 de Julho, pode fazer uma legislatura longa e estável. É isso o que devemos à cidadania e, por conseguinte, não podemos permitir-nos a irresponsabilidade de repetir as eleições.
Orgulho-me do trabalho invisível que constrói a confiança e, hoje, entro pela porta do Congresso dos Deputados com a intenção de votar Sim à investidura, consciente do que isso significa. Mas, neste imenso palácio repleto de história, o empenho de muitos e muitas na causa dos migrantes e dos saharauis faz-me sentir que não estou sozinha. O que hoje parece ser um ponto final parágrafo, garanto-vos que é apenas um ponto e vírgula: um passo intermédio até à autodeterminação do povo saharaui.
Chego ao hemiciclo. Sento-me no meu lugar. Respiro fundo. Já estou cá dentro. E, em breve, seremos muitas mais.»