domingo, 4 de setembro de 2022

SAHARA OCIDENTAL: O “PRISMA” DE MARROCOS

(Boletim nº 112, Setembro 2022)

O reconhecimento norte-americano – via Trump – da anexação marroquina d(e parte d)o Sahara Ocidental foi um enorme incentivo ao regime de Rabat na sua aposta numa solução “caseira” para o processo de descolonização do território, como está patente no discurso de 20 de Agosto de Mohamed VI a pretexto da passagem do 69º aniversário da “Revolução do Rei e do Povo”.

Em busca do prisma

O discurso, basicamente centrado na defesa da ocupação do Sahara Ocidental, está dividido em duas partes. A primeira é uma enumeração das vitórias do regime nesta sua luta. A segunda é uma enumeração dos passos que há que dar para se chegar à vitória final.

«Nos últimos anos fizemos grandes progressos a nível regional e internacional, todos eles favoráveis à justa e legítima posição do Reino sobre a marroquinidade do Sahara.

«Assim, muitos países influentes, respeitadores da plena soberania de Marrocos sobre os seus territórios, mostraram a sua receptividade e apoio à Iniciativa de Autonomia, que é vista como a única forma possível de resolver este conflito regional artificial.

«A posição dos Estados Unidos da América, que se tem mantido constante independentemente de mudanças na administração ou na situação económica, torna este acolhimento favorável incontornável.

«Saudamos igualmente a posição clara e responsável de Espanha, um país vizinho que conhece perfeitamente bem a origem e a verdadeira natureza deste conflito.

«Esta postura construtiva marcou uma nova etapa na parceria hispano-marroquina que nenhuma contingência regional ou desenvolvimento político interno pode agora afectar.

«Além disso, a atitude construtiva em relação à Iniciativa de Autonomia tomada por alguns países europeus como a Alemanha, Holanda, Portugal, Sérvia, Hungria, Chipre e Roménia, contribuirá para estabelecer um novo marco nas relações de confiança com estas nações amigas, reforçando a parceria de qualidade que as liga ao nosso país.

«Paralelamente a este apoio, cerca de trinta países abriram consulados nas províncias do Sul, marcando assim o seu claro apoio à integridade territorial do Reino e à marroquinidade do Sahara.

«Aproveitamos esta oportunidade para reiterar a expressão da Nossa consideração aos Nossos Irmãos Reis, Emires e Presidentes dos países árabes irmãos, nomeadamente Jordânia, Bahrain, Emiratos Árabes Unidos, Djibuti e Comores, que abriram consulados em Laayoune e Dakhla.

«Agradecemos também aos restantes Estados árabes que têm afirmado constantemente o seu apoio à marroquinidade do Sahara, e especialmente aos países do Conselho de Cooperação do Golfo, Egipto e Iémen.

«Além disso, as posições dos nossos irmãos africanos são para nós uma verdadeira fonte de orgulho, uma vez que cerca de 40% dos Estados africanos, pertencentes a cinco agrupamentos regionais, abriram consulados em Laayoune e Dakhla.

«Esta dinâmica também diz respeito aos países da América Latina e Caraíbas, muitos dos quais abriram consulados no Sahara marroquino, enquanto outros decidiram alargar a sua jurisdição consular às províncias do sul do Reino.

«Dada esta evolução positiva que envolve países de todos os continentes, gostaria de enviar uma mensagem clara a todos: a questão do Sahara é o prisma através do qual Marrocos vê o seu ambiente internacional. É também, clara e simplesmente, a bitola que mede a sinceridade das amizades e a eficácia das parcerias que constrói.

«Em relação a certos países entre os nossos parceiros, tanto tradicionais como novos, cujas posições sobre a questão do Sahara são ambíguas, esperamos que clarifiquem e revejam a sua posição de uma forma que não deixe margem para equívocos.»

E qual é a chave para abrir a porta da vitória redentora?

«Uma frente interna unida e plenamente mobilizada, onde quer que se encontrem, para contrariar as manobras dos inimigos: esta é a base em que qualquer estratégia de defesa da marroquinidade do Sahara deve assentar.

«Gostaria de aproveitar esta oportunidade para saudar e assegurar aos membros da comunidade marroquina que vivem no estrangeiro a Minha estima pela defesa abnegada da integridade territorial do seu país, fazendo ressoar a causa nacional em todos os fóruns à sua disposição e através das posições que ocupam. (…).

«Chegou portanto o momento de dotar esta comunidade do enquadramento, dos meios e das condições necessárias para dar o melhor de si, no melhor interesse do seu país e do seu desenvolvimento. (…).»

Na sua abordagem o rei não se refere à situação dos marroquinos residentes em Marrocos e que os obriga a sair do país. E contudo, como escreve o jornal Le Monde:1

«O modus operandi está bem estabelecido e é sistemático. O governo marroquino "esmaga toda a oposição" através da aplicação metódica de um "verdadeiro manual" de "técnicas indirectas e desleais", enquanto se esforça por preservar a sua imagem como um "país moderado que respeita os direitos", disse a Human Rights Watch (HRW) num relatório publicado a 28 de Julho. A investigação, baseada em entrevistas a quase 90 pessoas e na análise de doze julgamentos envolvendo oito jornalistas ou intelectuais, é a primeira investigação em larga escala sobre a metodologia utilizada pelo regime de Rabat nos últimos dez anos para "amordaçar as vozes críticas" e "afugentar todos os potenciais críticos do Estado". (…).

«Embora o silenciamento dos opositores tenha uma história muito longa em Marrocos, desde meados da década de 2010 tem assumido uma nova forma, observa o relatório, sendo estas vozes discordantes acusadas de "crimes que não o de expressão": adultério, violação e agressão sexual, espionagem, lavagem de dinheiro e até mesmo tráfico de seres humanos. A ideia subjacente é evitar, tanto quanto possível, julgamentos manifestamente demasiado políticos - susceptíveis de heroicizar aqueles que estão a ser processados - baixando-os à vil posição de vigaristas, depravados ou violadores. Os casos de agressão sexual, em particular, visam esconder-se atrás da onda internacional #metoo, para melhor tornar os arguidos indefensáveis.»

Uns dias antes tinha sido divulgado o contributo da União Europeia para “dotar” com “os meios necessários” o desenvolvimento da sociedade marroquina, como explica um trabalho de Zach Campbell e Lorenzo D’Agostino da Disclose, uma associação de jornalistas que integra «a Rede Internacional de Jornalismo de Investigação (GIJN), um grupo de 184 organizações com sede em 77 países cuja missão é apoiar e reforçar o jornalismo de investigação.»

«Para reforçar o controlo dos migrantes, a União Europeia forneceu à polícia marroquina programas para extrair dados de telemóveis. Na ausência de monitorização, estas tecnologias podem ser utilizadas para aumentar a vigilância sobre jornalistas e defensores dos direitos humanos em Marrocos.

«A Disclose, em parceria com o semanário alemão Der Spiegel, revela que a UE entregou ao Reino de Marrocos poderosos sistemas de vigilância digital. Programas concebidos por duas empresas especializadas em pirataria telefónica e extracção de dados, a MSAB e a Oxygen Forensics, antes de serem entregues às autoridades marroquinas pela Intertech Líban, uma empresa franco-libanesa. Tudo sob a supervisão do Centro Internacional para o Desenvolvimento da Política Migratória (ICMPD). O objectivo oficial desta transferência, financiada pelo orçamento do "programa de gestão de fronteiras da UE para a região do Magrebe", era combater a imigração irregular e o tráfico de seres humanos às portas da Europa. (…).

«Para além da compra dos programas de espionagem e dos computadores onde estão instalados, a União Europeia também financiou sessões de formação dadas às forças de polícia marroquina por funcionários da Intertech e da MSAB e Oxygen Forensics. Mas isso não é tudo. De acordo com documentos internos obtidos pela ONG Privacy International, a Europa também enviou os seus próprios peritos da Academia Europeia de Polícia, CEPOL, para uma formação de quatro dias em Rabat entre 10 e 14 de Junho de 2019. Na ordem do dia: sensibilização sobre "recolha de informação a partir da Internet"; "reforço da capacidade de investigação digital"; introdução ao "hacking social", uma prática que consiste em extrair informação de alguém através de redes sociais. (…).

«Resta saber se estas tecnologias de vigilância digital são, real e exclusivamente, utilizadas para combater a imigração ilegal. No entanto, de acordo com a nossa investigação, nunca foi efectuado qualquer controlo. Nem dos fabricantes nem dos funcionários europeus. Por outras palavras, Marrocos poderia decidir utilizar as suas novas aquisições para a repressão interna sem que a União Europeia o soubesse. Este risco é ainda mais grave, segundo os investigadores de segurança digital contactados pela Disclose, porque o XRY e o software Detective não deixam vestígios em dispositivos pirateados... ao contrário do Pegasus. (…).

«Para garantir que o equipamento não será desviado do seu objectivo oficial, a Comissão Europeia afirma que um documento de compromisso foi assinado pelas autoridades marroquinas – que não nos foi transmitido. De acordo com um porta-voz da Comissão contactado pela Disclose, o documento afirma que a tecnologia só será utilizada para combater o "tráfico de pessoas". Nada mais? "A UE confia em Rabat para respeitar o seu compromisso, é da sua responsabilidade", elude-se o porta-voz. (…).

«De facto, esta transferência de tecnologia deve ser objecto de especial atenção. Isto porque os sistemas fornecidos pela UE são classificados como bens de dupla utilização (BDU), ou seja, podem ser utilizados tanto no contexto militar como civil. Este tipo de exportação é mesmo regulamentado por uma posição comum da UE datada de 2008, que estipula que a transferência de bens de dupla utilização é proibida se existir um "risco claro" de que o equipamento entregue possa ser utilizado para "repressão interna". Este risco foi amplamente confirmado no caso marroquino, como o demonstrou o caso Pegasus.

«Quando contactadas, a MSAB e a Oxygen Forensics recusaram-se a responder. O mesmo aconteceu com os reguladores sueco e americano em matéria de exportação de bens de dupla utilização. Também não houve resposta das autoridades marroquinas. (…).

«No parlamento europeu estas exportações estão longe de ser unânimes. “A pretexto de proteger as nossas fronteiras, não podemos estar satisfeitos com as promessas de um regime autoritário", disse a eurodeputada Markéta Gregorová (do grupo dos Verdes). “É uma negligência deliberada e moralmente inaceitável por parte da Europa”. Esta negligência é tanto mais perturbadora quanto a empresa MSAB foi acusada de ter equipado a polícia birmanesa em 2019, numa altura em que os abusos contra a população civil eram conhecidos e estavam documentados.»

1Le Monde, 29 Julho 2022, p. 5.


 




EUA: POLÍTICA EXTERNA AFRICANA EM REVISÃO

(Boletim nº 112, Setembro 2022)

A política externa dos Estados Unidos para África tem vindo a ser objecto de uma revisão, para a qual tem concorrido a ofensiva política, económica e diplomática que quer a China quer a Rússia têm feito sobre aquele continente.

Até quando?

O sítio El Confidencial Saharaui trouxe, recentemente, uma abordagem sobre este tema.
«A administração Biden está a avaliar uma nova estratégia para África destinada a "reactivar o compromisso" com o continente e competir por influência e hegemonia com rivais geopolíticos como a China e a Rússia, revelou o sítio Foreign Policy citando vários funcionários dos EUA familiarizados com o assunto.
«O Secretário de Estado norte-americano Antony Blinken deverá apresentar a nova estratégia durante a sua próxima viagem a África, que inclui visitas oficiais à África do Sul, à República Democrática do Congo e ao Ruanda. (…).
«A estratégia tem vários objectivos gerais. De acordo com funcionários e diplomatas sediados em Washington, ela procura fazer avançar a democracia, a governação e a segurança em África; um propósito que se insere na recuperação das consequências da pandemia e da oportunidade económica; abordar a crise climática e uma transição energética "justa" para o continente; e promover sociedades abertas. Os funcionários da administração Biden dizem que um dos principais objectivos da nova estratégia é impulsionar a diplomacia e o desenvolvimento num esforço para silenciar as armas em África, particularmente na região do Sahel, que tem dominado a política dos EUA nas últimas duas décadas, quando o principal foco da política externa de Washington era a luta contra o terrorismo. (…).
«A nova estratégia dos EUA acontece quando Washington se esforça por contrariar os esforços russos e chineses para reforçar a sua própria influência geopolítica em todo o continente. O Ministro dos Negócios Estrangeiros russo Sergey Lavrov empenhou-se numa bem sucedida viagem pelo continente no final do mês passado, numa tentativa de mostrar que o Ocidente não conseguiu isolar Moscovo na cena mundial após a sua invasão militar da Ucrânia. Tanto a Rússia como a Ucrânia são grandes exportadores mundiais de alimentos e a invasão da Ucrânia por Moscovo causou estragos nas cadeias globais de abastecimento alimentar, particularmente nos países em desenvolvimento de África. Até agora, porém, os EUA e os seus aliados ocidentais lutam para que os países africanos se juntem às sanções contra a Rússia.
«Um porta-voz do NSC [National Security Council] afirmou que a estratégia foi desenvolvida ao longo dos últimos oito meses e envolveu extensas consultas inter-agências, bem como o contributo de parceiros internacionais, entre os quais africanos. O porta-voz recusou-se a comentar os detalhes da estratégia, que ainda não foi tornada pública. A estratégia também coincide com uma série de visitas de alto nível de funcionários da administração Biden ao continente, incluindo a viagem de Blinken, a viagem da Embaixadora dos EUA nas Nações Unidas Linda Thomas-Greenfield ao Uganda e ao Gana, e a visita da Administradora da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional, Samantha Power, no mês passado à África Oriental.
«Os funcionários da administração Biden sublinharam que querem evitar envolver as nações africanas na guerra entre os EUA e a China, e, em menor medida, a Rússia, um quadro defendido pela anterior administração Trump (...). Ainda assim, alguns peritos acreditam que mesmo com esta nobre intenção, Washington não encontrou ao longo das sucessivas administrações uma boa forma de competir com os projectos de mega-infra-estruturas da China em África, que em alguns países ultrapassaram de longe o investimento ocidental. "Os países africanos não querem ser vistos simplesmente como peões na competição hegemónica das grandes potências. Mas ao mesmo tempo temos de reconhecer que há concorrência em África, particularmente com Pequim, e [que] Washington está a perder", acrescenta Cameron Hudson», um especialista do Center for Strategic & International Studies.
Desde o início da sua tomada de posse que a administração Biden tem sido confrontada com apelos e declarações para que rectifique a desastrosa política trumpista, que deixa Washington na delicada e contraditória posição de condenar a política russa relativamente à Ucrânia enquanto defende a mesma agressão territorial no caso de Marrocos relativamente ao Sahara Ocidental.
Em finais de Julho a Comissão de Dotações do Senado norte-americano definiu um novo quadro orçamental para o Departamento de Estado para o próximo ano fiscal, no âmbito das operações no estrangeiro, no qual se impede a aplicação de fundos para a abertura de um consulado na cidade ocupada de Dakhla, no Sahara Ocidental. Um objectivo fixado pela administração de Trump, no âmbito do acordo que levou ao restabelecimento de relações diplomáticas entre Marrocos e o Estado de Israel.
Na nota explicativa do orçamento, a Comissão separa Sahara Ocidental e Marrocos, reconhecendo o primado do Direito Internacional. E exorta o Departamento de Estado a empenhar-se na atribuição à MINURSO da responsabilidade do acompanhamento da situação dos direitos humanos, tanto em Marrocos como nos acampamentos de refugiados saharauis, à semelhança das outras missões das Nações Unidas, recomendando igualmente a prossecução de programas visando melhorar a educação e os cuidados de saúde, assim como as oportunidades económicas e outras formas de assistência à população saharaui. Joe Biden assinou o orçamento no passado dia 2 de Agosto.
Também em finais de Julho o Departamento de Defesa dos EUA aceitou a recomendação do presidente da respectiva Comissão do Congresso, o senador Republicano Jim Inhofe, que sugeriu um re-exame da localização do exercício militar norte-americano African Lion face à obstrução do regime marroquino ao processo de descolonização do Sahara Ocidental. «Porque Marrocos não mostrou vontade de resolver o problema do Sahara Ocidental, os EUA deveriam procurar outros lugares para acolher os nossos exercícios militares anuais [que se têm desenrolado] aí. Estou satisfeito pelo facto de os líderes que nomeamos para a US Africa Command e a USSOCOM terem apoiado esta opinião.» Estas diligências foram confirmadas pelas autoridades referidas.
Já em 5 de Março de 2022, um grupo de congressistas tinha enviado uma carta ao Presidente Biden, pedindo-lhe que deixasse de vender armas norte-americanas a Marrocos. A carta, «que foi assinado por 11 membros do Congresso, liderados pela Representante Democrática Sarah Jacobs» diz que Marrocos «não deu quaisquer garantias de que não utilizará armas americanas contra o povo do Sahara Ocidental».
Por sua vez a American Bar Association de Nova Iorque dirigiu-se em Agosto ao Presidente Biden solicitando-lhe que apoie o direito à auto-determinação e independência do povo saharaui, em conformidade com as resoluções da Assembleia Geral da ONU, nomeadamente a Resolução 1415. A Associação apelou também para que revisse a infame decisão do ex-Presidente Trump de reconhecer a alegada soberania de Marrocos sobre o Sahara Ocidental.
A Associação exortou o Presidente dos Estados Unidos a dar apoio político à Embaixadora dos EUA junto das Nações Unidas para pressionar, no Conselho de Segurança, no sentido da expansão do mandato da Missão da ONU para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO) de forma a incluir a monitorização dos direitos humanos, tanto no Sahara Ocidental como nos campos de refugiados saharauís, e para apresentar uma resolução no Conselho de Segurança da ONU a este respeito.

PARA QUÊ EFABULAR, QUANDO A REALIDADE É TÃO RICA DE ACONTECIMENTOS?

(Boletim nº 112, Setembro 2022)

Sob este título, o Diário de Notícias publicou no passado dia 30 de Agosto (23º aniversário da realização do referendo em Timor-Leste) um artigo de Luísa Teotónio Pereira, membro da Associação de Amizade Portugal-Sahara Ocidental (AAPSO). Aqui o partilhamos.

Seguindo um rumo já conhecido, dois artigos recentes no DN, respetivamente de Leonídeo Paulo Ferreira (22/8) e de Raul Braga Pires (26/8), vêm obscurecer a visão do que se passa hoje no Magrebe, em particular no que diz respeito ao Sahara Ocidental. Porque essa parece ser a finalidade, na tentativa de criar uma narrativa que afaste Portugal do cumprimento do Direito Internacional e da sua fundamental experiência, no pós-25 de Abril, de apoio à autodeterminação dos povos, conforme dita a Constituição da República (Artigo 7º) e se comprovou mais recentemente no caso de Timor-Leste.
 
A questão saharaui está viva e em desenvolvimento, embora isso não transpareça na comunicação social portuguesa. Por um lado, continua uma guerra de baixa intensidade que lavra desde Novembro de 2020. Por outro, o Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU tenta desde Novembro do ano passado reunir as condições que permitam recomeçar as negociações entre as partes – a Frente POLISARIO e Marrocos, com a assistência dos países vizinhos, a Argélia e a Mauritânia. Staffan De Mistura realizou em Janeiro uma primeira viagem à região, e voltou em Julho a Rabat para, de seguida, conforme anunciou o porta-voz de António Guterres, visitar o território saharaui (ocupado). Mas as condições impostas por Marrocos foram de tal ordem, que ele não as aceitou e cancelou a viagem. 
 
A sua missão não é fácil, como recordou um dos seus antecessores, o embaixador norte-americano Christopher Ross, em testemunho escrito de 5 de Julho passado: «Em Abril [de 2007], as duas partes apresentaram as suas duas propostas: Marrocos, uma ampla autonomia do Sahara Ocidental sob a sua soberania, a FPOLISARIO um referendo que incluísse a independência como opção e delineasse as relações estreitas que um Estado independente teria com Marrocos. (…). De 2007 a 2019, o meu antecessor, o meu sucessor e eu patrocinámos 15 sessões entre estas duas partes, com a Argélia e a Mauritânia presentes como Estados vizinhos. Infelizmente, nada que se possa chamar uma negociação alguma vez teve lugar, e a comunidade internacional tem todo o direito de saber porquê. A FPOLISARIO veio a cada sessão pronta para discutir ambas as propostas, mas Marrocos veio com uma importante condição prévia: que se discutisse apenas a sua própria proposta.»
 
Até agora, esta situação não mudou. A 22 de Julho o senador norte-americano Jim Inhofe declarou: «Porque Marrocos não mostrou vontade de resolver a questão do Sahara Ocidental, os EUA deviam ponderar lugares alternativos para acolher os nossos exercícios militares anuais [que se têm desenvolvido] aí. Estou satisfeito pelo facto de os líderes que nomeamos para a US Africa Command e a USSOCOM terem apoiado esta opinião.» Estas diligências foram confirmadas pelas autoridades mencionadas. 
 
A luta política desenrola-se sobretudo no palco diplomático. Sucintamente, quatro casos dos últimos dois meses.
 
A República Árabe Saharaui Democrática é membro de pleno direito da União Africana (UA) desde 1984 e é reconhecida por cerca de 80 países no mundo (nenhum europeu). O governo do Peru liderado por Pedro Castillo reconheceu a RASD no ano passado, mas a 7 de Agosto voltou atrás, por obra de um novo Ministro dos Negócios Estrangeiros, a quem o MNE marroquino telefonou, dois dias depois da sua tomada de posse. A oposição protestou e pediu a demissão do Ministro por leviandade na tomada de decisões. No dia seguinte à posse histórica de Gustavo Petro na Colômbia, este, enquanto Presidente do novo executivo, em cerimónia pública ao lado do MNE saharaui, Mohamed Salem Salek, confirmou o reconhecimento da RASD.
 
Marrocos tem pressionado e oferecido vantagens e benesses significativas a dirigentes de países que aceitem “abrir” consulados (ilegais, segundo o Direito Internacional, e fantasma, porque não há cidadãos nacionais que os justifiquem) nas cidades de El Aiun ou Dakhla, no Sahara Ocidental ocupado. Foi o caso que manchou a diplomacia e o Estado de Cabo Verde em 18 de Agosto passado. O mesmo tinha prometido Donald Trump em 2020, mas o Senado norte-americano, no quadro da respectiva Comissão de Dotações, aprovou no início de Agosto, pelo segundo ano consecutivo, uma proposta de orçamento para o ano fiscal de 2023 - nele insta o Departamento de Estado a estabelecer um mecanismo de direitos humanos na missão da MINURSO e a atribuir apoio financeiro aos esforços diplomáticos para facilitar uma solução para o conflito do Sahara Ocidental, reafirmando ao mesmo tempo a sua recusa em que seja utilizado na construção de um consulado dos EUA em Dakhla ou no funcionamento de tal projecto. 
 
Sabemos que o Presidente do governo de Espanha, Pedro Sánchez, cedeu à chantagem marroquina, traindo mais uma vez as responsabilidades do seu país como potência administrante do Sahara Ocidental - que continua a ser, não só à luz do Direito Internacional, como do Direito interno (Resolução da Audiência Nacional de 4/7/2014). Tentando eventualmente emendar a mão, o Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, Josep Borrell, numa entrevista à estação pública espanhola RTVE, declarou a 23 de agosto: «A posição do Governo espanhol foi e é a da UE, ou seja, defender a realização de uma consulta para que seja o povo saharaui a decidir como quer que seja o seu futuro». Naser Burita, o MNE marroquino, afirmou a seguir em conferência de imprensa ter tido uma «discussão directa» com Borrell. No dia seguinte, o Alto Representante da UE deu uma nova entrevista, à agência EFE. Embora longe da postura de Sánchez, “esclareceu” que a solução para o problema do Sahara Ocidental «passa por uma solução negociada entre as partes», «no âmbito das Nações Unidas». «Não expressamos uma preferência sobre a forma de o fazer. Isso é da responsabilidade das partes. E é em particular da responsabilidade do Enviado especial [na realidade, Pessoal] do Secretário-geral das Nações Unidas, o senhor De Mistura, cujo trabalho apoiamos». Custa ver a humilhação de um dirigente europeu, mas é a sua escolha.
 
Teve lugar na Tunísia nos dias 27 e 28 de Agosto a 8ª Conferência Internacional de Tóquio sobre o Desenvolvimento Africano (TICAD), que junta os membros da UA e o Japão. Marrocos fez o possível por afastar a RASD da participação nesta cimeira, como tinha tentado (sem o conseguir) no início deste ano em relação à cimeira UE-UA. Perante a recepção da delegação saharaui, liderada pelo Presidente da RASD e Secretário-geral da FPOLISARIO, Brahim Ghali, recebido oficialmente pelo seu homólogo tunisino, Rabat retaliou. Num comunicado divulgado no dia 26/8 anuncia que se retira da Conferência e chama o seu embaixador na Tunísia para consultas. O governo anfitrião da TICAD8 tomou a medida recíproca, explicitando: «Tal como a Tunísia respeita as resoluções das Nações Unidas, também está vinculada pelas resoluções da União Africana, da qual o nosso país é um dos fundadores.»
 
Não vale a pena efabular, quando a realidade é tão rica de acontecimentos significativos. 
 
Para além dos princípios a que está vinculado, e da informação que possui, o governo português está certamente atento ao sentir da opinião pública: a 6 de Julho o Primeiro Ministro e o MNE, João Gomes Cravinho, receberam uma Carta Aberta subscrita por 661 cidadãs e cidadãos e 16 organizações da sociedade civil, apresentando cinco solicitações concretas, com base na convicção de que Portugal pode e deve ter um papel relevante na solução que o povo saharaui espera há 47 anos.