domingo, 6 de novembro de 2022

FRENTE POLISARIO: DESAFIOS NUMA NOVA FASE DA LUTA

(Boletim nº 114 - Novembro 2022) 

A Frente POLISARIO prepara o seu XVI Congresso a realizar na wilaya de Dakhla, nos acampamentos de refugiados saharauis no sul da Argélia, entre 13 e 19 de Janeiro próximo. Irá ocorrer marcado pelo reinício da luta armada, em 2020, num contexto de crise sistémica que continua a agravar-se.

Anunciando o XVI Congresso (foto SPS)
Até agora o movimento de libertação realizou 15 congressos, dos quais dois extraordinários.
O primeiro decorreu em 28 de Abril de 1973 na localidade mauritana de Zueràt, ainda no tempo do domínio colonial de Madrid. Dele saiu uma declaração política analisando a situação e as razões que levaram o povo saharaui a recorrer às armas na luta contra a administração espanhola.
No 2º Congresso, realizado de 25 a 31 de Agosto de 1974, foi adoptado um programa de "acção nacional", apelando a todos, sem "discriminação" de género, raça ou posição social, a que se unissem em torno da Frente POLISARIO como o único e legítimo representante do povo saharaui. Foram também aprovadas as cores da bandeira e o hino nacional.
O 3º Congresso realizou-se entre 26 e 30 de Agosto de 1976, já depois da invasão marroquina e da proclamação unilateral, em 27 de Fevereiro desse ano, da República Árabe Saharaui Democrática (RASD). «Este Congresso apelou à luta do povo marroquino e mauritano contra os seus regimes e não contra um povo irmão e vizinho como o saharaui. (…).» Recordemos que entre 1974 e 1976 foram presos pelas forças de segurança de Rabat várias centenas de cidadãos marroquinos, dos quais 178 foram julgados em Janeiro de 1977, acusados de «atentado à segurança do Estado; conspiração para derrubar o regime; constituição de associações clandestinas com o fim derrubar o regime». E, ao mesmo tempo, «pelo seu [dos acusados] apoio ao princípio de autodeterminação do Sahara, afirmado antes e durante o processo», o que era considerado pelas autoridades «como uma ameaça à segurança externa do Estado, uma traição à nação marroquina.»
1
ALI, Karim, «Le Procès de Casablanca», Les Temps Modernes, nº 369, Avril 1977.
«Estes primeiros Congressos serviram para dirigir a guerra, organizar militarmente a POLISARIO, construir as infra-estruturas dos acampamentos e consolidar a Frente POLISARIO como a organização representativa do povo saharaui.»
A partir da assinatura do acordo de cessar-fogo em 1991 e da criação da MINURSO (Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental), a afirmação da RASD na comunidade das nações foi um tema central de debate nos congressos. «Se os primeiros Congressos se concentraram nos objectivos da guerra de libertação e na consolidação da POLISARIO, as reuniões subsequentes da organização centraram-se na consolidação do Estado saharaui e no seu lugar no continente. Nestes anos, os esforços da organização visavam obter um novo reconhecimento do Estado saharaui, alargando o círculo de relações diplomáticas de modo a abranger todos os continentes.»
Entretanto, coincidindo com a preparação do XVI Congresso e dando cumprimento a decisões do Congresso anterior de Dezembro de 2019, «O presidente saharaui ordena a reabilitação e reintegração de quadros e militantes que foram afectados no passado em consequência de "erros e abusos" (…). Esta é uma decisão histórica, que vem reparar a honra e os danos sofridos por algumas pessoas como resultado de enganos, erros e confrontos típicos de uma fase complicada da luta do povo saharaui. (…). Esta era uma decisão necessária e há muito esperada pela sociedade saharaui, uma vez que não só desagrava a honra das vítimas e das pessoas atingidas, mas também ajuda a curar as feridas e as diferenças entre sectores da sociedade saharaui. (…).»
Antecedendo esta decisão, o El Confidencial Saharaui publicou um artigo de opinião assinado por Mohamed Salem Abdelhay sobre «a necessária renovação geracional» da direcção do movimento de libertação. Mas alerta: «dadas as actuais circunstâncias políticas, que apontam para uma conspiração para impor a autonomia marroquina no nosso território, não estamos em posição de nos entregar a lutas internas enquanto travamos uma guerra total contra o nosso inimigo comum.»
E Abdelhay conclui: «Mudar a situação começa por mudar as mentes daqueles que foram atingidos pela doença do engano compulsivo, da grandeza e da ostentação, do sentimento de superioridade por razões hierárquicas ou tribais, e cada um de nós deve pensar e agir como um cidadão de um país ocupado militarmente e não como um espectador.»

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

ONU: DA POBREZA DO DISCURSO E RESPECTIVA PRÁTICA

(Boletim nº 114 - Novembro 2022)

No passado dia 3 de Outubro o Secretário-geral das Nações Unidas apresentou o seu relatório sobre a questão do Sahara Ocidental que «abrange os desenvolvimentos ocorridos desde a emissão do meu relatório anterior de 1 de Outubro de 2021 (S/2021/843) e descreve a situação no terreno, o estado das negociações políticas sobre o Sahara Ocidental, a implementação da Resolução 2602 (2021) e os desafios existentes para as operações da Missão e medidas tomadas para lhes fazer face.»

Descolonização ou ”desentendimento regional”?
Apresentado anualmente ao Conselho de Segurança, baliza a resolução que assegura o prolongamento do mandato da MINURSO — Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental – e o conteúdo do mandato do Representante Pessoal do Secretário-geral para o Sahara Ocidental, que dirige o processo negocial. Da sua leitura, sublinhamos a demissão das Nações Unidas na defesa dos seus próprios princípios.
Dias depois de ter sido aprovada uma moção na Comissão Especial de Políticas e Descolonização da Assembleia Geral das Nações Unidas (conhecida como Quarta Comissão), na qual se reconhece o Sahara Ocidental como um território não autónomo, pendente de descolonização, o relatório do Secretário-geral mantém a tendência que se tem vindo a afirmar no âmbito do Conselho de Segurança da ONU de apresentar o conflito não como uma questão de descolonização mas como um desentendimento regional do qual se exige das partes “boa-fé” e “bom senso”. O compromisso assumido pelas Nações Unidas de proceder a uma consulta à população saharaui – tal como o exige a sua própria Carta e resoluções e consubstanciado na criação da MINURSO — tem vindo a ser substituído por uma linguagem que abre a porta ao esquecimento deste compromisso. «[§90] Apesar deste contexto desafiador, continua a ser minha convicção que uma solução política para a questão do Sahara Ocidental é possível, desde que todos os interessados se empenhem de boa-fé e haja um apoio contínuo da comunidade internacional. As Nações Unidas continuam disponíveis para reunir todos os interessados na questão do Sahara Ocidental na procura de uma solução pacífica.» A ONU aparece como uma entidade benemérita que ajuda os desentendidos a entenderem-se. Como se não houvesse direito internacional e não competisse às Nações Unidas zelar pelo seu cumprimento. Como se não houvesse um território ocupado e um poder ocupante.
Neste quadro, actos ilegais de Marrocos são por vezes apontados mas nunca condenados, nem mesmo questionados, normalizando-os e branqueando as respectivas responsabilidades.
Alguns exemplos: «[§10] A 8 de Setembro de 2021 realizaram-se em Marrocos eleições legislativas, a nível regional e comunal e na parte do Sahara Ocidental sob controlo marroquino. Numa carta que me foi dirigida em 13 de Setembro, o Representante Permanente de Marrocos referiu-se às taxas de participação dos eleitores no Sahara Ocidental como "uma nova confirmação, através das urnas, do compromisso inabalável dos cidadãos das províncias do sul à sua marroquinidade".» A realização de eleições por parte do poder ocupante num território ocupado não é legítimo. Muito menos a aceitação deste tipo de argumentação que, aliás, nos poderia fazer perguntar: se as autoridades marroquinas estão tão seguras do resultado da votação, porque não aceitam o referendo?
«[§67] A exigência de Marrocos de que a MINURSO utilize matrículas de veículo marroquinas a oeste do muro de separação [isto é, na parte ocupada por Rabat], em contravenção do acordo de estatuto-de-missão, juntamente com a carimbagem dos passaportes MINURSO por Marrocos, também continuou a afectar a percepção da população local sobre a imparcialidade da Missão.
«Em Março de 2014, o meu Representante Especial chegou a um acordo verbal com o Governo de Marrocos para a substituição gradual das placas de matrícula marroquinas por matrículas das Nações Unidas (S/2014/258, §50). Esse acordo ainda não foi implementado.» Ao fim de oito anos, tudo o que a ONU tem para dizer é simplesmente reconhecer o facto?
Um dos maiores escândalos da actuação de Rabat é o sistemático fecho do território do Sahara Ocidental a todas as entidades e pessoas que não apoiam incondicionalmente a sua política de ocupação. Começando pelas próprias Nações Unidas:
«[§27] (...), o meu Enviado Pessoal tinha comunicado às autoridades marroquinas a sua intenção de visitar o Sahara Ocidental. Também assinalou publicamente esta intenção antes da sua viagem, observando que seria guiado pelo formato das visitas empreendidas pelos seus antecessores. Durante as consultas com as autoridades marroquinas sobre o planeamento da sua proposta de visita ao Sahara Ocidental, o meu Enviado Pessoal foi informado da posição do Governo de Marrocos de que não lhe seria possível encontrar-se com representantes da sociedade civil e organizações de mulheres por ocasião desta primeira visita. À luz dos princípios das Nações Unidas, em particular a importância da participação igualitária das mulheres e do seu pleno envolvimento em todos os esforços para a manutenção e promoção da paz e da segurança, e considerando também a importância do envolvimento com organizações da sociedade civil, o meu Enviado Pessoal decidiu não prosseguir com uma visita ao Sahara Ocidental durante a viagem, mas declarou que esperava fazê-lo durante as suas próximas visitas à região".»
«[§77] O Gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OHCHR) não pôde realizar quaisquer visitas ao Sahara Ocidental pelo sétimo ano consecutivo apesar de múltiplos pedidos e apesar do Conselho de Segurança na sua resolução 2602 (2021), encorajar fortemente o reforço da cooperação. A falta de informação em primeira-mão foi prejudicial para uma avaliação global dos direitos humanos na região. Além disso, defensores dos direitos humanos internacionais, investigadores, advogados e observadores foram alegadamente expulsos ou impedidos de entrar no Sahara Ocidental.»
Em 14 de Outubro o Secretário-geral da Frente POLISARIO Brahim Ghali escreveu a António Guterres dando-lhe conta da sua leitura do relatório apresentado, onde lhe chama a atenção para a parcialidade do mesmo, apontando exemplos concretos que justificam a sua crítica e a sua preocupação.
Como escreve Lehbib Abdelhay, «a única conclusão que se pode tirar do relatório do SG da ONU sobre o Sahara Ocidental é que ele dá aos saharauis motivos para prosseguirem a luta armada como única opção para alcançar os seus direitos e desconfiarem da ONU até que esta demonstre de novo a sua adesão às suas próprias resoluções sobre a questão da descolonização da última colónia africana.»