quarta-feira, 5 de outubro de 2022

ONU: PROCESSO NEGOCIAL A “MARCAR PASSO”

(Boletim nº 113, Outubro 2022)

Nos princípios do passado mês de Setembro o Enviado Pessoal do Secretário-geral das Nações Unidas para a questão do Sahara Ocidental, Staffan de Mistura, iniciou uma nova ronda pela região do Magrebe. Sem resultados visíveis.

Devagar vai-se longe?

Recorde-se que em 2 de Julho De Mistura esteve em Rabat, onde o Ministro dos Negócios Estrangeiros marroquino Nasser Bourita o fez esperar durante horas antes de o receber. Tinha previsto visitar posteriormente o Sahara Ocidental ocupado. Porém, a visita foi cancelada no último minuto sem terem sido dadas razões oficiais para tal decisão.
Em finais desse mês o embaixador argelino Amar Belani, encarregado do acompanhamento da questão do Sahara e dos países do Magrebe, informou que Marrocos tinha tentado impor interlocutores “fantoche” nessa sua visita, levando o Enviado Pessoal a anular a deslocação. «As razões são óbvias e bem conhecidas», disse Belani. «Depois de terem sido muito relutantes em organizar esta visita aos territórios saharauis ocupados, as autoridades marroquinas quiseram impor interlocutores fantoches ao Sr. De Mistura, incluindo colonos disfarçados de "representantes eleitos" ou de organizações vassalas e satélites (…)». A decisão de De Mistura de adiar esta viagem, «em condições tão inaceitáveis e ofensivas, honra-o com razão e irá inevitavelmente exercer pressão sobre Marrocos, que é assim apanhado no acto de sabotar os esforços do enviado pessoal do SG da ONU», acrescentou Belani.
De Mistura iniciou no dia 3 de Setembro a sua segunda ronda pela região no quadro das «consultas com as partes interessadas» com o objectivo de alcançar uma solução para a questão saharaui, preparatória da sua intervenção na próxima reunião do Conselho de Segurança a ter lugar este mês Outubro. Desta vez, porém, a Argélia vetou o recurso à Força Aérea de Espanha para a deslocação do Enviado Pessoal, como tem sido habitual com todos os emissários da ONU, tendo este recorrido a um voo da Air Algérie. O argumento invocado por Argel é que Madrid, ao aderir ao plano de autonomia marroquino, tinha perdido idoneidade. «Porque adoptou uma posição parcial» sobre o conflito, «a Espanha foi desqualificada e não pode de forma alguma ser associada aos esforços para reactivar o processo político» na procura de uma solução, disse um alto funcionário governamental argelino.
A primeira paragem foi nos acampamentos de refugiados . Aí reuniu, «durante o primeiro dia, com a delegação saharaui responsável pelas negociações, composta pelo ministro da Cooperação, Fatma al-Mahdi e o representante da Frente POLISARIO na ONU, Sidi Mohamed Omar, e chefiada pelo chefe do Secretariado da organização política da Frente POLISARIO, Khatri Addouh, antes de realizar uma reunião individual com o Chefe do Estado-Maior, Mohamed Elouali Akeik.»
Reuniu também com representantes das organizações da juventude e responsáveis da União Nacional das Mulheres Saharauis, da qual fazia parte a sua Secretária-geral Chaba Seini. «Uma oportunidade para realçar a realidade vivida pelas mulheres saharauis, em particular a repressão e os abusos a que estão sujeitas nos territórios ocupados por Marrocos, bem como o seu papel na luta pela liberdade e autodeterminação.»
No segundo dia da sua estadia reuniu com o Secretário-geral da Frente POLISARIO e presidente da RASD, Brahim Ghali, assim como com membros do Conselho Nacional (o parlamento saharaui) e do Conselho Consultivo.
De Mistura viajou depois para Argel onde se encontrou com o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Ramtane Lamamra. O breve comunicado de imprensa do Ministério argelino emitido no final desta reunião exclui a participação da Argélia em qualquer tipo de negociações. Argel defende um diálogo directo entre as duas partes em conflito, a Frente POLISARIO e Marrocos, como, aliás, Lamamra repetiria na Assembleia Geral das Nações Unidas onde pediu «à ONU que apoiasse o Enviado Pessoal do Secretário-geral para o Sahara Ocidental para que as duas partes em conflito, Marrocos e a Frente POLISARIO, retomem as negociações directas a fim de chegarem a uma solução política "mutuamente aceitável" que garanta a autodeterminação do povo saharaui de acordo com os princípios e objectivos da Carta das Nações Unidas.»
De Mistura terminaria o seu périplo em Nuakchott, a capital da Mauritânia, onde se encontrou com o seu presidente, Mohamed Ould Ghazouani. No final da reunião não prestou declarações à comunicação social mas segundo a agência noticiosa EFE, citando uma fonte diplomática mauritana, «as discussões centraram-se nos resultados das visitas do enviado da ONU à região e no papel de Nuakchott na facilitação de uma solução para o conflito. Na reunião, Nuakchott reiterou a sua posição "neutra" sobre o assunto.»
Em finais de Outubro o Secretário-geral das Nações Unidas, depois de ouvir o seu Enviado Pessoal, apresentará ao Conselho de Segurança o seu relatório semestral sobre o processo de descolonização do Sahara Ocidental.


 

ÁFRICA: COLONIALISMO FRANCÊS CONTINUA VIVO

 (Boletim nº 113 - Outubro 2022)

O apoio que a França tem dado à ilegal ocupação marroquina do Sahara Ocidental não é uma excepção na sua política externa para África. Tanto assim que há observadores que a catalogam como “colonização 2.0”.

«A sul nada de novo» (foto Public Sénat)

Um destes observadores é Vava Tampa, um articulista centrado na análise da região dos Grandes Lagos Africanos, da descolonização e da cultura. Em 26 de Julho o The Guardian publicou um artigo seu com o expressivo título: «A Françafrique está de volta: A visita de Macron aos Camarões assinala a Colonização 2.0», onde aborda o que tem sido a política francesa em África pós-1945 e as suas consequências para as populações africanas.
«Quando o presidente francês, Emmanuel Macron, desembarcou em Yaoundé, Camarões, na segunda-feira [25 Julho] para uma visita de dois dias, os líderes fantoches franceses em toda a África tiveram uma coisa garantida: a Françafrique está de volta. A questão é o que isto significa para o futuro de milhões [dos seus habitantes].
«A resposta - e o legado de Macron - é mais repressão, mais golpes de Estado, mais corrupção, mais violência, mais sofrimento e, em última análise, mais refugiados e migrantes a fazerem viagens perigosas para a Europa em busca de segurança. Significará também uma maior incursão da Rússia e da China, que realçam os crimes coloniais europeus, mesmo quando aumentam a sua própria influência.
«Nascido após a independência das antigas colónias francesas em África, Macron apresenta-se como a antítese da Françafrique - a doutrina que dita os termos da governação nas antigas colónias francesas, pela força militar se necessário - ou, como eu a vejo, a Colonização 2.0.
«Em vez de o abolir, Macron reformou o franco colonial CFA - originalmente franc des colonies françaises d’Afrique - uma moeda ainda impressa em França e utilizada por 14 países africanos. (…).
«Nenhuma justificação para a visita de Macron pode apagar o facto de Paris continuar a ser a base da Françafrique e das suas marionetas - como Alassane Ouattara, na Costa do Marfim; Ali Bongo Ondimba, no Gabão; Faure Gnassingbé, no Togo; Gen Mahamat Déby, no Chade; Denis Sassou Nguesso, no Congo-Brazzaville; bem como Biya [nos Camarões] - que a França abriga sob o seu guarda-chuva diplomático e de segurança, apesar dos abusos grosseiros dos direitos humanos, corrupção e fraude eleitoral que empobreceram os seus países. (…).
«Macron, obviamente, sabe tudo isto, mas parece que o que mais importa ainda é a Françafrique
Dois académicos - Anis Chowdhury e Jomo Kwame Sundaram – publicaram por sua vez um artigo com o sugestivo título «Como a França subdesenvolve a África». Escreveram eles:
«Os acordos monetários coloniais anteriores à Segunda Guerra Mundial foram consolidados na zona do franco das Colonies Françaises d'Afrique (CFA), criada a 26 de Dezembro de 1945. A descolonização tornou-se inevitável após a derrota da França em Dien Bien Phu em 1954 e a retirada da Argélia menos de uma década depois.
«A França insistiu em que a descolonização deve envolver "interdependência" - presumivelmente assimétrica, em vez de entre iguais - não uma verdadeira "soberania". Para que as colónias conseguissem a 'independência', a França exigia a adesão à Communauté Française d'Afrique (ainda CFA) - criada em 1958, substituindo “colónias” por “Communauté”. (…).»
«A Guiné-Conacri foi a primeira a deixar a CFA em 1960. Perante compatriotas seus, o Presidente Sékou Touré disse ao Presidente Charles de Gaulle: "Preferimos a pobreza na liberdade à riqueza na escravatura".
«A Guiné enfrentou logo a seguir os esforços franceses de desestabilização. Notas falsas foram impressas e distribuídas para utilização na Guiné-Conacri - com consequências previsíveis. Esta fraude maciça deu cabo da economia guineense. (…).
«O ex-chefe do Service de Documentation Extérieure et de Contre-espionnage (SDECE) Maurice Robert reconheceu mais tarde que "a França lançou uma série de operações armadas utilizando mercenários locais, com o objectivo de desenvolver um clima de insegurança e, se possível, derrubar Sékou Touré". (…).
«O presidente Sylvanus Olympio, dirigente do Togo independente, foi assassinado em frente à embaixada dos EUA a 13 de Janeiro de 1963. Isto aconteceu um mês depois de ter estabelecido um Banco Central, emitindo o franco togolês como moeda com curso legal. Evidentemente, o Togo permaneceu na CFA.
«O Mali deixou a CFA em 1962, substituindo o franco CFA pelo franco maliano. Mas um golpe em 1968 afastou o seu primeiro presidente, o dirigente radical da independência Modibo Keita. Sem surpresas, o Mali voltou mais tarde a integrar a CFA, em 1984.»
Ndongo Samba Sylla é um economista senegalês de desenvolvimento e investigador no Gabinete da África Ocidental da Fundação Rosa Luxemburgo. Em Março do ano passado apresentou um texto sobre «O franco CFA como símbolo vivo das continuidades coloniais na África francófona».
«(…). A persistência de relações monetárias e financeiras neo-coloniais não favoreceu nem a transformação estrutural nem a integração regional, e fez ainda menos pelo desenvolvimento económico dos países CFA, nove dos quais, em 14, se encontram entre os Países Menos Desenvolvidos. Em termos de realizações nos domínios da saúde e da educação, os países que utilizam o franco CFA ocupam as posições mais baixas a nível mundial. Entre um total de 189 países, o Níger, a República Centro-Africana e o Chade tiveram a pontuação mais baixa no Índice de Desenvolvimento Humano de 2020. Numa perspectiva de longo prazo, os rendimentos reais médios estagnaram ou diminuíram em cinco das maiores economias que utilizam o franco CFA: Costa do Marfim, Camarões, Gabão, Senegal e República do Congo. (…). Por outras palavras, a existência do franco CFA favorece um tipo particular de liderança política. Aqueles que podem ambicionar dirigir os países CFA são aqueles que não porão em causa as suas limitações. São estes dirigentes que gozaram da solidariedade activa e do apoio do governo francês nas últimas seis décadas. (…).
«Face aos protestos crescentes contra esta relíquia colonial conduzidos por movimentos sociais e intelectuais pan-africanistas, a França, em aliança com a Costa do Marfim, decidiu em Dezembro de 2019 suavizar a sua posição sobre o franco CFA na África Ocidental. Tal como nas anteriores reformas, a actual tem um alcance muito limitado. A sua intenção é atacar os símbolos embaraçosos - o nome da moeda, a representação francesa no seio do Banco Central dos Estados da África Ocidental e o controlo do Tesouro francês sobre as reservas cambiais deste último - ignorando ao mesmo tempo os pontos que os economistas africanos criticam: a existência de uma ligação formal de subordinação monetária entre a França e os países CFA, a paridade fixa com o euro, a [não] liberdade de transferências, e também a existência de duas uniões monetárias [UEMOA - Union économique et monétaire ouest-africaine e CEMAC - Communauté économique et monétaire de l'Afrique centrale] que não têm outro fundamento que não seja a história colonial.»


 

RESPEITAR OU OBSTACULIZAR O DIREITO INTERNACIONAL, EIS A QUESTÃO

(Boletim nº 113, Outubro 2022)

Enquanto a guerra prossegue no Sahara Ocidental ao longo do “muro da vergonha”, e o processo de reatamento das negociações sob os auspícios da ONU se revela, mais uma vez, difícil, as diplomacias de ambas as partes – Marrocos e a Frente POLISARIO — mantêm-se extremamente activas. A conjuntura internacional também o propicia.

Gustavo Petro com, à sua direita, Mohamed Salek

A 22 de Setembro o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos emitiu uma sentença na qual lembra que «a noção de autodeterminação tem uma forte ressonância em África e reveste um significado particular e profundo para o seu povo. A colonização, o apartheid, a ocupação militar e as diversas formas de opressão estrangeira das quais o continente foi vítima moldaram a identidade e a história africanas como sendo intrinseca e inextricavelmente ligadas à luta pela autodeterminação.» (§ 290). E faz notar que a Carta da União Africana (UA) «consagra, além disso, explicitamente, o direito dos povos colonizados ou oprimidos a libertarem-se dos laços de dominação e o direito à assistência dos Estados-partes na sua luta pela liberdade.» (§ 295).
«(…) o Tribunal observa que a ONU e a UA reconhecem a situação da RASD como uma situação de ocupação e consideram o seu território como um dos territórios cujo processo de descolonização ainda não está totalmente concluído. Por conseguinte, ambas as organizações têm apelado consistentemente a Marrocos e à RASD para que se empenhem de boa-fé em negociações directas, com vista à realização de um referendo para garantir o direito à autodeterminação do povo saharaui.» (§301).
«O Tribunal sublinha que a ocupação continuada da RASD por Marrocos é incompatível com o direito à autodeterminação do povo da RASD, tal como consagrado no artigo 20 da Carta, e constitui uma violação desse direito.» (§303). «O Tribunal observa que tendo em conta que uma parte do território da RASD continua ocupado por Marrocos, é incontestável que os Estados que são partes da Carta têm individual e coletivamente uma obrigação para com o povo da RASD, a de proteger o seu direito à autodeterminação, em particular prestando-lhe assistência na sua luta pela liberdade, abster-se de qualquer tipo de reconhecimento da ocupação marroquina e denunciar a violação dos direitos humanos que possam resultar desta ocupação.» (§307).
«O Tribunal reitera (…) que todos os Estados-partes da Carta e do Protocolo, bem como todos os Estados-membros da União Africana, têm a responsabilidade, nos termos do direito internacional, de encontrar uma solução permanente para a ocupação, de garantir o usufruto do direito inalienável do povo saharaui à autodeterminação, e de não fazer nada que possa reconhecer essa ocupação como legal ou obstaculizar o usufruto desse direito.» (§323).
O veredicto foi resultado de uma queixa interposta por um cidadão do Gana, representado por um conhecido advogado nigeriano, Femi Falana, contra oito países – Benim, Burkina Faso, Costa do Marfim, Gana, Mali, Malawi, Tanzânia e Tunísia – pelo facto de não terem cumprido com os seus deveres de proteger os direitos políticos, económicos, sociais e culturais do povo saharaui estipulados na Carta Constitutiva da União Africana, na Carta Africana dos Direitos Humanos e noutros textos legais, incluindo os dois pactos internacionais dos Direitos Humanos. Embora estes Estados não tenham sido condenados, em resposta aos termos em que foi apresentada a queixa, o Tribunal tornou inequívoco o direito à autodeterminação do povo do Sahara Ocidental e as obrigações daí decorrentes para todos os Estados-membros da UA.

Dois pesos, duas medidas

Os êxitos diplomáticos de cada parte do conflito têm-se medido através de alguns actos concretos: o reconhecimento ou o restabelecimento de relações entre a RASD e outros Estados e a reafirmação jurídica do direito do povo saharaui à autodeterminação, por um lado; a abertura de consulados no território ocupado e declarações de apoio à proposta de autonomia no quadro da soberania marroquina, por outro.
Ao longo dos anos, fruto das pressões e das ofertas marroquinas, vários países suspenderam o reconhecimento ou recusaram continuar a reconhecer a RASD. Alguns abriram consulados em El Aiun (capital do Sahara Ocidental) ou Dakhla (cidade portuária importante), embora não tenham cidadãs e cidadãos, nem empresas, que o justifiquem: é um agradecimento à potência ocupante pelos benefícios recebidos. Estão neste caso as Comores (2019); o Bahrein, o Burkina Faso, o Burundi, a Costa do Marfim, Djibuti, os Emirados Árabes Unidos, Essuaitíni, o Gabão, a Gâmbia, a Guiné-Bissau, a Guiné-Conacri, a Guiné Equatorial, o Haiti, a Libéria, a República Centro-africana, a República Democrática do Congo, São Tomé e Príncipe, a Zâmbia (2020); a Jordânia, o Malawi, o Senegal, a Serra Leoa, o Suriname (2021); o Togo e Cabo Verde foram os mais recentes (2022).
De acordo com a sentença do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, acima mencionada, estes países (maioritariamente africanos) estão activamente a «obstaculizar [o] direito [à autodeterminação]» do povo saharaui.
Os EUA e a Espanha não constam desta lista. Donald Trump reconheceu através de um tweet, em Dezembro de 2020, já depois de perder as eleições, a soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental – declaração que não foi negada até agora pela administração Biden – mas nenhum dos planos subsequentes teve seguimento, nomeadamente o de abrir um consulado em Dakhla. Pelo contrário, o Senado norte-americano aprovou em Agosto passado uma proposta de orçamento para o ano fiscal de 2023 na qual recusa explicitamente qualquer financiamento para a construção ou funcionamento de um consulado.
A Espanha protagonizou até agora a maior cedência política à chantagem de Rabat, ao considerar oficialmente em Março que o plano de autonomia proposto pelo Reino de Marrocos em 2007 representa a proposta «mais séria, realista e credível» para a resolução da questão saharaui e, mais grave, que este posicionamento serve «para garantir a estabilidade, soberania, integridade territorial e prosperidade dos nossos dois países» (como se sabe, a “integridade territorial” de Marrocos significa, para este país, o reconhecimento da sua soberania sobre o território não-autónomo do Sahara Ocidental). Mas na Assembleia Geral da ONU, em Setembro, o Presidente do governo Pedro Sánchez limitou-se a sinalizar que o seu país «apoia uma solução política mutuamente aceitável», regressando à retórica mínima habitual.
É que não é fácil negar claramente o Direito Internacional, não só quando se sucedem sentenças que reforçam inequivocamente o estatuto do Sahara Ocidental como território sem qualquer vínculo com Marrocos, por isso não-autónomo e pendente de um processo de descolonização (Tribunal de Justiça da UE, em 2021; Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, em 2022), mas para mais quando, a propósito da invasão russa da Ucrânia, se somam as declarações veementes a favor do direito à autodeterminação dos povos e contra a aquisição de territórios pela força…
Talvez tenha sido por isso que o Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, Josep Borrell, declarou a 23 de Agosto numa entrevista à televisão espanhola (RTVE): «A posição do Governo espanhol foi e é a da UE, ou seja, defender a realização de uma consulta para que seja o povo saharaui a decidir como quer que seja o seu futuro». O MNE marroquino, Naser Bourita, discutiu directamente com Borrell, de tal modo que ele teve de dar uma nova entrevista (à agência EFE), no dia seguinte, mas não conseguiu dizer mais do que reafirmar que a solução para o problema do Sahara Ocidental «passa por uma solução negociada entre as partes», «no âmbito das Nações Unidas». Irritado, o ministro Bourita desmarcou um encontro já agendado para Setembro com o Alto Representante da UE.
Na mesma semana, Rabat tentou tirar partido da visita da MNE alemã, Annalena Baerbock, a Marrocos. Lentamente, as relações entre os dois países, praticamente suspensas desde Março de 2021 por súbita iniciativa marroquina, foram sendo retomadas. Agora, uma declaração conjunta publicada no final da visita (26 Agosto), indicou que «A Alemanha considera o plano de autonomia apresentado em 2007 como um esforço sério e credível de Marrocos e como uma boa base para uma solução aceite pelas duas partes». No entanto, estamos longe da fórmula de Sánchez: a proposta «mais séria, realista e credível» (ou, seja a única).
Pelo facto da divulgação desta posição ter coincidido com a visita de estado do Presidente francês, Emmanuel Macron, à Argélia (25-27 Agosto) com, entre outras coisas, a questão do gás em cima da mesa, ela acabou por não ter internacionalmente o relevo desejado.

A luta continua!

A República Árabe Saharaui Democrática, proclamada unilateralmente pela Frente POLISARIO a 27 de Fevereiro de 1976, foi posteriormente reconhecida por 84 países e em 1984 a RASD tornou-se membro de pleno direito da Organização de Unidade Africana (OUA). Essa circunstância levou Marrocos, em protesto, a pedir de imediato a sua demissão da organização continental, à qual voluntariamente regressou em 2017 – nesse momento já transformada em União Africana (UA) — em reconhecimento implícito do fracasso da estratégia anterior.
No último mês, o Presidente da RASD e Secretário-geral da FPOLISARIO, Brahim Ghali, foi convidado para participar em três eventos importantes: a 8ª Conferência Internacional de Tóquio sobre o Desenvolvimento Africano (TICAD), que junta os membros da UA, o Japão e algumas organizações internacionais (Tunes, 27 e 28 de Agosto); a tomada de posse do Presidente do Quénia, William Ruto (Nairobi, 13 de Setembro); e a tomada de posse do Presidente de Angola, João Lourenço (Luanda, 15 de Setembro). Foi sempre recebido com honras de Chefe de Estado, como todos os seus colegas da UA.
Marrocos reagiu intempestivamente: na véspera da TICAD8 divulgou um comunicado em que anuncia que se retira da Conferência e chama o seu embaixador na Tunísia para consultas. O governo anfitrião tomou a medida recíproca, explicitando: «Tal como a Tunísia respeita as resoluções das Nações Unidas, também está vinculada pelas resoluções da União Africana, da qual o nosso país é um dos fundadores.» De relações cortadas com a Argélia, ameaçando regularmente a Mauritânia, Rabat amplia o seu isolamento na região ...
Em Nairobi, o MNE marroquino foi recebido no dia 14 pelo novo Presidente, que logo publicou no twitter: «Na Residência Oficial em Nairobi, recebida uma mensagem de parabéns de Sua Majestade o Rei Mohamed VI. O Quénia rescinde o seu reconhecimento da RASD e dá os primeiros passos para reduzir a presença da entidade no país». Horas depois a declaração foi apagada, mas, entretanto, o Ministério dos Negócios Estrangeiros marroquino tinha divulgado um comunicado oficial: «No seguimento da mensagem de Sua Majestade o Rei Mohamed VI ao novo Presidente da República do Quénia, Senhor William Ruto, a República do Quénia decidiu revogar o reconhecimento da chamada ‘RASD’ e dar os primeiros passos para fechar a sua representação em Nairobi». E acrescentava que tinha sido assinada uma declaração conjunta na qual «por deferência ao princípio da integridade territorial e da não-ingerência, a República do Quénia [tinha dado] o apoio total ao plano de autonomia sério e credível proposto pelo Reino de Marrocos» como a única solução possível para a questão do Sahara.
Para além da surpresa, as reações internas não se fizeram esperar, vindas de vários quadrantes. Cinco dias depois, o Ministério dos Negócios Estrangeiros queniano publicou, por sua vez, um comunicado, datado do dia 16: «A posição do Quénia sobre a RASD está totalmente alinhada com a Carta da UA que apela ao direito inquestionável e inalienável de um povo à autodeterminação. (…). A Resolução 690 (1991) do Conselho de Segurança da ONU apela à autodeterminação do Sahara Ocidental através de um referendo livre e justo organizado pela ONU e pela UA. O Quénia apoia à letra a implementação desta Resolução do Conselho de Segurança da ONU». E esclarece ainda: «Faz-se igualmente notar que o Quénia não conduz a sua política externa no Twitter ou em quaisquer outras plataformas sociais, mas sim através de documentos e funcionários governamentais».
Um caso com contornos semelhantes tinha acontecido no início de Agosto no Perú. O Presidente Pedro Castillo empossou no dia 5 um novo MNE, Miguel Rodriguez, a quem o ministro marroquino dos Negócios Estrangeiros telefonou, dois dias depois. De imediato ele cancelou o reconhecimento da RASD, celebrado um ano antes. A oposição protestou veementemente e exigiu a sua demissão. Um mês depois, o Presidente aceitou a carta de renúncia do ministro, reafirmou o respeito pelo direito à autodeterminação do povo saharaui e o reconhecimento da RASD, e voltou a chamar César Landa, o anterior MNE, para preencher o cargo.
Tranquila foi a cerimónia na qual, a 8 de Agosto, dia seguinte à histórica tomada de posse de Gustavo Petro como Presidente da Colômbia, este, ao lado do MNE saharaui, Mohamed Salem Ould Salek, confirmou o reconhecimento da RASD pelo seu governo.
Também o Sudão do Sul retomou as relações diplomáticas com a República Árabe Saharaui Democrática, em encontro entre as autoridades dos dois governos, à margem da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, no dia 20 de Setembro. Mas logo à embaixada do país em Rabat foi exigido um esclarecimento sobre o significado de tal reunião. O porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Sudão do Sul assinala então em comunicado que «o encontro entre a nossa delegação [chefiada pelo Vice-Presidente do país] e o Ministro dos Negócios Estrangeiros Saharaui não nega as nossas relações estratégicas bilaterais com o Reino [de Marrocos]. Além disso, a República do Sudão do Sul é um membro da União Africana e das Nações Unidas e gostaria de reiterar que não considera adequado ter opiniões contrárias à posição da União Africana e à resolução 690 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, como um quadro de compromisso viável que permita encontrar uma solução duradoura para a disputa relativa ao Sahara Ocidental». A explicação não deve ter sido suficiente, porque no dia seguinte o MNE sudanês, Mayiik Ayii Deng, escreveu ao seu homólogo marroquino, retomando integralmente os dois parágrafos acima citados, mas acrescentando outros dois: «Neste contexto, a República do Sudão do Sul, que apenas reconhece Estados que são membros da ONU, considera que um contacto com uma delegação não significa de nenhuma forma um reconhecimento estatal. Esperando sinceramente que esta explicação seja satisfatória para permitir que os dois países amigos continuem a reforçar as suas cordiais relações diplomáticas (...)».
Neste momento, em África, a RASD tem relações diplomáticas, a nível de embaixada, com a África do Sul, Angola, Argélia, Botsuana, Etiópia, Moçambique, Nigéria, Quénia, Tanzânia, Uganda e Zimbabué e é reconhecida ainda pelo Chade, Gana, Lesoto, Líbia, Mali, Maurício, Mauritânia, Namíbia, Ruanda, Seicheles e Sudão do Sul.
No quadro da CPLP, dos seus nove membros, três reconhecem a RASD e acolhem os seus embaixadores: para além de Angola e Moçambique, também Timor-Leste.
Nas Américas, há embaixadas da RASD em Cuba, Equador, México, Nicarágua, Panamá, Uruguai e Venezuela, e o Estado saharaui é também reconhecido pelo Belize, Bolívia, Colômbia, Honduras, Peru e Trinidad e Tobago.