terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Boletim nº 92 - Janeiro 2021

 

DESCOLONIZAÇÃO DO SAHARA OCIDENTAL: ENTRE A GUERRA … E A GUERRA?

O conflito no Sahara Ocidental está a agudizar-se. Marrocos procura passar a mensagem de que “tudo corre bem” enquanto a Frente POLISARIO lembra todos os dias à comunidade internacional – às Nações Unidas — que existe um conflito de descolonização que já se arrasta há demasiado tempo.

O segundo mês

Em 6 de Dezembro realizou-se — por videoconferência – a 14ª Sessão Extraordinária da Conferência da União Africana (UA), dedicada ao tema “Silenciar as armas: criando as condições adequadas para alcançar o desenvolvimento em África”. A questão do Sahara Ocidental foi examinada pelas delegações participantes.
Na sua intervenção, o Presidente da República Árabe Saharaui Democrática (RASD) e Secretário-geral da Frente POLISARIO, Brahim Ghali, enfatizou perante os seus pares o «início do confronto armado entre a RASD e o Reino de Marrocos, desde o dia 13 de Novembro passado», responsabilizando a «política de terra queimada por parte de Marrocos, a recusa total das suas obrigações, o seu torpedeamento do processo de paz da ONU e a prossecução de uma política de expansão para outras partes do território nacional do Sahara (...).»
Lembrou que «O consenso africano sobre uma solução africana para o conflito foi alcançado desde a década de 1980, e um comité de sábios, composto por chefes de Estado africanos, trabalhou durante cinco anos e realizou dez reuniões de alto nível a fim de cristalizá-lo na sua forma final na Resolução 104 aprovada pela Organização da Unidade Africana no ano de 1983. Esta resolução foi apresentada pela República do Senegal, em nome de África, à Assembleia Geral das Nações Unidas, que por sua vez a aprovou em 1984 e 1985, como a pedra angular do plano de resolução das Nações Unidas para a África de 1991. O povo saharaui respondeu e cooperou com toda a sinceridade e seriedade nestes esforços, porque é um povo pacífico e tem uma vontade e um desejo sinceros de trazer uma paz duradoura e justa para a região e África. A prova disso é a paciência de quase trinta anos à espera de uma solução pacífica. (…).
«O conflito entre a RASD e o Reino de Marrocos é sobretudo uma questão africana. A União Africana não é apenas parceira das Nações Unidas nos esforços para resolver o conflito do Sahara, é também directamente responsável e parte interessada em acelerar a solução desta questão africana e acabar com as últimas manifestações de colonialismo no continente, como um objectivo fundamental assumido pelos pais fundadores e que a organização recomendou na sua declaração histórica em 2013. (…).»
«A política de expansão, agressão e ocupação de terras alheias pela força militar impede os esforços do continente em silenciar as armas. Assim, a RASD, membro fundador da União Africana, e face à extrema gravidade desta nova agressão marroquina, exige, com urgência, que se obrigue o nosso vizinho Reino de Marrocos a cumprir integralmente os objectivos e princípios da Lei Constitutiva que assinou e ratificou, sem qualquer reserva, após a adesão à União, acabando com a ocupação militar ilegal de partes do nosso solo nacional.»
Segundo a agência noticiosa SPS, vários países – maioritariamente libertados dos colonialismos luso e britânico (Angola, Moçambique, África do Sul, Zimbabué, Lesoto, Namíbia, Quénia, …) - manifestaram na Cimeira a sua solidariedade com a RASD, expressando o seu empenho em erradicar definitivamente de África o peso deste passado.
Por proposta do Lesoto, a Cimeira decidiu inscrever de novo na agenda de trabalhos do Conselho de Paz e Segurança da UA a questão do Sahara Ocidental, visando realizar uma sessão extraordinária na presença dos dois Estados membros da União Africana, a RASD e o Reino de Marrocos, com vista à concretização de um novo cessar-fogo.
Do ponto de vista militar o regime de Rabat comporta-se como se vivesse no melhor dos mundos. Nada de notícias de carácter belicoso. A estratégia é passar a mensagem “não há cá guerra nenhuma!”. E insistir no “desenvolvimento económico” que o Reino tem propiciado como argumento face às reivindicações saharauís.
A Frente POLISARIO publica diariamente um comunicado sobre a sua actividade militar. Segundo o sítio El Confidencial Saharaui (ECS), durante o primeiro mês de guerra terão ocorrido mais de 160 bombardeamentos sobre uma vintena de alvos militares marroquinos ao longo do muro de separação, sendo indicadas a sua localização e a identificação das forças inimigas envolvidas e a respectiva frequência. Salem Mohamed, articulista no ECS, lembra-nos que essa é a tarefa dos saharauis, enfrentar «uma ditadura que dispõe despoticamente da vida de mais de 35 milhões de marroquinos e de um exército de cerca de 250.000 homens».
A historiadora Gemma Esteban Dorronzoro teve a oportunidade, muito recentemente, de participar numa «conferência [virtual] organizada pelo “Centro de Estudos Políticos e Estratégicos para a Paz” com sede em El Aaiún (Sahara Ocidental) sob o título “Saguia el Hamra e Río de Oro, escalada actual e perspectivas de paz», a fim de abordar a situação actual que atravessa o conflito no Sahara Ocidental e as alternativas possíveis para que a paz prevaleça sobre a guerra.»
Conforme confessa «A expectativa que caracterizou o início da apresentação foi evoluindo para um espanto particular da minha parte. A ausência de defesa do direito internacional e da legalidade, bem como a prioridade dada à divulgação do desenvolvimento económico da região foram as notas dominantes. A busca por alternativas pacíficas à guerra foi relegada a um único plano: a aceitação da autonomia.»
Gemma Esteban cita um dos participantes (Ahmed Bengamar), que se apresentou como militante do Podemos, cuja intervenção a «deixou estupefacta». Disse ele: «Houve um bloqueio pelos activistas pró-polisario desde meados de Outubro e finalmente Marrocos decidiu enviar os seus militares (...) para restaurar a circulação normal dos veículos que estavam lá bloqueados e Marrocos, como qualquer Estado soberano, tem todo o direito do mundo para intervir, para desbloquear, para que as mercadorias que vão para a Mauritânia, para a África Ocidental a partir de Marrocos possam seguir o seu caminho diário e este é um direito que pertence a qualquer Estado do mundo, ou seja, ninguém tem o direito de bloquear uma fronteira, é como bloquearmos aqui [Espanha] a fronteira com a França.»
Escreve Gemma Esteban: «Para mim, como comentei nas ocasiões em que tive oportunidade durante a conferência, a resolução de conflitos de forma pacífica deve respeitar as regras do direito internacional, implementando as resoluções aprovadas no Conselho de Segurança que estabelecem esse direito inalienável dos povos para decidir o seu futuro.»
E conclui: «No entanto, penso que aí está a contradição e lanço uma reflexão no sentido de que os Estados membros que fazem parte das Nações Unidas e que em tese defendem esse direito, como a França e os Estados Unidos – que, juntamente com outros três Estados, têm o anacrónico direito de veto – são os mesmos que impedem qualquer iniciativa que obrigue as Nações Unidas a fazer cumprir as suas resoluções e a pôr fim a essa rebelião contra o direito internacional.»
No dia 21 de Dezembro o Conselho de Segurança das Nações Unidas, sob a presidência do representante permanente da República da África do Sul, reuniu à porta fechada, por iniciativa da Alemanha, para debater a actual situação no Sahara Ocidental. De acordo com o despacho da agência SPS, «Os membros receberam duas apresentações, uma da Sra. Bintou Keita, Delegada Adjunta do Departamento de Manutenção da Paz da ONU para os Assuntos Políticos e de Segurança em África, e outra do Sr. Colin Stewart, Representante Especial do Secretário-geral para o Sahara Ocidental e Presidente da Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO). (…). A reunião foi unânime no apoio ao processo político e na reafirmação da necessidade imperiosa de designar um novo Enviado Pessoal [do Secretário-geral] da ONU para o Sahara Ocidental. Nesse sentido, alguns países expressaram o seu repúdio à proclamação do presidente cessante dos Estados Unidos, Donald Trump, que consideraram uma violação da legalidade internacional e das resoluções da ONU.»
No dia seguinte o governo da RASD publicou um comunicado onde considera que «A adesão do Conselho de Segurança à natureza jurídica da questão saharaui e à solução pacífica baseada nas resoluções de legitimidade internacional constituem uma condenação da política de ocupação e dos seus cúmplices que visam confiscar o direito inalienável do povo saharaui à autodeterminação e independência, e um duro golpe para a declaração do presidente norte-americano, Trump.»