terça-feira, 4 de abril de 2023

PEDRO SÁNCHEZ, A UCRÂNIA E O SAHARA OCIDENTAL

 (Boletim nº 119 - Abril 2023)

Em princípios de Março passado Lluís Capdevila escreveu um texto onde analisa o comportamento do Primeiro-ministro de Espanha Pedro Sánchez no conflito na Ucrânia e no Sahara Ocidental. Apresentamos aqui a sua tradução.

"A violação do direito internacional não pode ficar impune"

«Já passou mais de um ano desde que Putin lançou a "operação militar especial" sobre o Donbass que deu início à invasão russa da Ucrânia. No mesmo dia, 24 de Fevereiro de 2022, o Primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, apareceu em La Moncloa para fazer uma declaração institucional e transmitir aos cidadãos espanhóis uma "condenação retumbante" da Rússia por violar a legalidade internacional e invadir um país vizinho.
«Mas o mesmo Pedro Sánchez não deixou passar um mês após essa declaração em La Moncloa para posicionar a Espanha, em relação a outro conflito armado, do lado do país invasor, Marrocos, que viola a mesma legalidade internacional desde 1975, quando iniciou a sua própria ocupação militar de outro país vizinho: o Sahara Ocidental. Aparentemente, o que Sánchez quer para o povo ucraniano, não o quer para os saharauis.
«Nessa declaração em La Moncloa, o Primeiro-ministro espanhol descreveu a invasão russa do território ucraniano como "uma violação flagrante do direito internacional, da soberania nacional e da integridade territorial da Ucrânia", bem como um "ataque frontal" aos princípios e valores que, segundo Sánchez, "estão na base da nossa Constituição, da Constituição espanhola", tais como "os valores da paz, do respeito pela legalidade internacional, da solidariedade e também da cooperação humanitária com os povos afectados".
«"A Espanha defenderá a legalidade internacional, a Espanha esforçar-se-á por restabelecer a paz", prosseguiu o Primeiro-ministro, mostrando ao mesmo tempo solidariedade "com os povos afectados pela agressão". A que distância está o Sahara quando o mesmo compromisso com a legalidade internacional e a mesma solidariedade são exigidos por outro povo invadido, mesmo que o faça das suas tendas nos campos de refugiados de Tindouf ou das áreas ocupadas do Sahara Ocidental?
«Mas longe de mostrar uma coerência mínima entre os discursos sobre os dois conflitos, e apenas três semanas após a declaração institucional de Pedro Sánchez em La Moncloa para condenar a invasão russa da Ucrânia, a Casa Real Marroquina tornou pública, a 18 de Março de 2022, uma carta que o Primeiro-ministro espanhol tinha enviado ao rei Mohammed VI na qual o primeiro afirmava que a proposta de Marrocos de autonomia no Sahara Ocidental era "a base mais séria, credível e realista para a resolução" do conflito. Na mesma carta, Sánchez reiterava a sua "determinação em enfrentar juntos desafios comuns, especialmente a cooperação na gestão dos fluxos migratórios no Mediterrâneo e no Atlântico, num espírito de plena cooperação" e expressava que "todas estas acções serão levadas a cabo com o objectivo de garantir a estabilidade e integridade territorial dos dois países".
«Segundo a declaração do Gabinete Real marroquino, Pedro Sánchez disse também ao monarca alauita que a Espanha agiria "com a transparência absoluta que convém a um grande amigo e aliado" e que o seu país "honrará sempre os seus compromissos e a sua palavra".
«Nessa mesma noite, o Ministro dos Negócios Estrangeiros espanhol, José Manuel Albares, compareceu perante os meios de comunicação social onde, longe de criticar a forma como o Reino de Marrocos tornou pública a carta, confirmou o que nela foi expresso e afirmou tratar-se "do início de uma nova etapa" nas relações entre Espanha e Marrocos.
«- A Espanha reconhece os esforços sérios e credíveis de Marrocos no quadro das Nações Unidas - declarou Albares nessa mesma noite em relação ao conflito do Sahara Ocidental - para encontrar uma solução mutuamente aceitável, como tem vindo a fazer em reuniões de alto nível em 2008, 2012, 2015 e em conformidade com a Resolução 2602, para citar uma delas, do Conselho de Segurança das Nações Unidas, e, neste sentido, a Espanha considera que a iniciativa de autonomia apresentada em 2007 é a base mais séria, realista e credível para a resolução deste conflito.
«Por outras palavras, o governo espanhol posicionou-se do lado de Marrocos no conflito do Sahara Ocidental, legitimando assim a ocupação marroquina do território saharaui em plena guerra do Sahara, que colocou o reino alauita contra a Frente POLISARIO e a República Árabe Saharaui Democrática desde que as forças militares marroquinas quebraram o cessar-fogo a 13 de Novembro de 2020.
«Com a sua categórica posição sobre o conflito do Sahara demonstrada a partir de 18 de Março, Sánchez desvalorizou as palavras que proferiu três semanas antes na sua declaração em La Moncloa, onde declarou que a União Europeia e os seus "aliados" queriam mostrar ao governo de Putin "que as violações do direito internacional e da soberania e integridade territorial de países terceiros não podem ficar, não devem ficar impunes" e que o governo espanhol estava empenhado na unidade daqueles que acreditam "na democracia, no Estado de Direito, num mundo baseado em regras e, portanto, de certeza, na paz, no respeito pelas fronteiras, na soberania nacional e na liberdade dos povos". Mas parece que este é um discurso que só funciona para a Rússia e Putin, não para Mohammed VI e Marrocos!
«É devido ao apoio do antigo primeiro-ministro Rodríguez Zapatero ao plano de autonomia marroquino que o actual apoio de Pedro Sánchez, também do PSOE, não surpreende tanto, apesar dos desacordos no seio do seu próprio governo, onde o parceiro minoritário no governo de coligação, Unidas Podemos, sempre favorável ao exercício do direito à autodeterminação do povo saharaui, criticou a posição do governo de Espanha, tal como o fizeram os parceiros de investidura, incluindo o Esquerra Republica de Catalunya (ERC), o EH-Bildu e o próprio Partido Nacionalista Basco (PNV). De facto, não só nenhum outro partido com representação parlamentar apoiou Sánchez na sua decisão, como também todo o PSOE não concordou em virar as costas aos saharauis.
Um mês após a drástica mudança de política externa do governo de Madrid sobre o conflito do Sahara, Pedro Sánchez deslocou-se a Kiev para se encontrar com o seu homólogo ucraniano, Volodymir Zelenski, a 21 de Abril de 2022, e mostrar o total apoio político de Espanha à Ucrânia na sua resistência à invasão russa.
«Desta reunião resultaram repetidas condenações da invasão salientando-se o facto de o governo espanhol ter apoiado a implementação de medidas aprovadas contra a Rússia pela União Europeia, que preparava então um sexto pacote de sanções.
«Desde então, Pedro Sánchez reiterou em numerosas ocasiões o seu apoio à Ucrânia, mas também foi sempre coerente com a posição que assumiu sobre o conflito do Sahara em Março de 2022, apesar de o Rei de Marrocos ter evitado recebê-lo numa viagem que fez a Rabat com a metade PSOE do seu governo a 1 de Fevereiro de 2023 e de o PSOE ter sido deixado sozinho no Parlamento na rejeição, a 14 de Fevereiro, de um projecto de lei da Unidas Podemos para conceder a nacionalidade espanhola aos saharauis nascidos antes de 1976, votação que teve o apoio dos restantes grupos da Câmara, com excepção do Vox que se absteve.
«Poucas horas antes do primeiro aniversário da invasão russa da Ucrânia, Pedro Sánchez viajou de novo para Kiev. A 23 de Fevereiro, o Primeiro-ministro espanhol transmitiu uma vez mais a Zelenski o apoio da sociedade espanhola ao povo ucraniano, reiterando simultaneamente o apoio da Espanha e da UE no seu conjunto à Ucrânia face a uma flagrante violação de princípios básicos do direito internacional, tais como a soberania e a integridade territorial. "A Espanha não reconhecerá as falsas anexações de territórios ucranianos por Putin", declarou, embora, como vimos, reconheça e apoie uma outra anexação como foi a do território do Sahara Ocidental por Marrocos.
«Nessa tarde, dirigindo-se ao plenário do parlamento enquanto prestava homenagem à dignidade do povo ucraniano, Sánchez declarou que "a Ucrânia luta pela sua sobrevivência" enquanto o seu inimigo luta pelo poder. "A sua luta não é digna. A vossa é um hino à liberdade", para concluir com mais uma demonstração de apoio: "não estais sozinhos nesta escuridão, nós estamos convosco".
«Quão reminiscentes são estas últimas palavras das utilizadas por Felipe González a 14 de Setembro de 1976 nos campos de refugiados saharauís em Tindouf, onde, de braço erguido, se comprometeu perante a história que o PSOE estaria com o povo saharaui "até à vitória final".
«González ganhou as eleições gerais de 1982 com maioria absoluta, mas uma vez proclamado chefe do governo espanhol, o novo PM foi rápido a mudar a sua posição sobre o conflito do Sahara enquanto o seu recém-nomeado ministro dos negócios estrangeiros, Fernando Morán, declarou que, enquanto governo, "não só não faremos nada para desestabilizar o Rei de Marrocos, como faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para manter a sua estabilidade".
«As palavras premonitórias de Morán foram seguidas por políticas de aproximação à monarquia alauita pelo novo governo, tais como o facto de a primeira viagem oficial de Felipe González ao estrangeiro como presidente do governo espanhol ter sido a Rabat em 1983 para se encontrar com o então monarca Hassan II. Com o tempo seguir-se-ia a expulsão de representantes da Frente POLISARIO de Espanha em 1985 e a continuação da venda de armas a Marrocos pelo governo espanhol, que se mantém até hoje.
«Eu diria aos ucranianos para terem muito cuidado com o que um líder do PSOE lhes possa prometer pois se traíram os saharauis, que tinham sido cidadãos espanhóis até 1976, o que não farão com um povo mais distante como o ucraniano.»


 

MARROCOS: «A POPULAÇÃO ESTÁ A MOBILIZAR-SE»

(Boletim nº 119 - Abril 2023)

Pressionado pelo mal-estar político e social interno e pela crise internacional, o regime marroquino tem recorrido sistematicamente a uma dura repressão interna e ao suborno e chantagem externos — “armas” que adiam os problemas mas não contribuem para a sua resolução.

Contra um «poder pessoal e absoluto»
Nos últimos meses os relatórios sobre a situação dos direitos humanos em Marrocos, e no território que este ocupa no Sahara Ocidental, têm-se multiplicado. Instituições como a Amnistia Internacional, a Human Rights Watch e o Departamento de Estado dos EUA deram conta da sua leitura sobre a situação que se vive naqueles dois territórios, com as suas populações submetidas a um regime autoritário como o são todos os regimes coloniais.
O regime de Rabat caiu numa perseguição cega a “tudo o que mexe” que, se transmite externamente sinais de uma grande insegurança, transmite sinais intimidatórios internamente.
Um caso emblemático desta estratégia é o de Mohamed Ziane, ex-Presidente da Ordem dos Advogados e ex-Ministro dos Direitos Humanos de um governo do falecido rei Hassan II, que foi também deputado e fundador do Partido Liberal Marroquino. Com o passar do tempo – Ziane celebrou na prisão, em 14 de Fevereiro último, o seu octogésimo aniversário – tornou-se uma voz crítica do regime. Envolveu-se decididamente no Hirak do Rif, um movimento social que varreu esta região do norte de Marrocos em 2016-2017, tendo sido o advogado principal do seu dirigente Nasser Zefzafi, que foi julgado juntamente com outros 52 responsáveis do protesto por «prejudicar a segurança interna do Estado» e por «rebelião». Pelas críticas públicas que então fez a declarações e decisões por parte do governo durante esses protestos, tornou-se um alvo das autoridades, sendo uma das vítimas marroquinas do programa israelita de espionagem Pegasus. A gota de água neste processo foi a entrevista que deu, em Outubro de 2022, ao diário El Independiente, onde critica a frequente ausência do rei, com um poder quase absoluto, numa situação internacional tão difícil. A uma série de perguntas foi respondendo sem rodeios: «Quem governa efectivamente o país? Certamente que os amigos do rei.», «Considera que Marrocos é uma ditadura? Marrocos é um poder pessoal e absoluto. Não é Saddam Hussein ou Gaddafi ou Hitler ou Estaline, mas é um poder muito pessoal e muito absoluto.» Mais à frente: «Uma sociedade pode viver do patriotismo? Não. Nem do patriotismo nem do expansionismo. Isso é um disparate do século XIX. Mesmo no século XX não foi aceite. No século XXI, não acreditar no universalismo é um disparate.»
Em 21 de Novembro de 2022, Ziane foi encarcerado na prisão de El Arjat, nos arredores de Rabat, acusado de uma miríade de delitos pelo Ministério do Interior, que ele nega totalmente, entre os quais «ofensa a funcionários públicos e ao poder judicial», «insulto a um organismo constituído», «difamação», «adultério» e «assédio sexual», e condenado a uma pena de 3 anos.
Outro caso singular de perseguição por parte do regime marroquino é o do jornalista Ignacio Cembrero. No passado mês de Março o Tribunal de Primeira Instância de Madrid arquivou o processo instaurado por Marrocos contra ele, por ter acusado os serviços secretos marroquinos de serem responsáveis pela espionagem, através do Pegasus, dos telemóveis de políticos, jornalistas e activistas. Entre outras informações, escreveu na sua conta no Twitter que as investigações do Forbidden Stories, assim como um relatório do Parlamento Europeu, e até declarações da ex-ministra dos Negócios Estrangeiros de Espanha Arancha González Laya, apontavam para a espionagem de Rabat recorrendo àquele programa israelita. «[Ignacio Cembrero] Relatou que o jornal digital Maroc-Diplomatic publicou duas mensagens suas através do WhatsApp com personalidades espanholas, mensagens que os serviços secretos marroquinos disponibilizaram a este meio de comunicação, e que em Abril de 2014 foi alvo de falsificação de identidade no Facebook e recebeu ameaças de morte. Um ano mais tarde, foi seguido e fotografado em cafés em Madrid e Paris, fotografias essas que foram publicadas por jornais marroquinos simpatizantes do regime. Foram também utilizadas para fazer uma fotomontagem, publicada na imprensa marroquina, dele sentado ao lado do Príncipe Moulay Hicham, considerado como o membro inconveniente da família real marroquina.»
Esta foi a quarta vez que Marrocos perdeu as suas acções judiciais contra este jornalista: duas por alegadamente glorificar o terrorismo foram arquivadas, e da terceira, apresentada por um homem de negócios ligado aos serviços secretos marroquinos, foi absolvido.
Esta repressão ocorre num momento de grave situação económica e social no país. Diz o Secretariado Nacional da ATTAC/CADTM
1
Comité pour l'Abolition des Dettes Ilégitimes.
Marrocos num comunicado de 18 de Fevereiro :
«Marrocos está a passar por um aumento sem precedentes no preço dos alimentos, da energia e dos serviços. A população está a mobilizar-se. Há apelos dos sindicatos para manifestações e marchas de protesto, e também da Frente Social Marroquina (colectivo social) em comemoração do 12º aniversário do movimento de 20 de Fevereiro (um grande movimento de protesto social nascido em Marrocos em 2011, no contexto das revoltas populares que envolveram o Norte de África e o Médio Oriente/região árabe). (…).
«No contexto da actual crise global, as consequências da dependência económica de Marrocos ligadas às políticas liberais estão mais uma vez a tomar forma. O défice global da balança comercial, bem como os elevados custos de energia, alimentação, agricultura, indústria e outros, agravaram-se num contexto de abrandamento económico e declínio das receitas governamentais. Os subsídios e as reduções de impostos para os grandes capitalistas reflectem-se directamente no orçamento público. Daí o crescente recurso ao endividamento. A dívida pública atingiu níveis enormes. As suas condicionalidades são cada vez mais duras, impondo medidas de austeridade e atacando os ganhos dos assalariados e das camadas populares do país, muitos dos quais sofrem com o peso da dívida privada, principalmente os microcréditos.»
A ATTAC/CADTM lembra que em Outubro próximo irão decorrer em Marraquexe as assembleias anuais do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, e desafia a população a aproveitar a ocasião «para denunciar as suas políticas criminosas».
Um outro artigo crítico é o de Aziz Chahir, doutorado em ciências políticas e professor-investigador em Salé, Marrocos, que aborda as tensões sociais no país.
«Enquanto os indicadores socioeconómicos do país estão no vermelho, Marrocos está sem dúvida atolado numa crise económica duradoura que poderá alimentar a agitação social que se manifesta regularmente.
«De acordo com um inquérito realizado em 2019 pelo Gabinete Nacional para o Desenvolvimento Humano (ONDH), quase 45% dos marroquinos consideram-se pobres (38,6% nas zonas urbanas e 58,4% nas zonas rurais).
«Isto soma-se aos 3,2 milhões de pessoas que se calcula terem caído na pobreza ou vulnerabilidade como resultado da crise da covid-19.
«Num relatório sobre as perspectivas económicas mundiais, publicado a 11 de Janeiro, o Banco Mundial prevê uma queda no crescimento para Marrocos em 2023 (de 4,3% para 3,5%), devido em parte à deterioração do sector agrícola em resultado da seca do ano passado.
«A mesma observação é feita pelo relatório Davos 2023 do Fórum Económico Mundial, publicado a 14 de Janeiro, segundo o qual "Marrocos está seriamente ameaçado pela crise do custo de vida, bem como pela inflação, pelo forte aumento dos preços das mercadorias, pelos riscos de abastecimento e pela dívida".
«Isto alimentou o êxodo rural para os centros periurbanos, abandonados pelo Estado e partidos políticos, onde o descontentamento social é subtilmente canalizado e assumido por movimentos islamistas, tais como a associação Al Adl Wal Ihsane (Justiça e Espiritualidade), ou por forças de esquerda, tais como a Frente Social Marroquina (FSM).
«Não deixa de ser surpreendente constatar que uma província como Oued-Eddahab (sul), onde a taxa global de pobreza atinge os 30,2%, é também um dos locais preferidos para o recrutamento de separatistas saharauis.
«Do ponto de vista político, a precariedade e a exclusão social podem alimentar subrepticiamente os movimentos de protesto, sobretudo nas periferias urbanas onde a insegurança, a criminalidade e a radicalização são factores de implosão da ordem social, mas também no Sahara Ocidental, onde a pobreza que corrói as populações saharauis poderia pressioná-las a aderir à causa dos separatistas da Frente POLISARIO. (…).
«Mas o que dizer de um poder obcecado pelo mostruário diplomático do reino e que parece cada vez mais desligado da realidade social dos marroquinos, especialmente os mais pobres, as primeiras vítimas da actual crise económica? (…).
«É concebível que o reino se situe na 123ª posição entre 190 países, atrás dos seus três vizinhos do Norte de África, a Argélia, a Tunísia e, até, a Líbia, que viveu duas guerras civis?»

MUNDIAL DE FUTEBOL 2030: MARROCOS DRIBLA PORTUGAL E ESPANHA

 (Boletim nº 119 - Abril 2023)

A possibilidade da desistência da Ucrânia de integrar uma organização tripartida com Portugal e Espanha do Campeonato Mundial de Futebol (CMF) de 2030, revelou-se uma oportunidade de ouro para Marrocos orquestrar uma manobra de promoção política do país, impondo a sua presença nessa candidatura.

A FPF "alinha" nisto?

AAPSO reage

A situação de guerra na Ucrânia e o processo de corrupção em que o presidente da sua federação de futebol está envolvido, levaram à multiplicação de rumores sobre uma candidatura conjunta ibero-marroquina à organização do mundial de futebol de 2030. Começaram a surgir no início de Março e foram citados nos jornais AS e The Athletic. Perante esta "onda", a Associação de Amizade Portugal-Sahara Ocidental (AAPSO) endereçou uma Carta Aberta ao presidente da Federação Portuguesa de Futebol, Fernando Gomes, a 13 de Março passado, na qual, alertando para o risco associado a esta eventualidade, solicita uma reponderação dos organizadores do evento:
«Marrocos ocupa ilegalmente desde 1975 o Sahara Ocidental que, segundo as Nações Unidas, de acordo com um sem número de resoluções e com o parecer do Tribunal Internacional de Justiça, é um território não-autónomo, pendente de um processo de descolonização. Como sublinhou o Tribunal de Justiça da União Europeia em três sentenças (2016, 2018, 2021), o Sahara Ocidental é um território "separado e distinto" de Marrocos. Na realidade, é a última colónia de África.
«Fruto desta ocupação ilegal, e da resistência que o povo saharaui lhe opõe, sucedem-se as violações dos Direitos Humanos no Sahara Ocidental. O mesmo acontece no próprio Reino de Marrocos, cujo regime foi condenado em resolução do Parlamento Europeu de 19 de Janeiro último por não respeitar os direitos à liberdade de expressão e a processos legais justos, apelando-se à libertação de todos os presos políticos. Está comprovado que em ambos os territórios, jornalistas, intelectuais e activistas, entre outras pessoas, têm sido alvo de repressão violenta e sistemática.
«Que credibilidade tem Marrocos para acolher um evento desportivo desta natureza quando, para alcançar os seus fins políticos, exerce chantagem sobre outros países utilizando rotas de migrantes e drogas, se socorre de subornos a parlamentares e funcionários europeus (como o demonstra o caso Marrocosgate) e deporta sumariamente todas as pessoas que querem visitar o Sahara Ocidental por não lhe convir que vejam o que aí se passa? Que inclusivamente tem impedido o Escritório do Conselho de Direitos Humanos da ONU e o Representante Pessoal do Secretário-geral da ONU para o Sahara Ocidental de visitar este território?
«Apelamos a que a Federação Portuguesa de Futebol reconsidere esta proposta, sob pena de o Campeonato Mundial de Futebol se transformar numa ocasião privilegiada de encobrimento das violações dos Direitos Humanos cometidas pelo regime marroquino e daqueles que, conhecendo a situação, lhe dão cobertura, ficando assim o evento desportivo indelevelmente desprestigiado e exponenciando o dever de denúncia por parte de pessoas e organizações defensoras dos Direitos Humanos.»

Já no passado…

De acordo com The Guardian, Marrocos ensaiara uma tentativa de organização do Mundial de 2010, tendo Andrew Jennings escrito, à época, que a FIFA «estava a contemplar o seu acto mais vergonhoso desde que deram, em 1978, o Campeonato do Mundo à junta militar assassina da Argentina. (…). A FIFA, o órgão dirigente do desporto, poderá entregar o torneio de 2010 a Marrocos, um país com as suas próprias legiões de "desaparecidos" - vítimas de uma guerra de anexação ao vizinho Sahara Ocidental que se arrasta há 30 anos.»
A FIFA, tentando ultrapassar o contratempo provocado pela África do Sul não ter ganho o direito a realizar o CMF de 2006, insistiu para que o evento de 2010 fosse realizado em África: «As candidaturas do Egipto, Líbia e Tunísia vacilaram e a África do Sul e Marrocos são os únicos candidatos que permanecem de pé. (…). A equipa de inspecção da FIFA classificou a África do Sul como o país com as melhores infra-estruturas e estádios. Marrocos (…) continua em competição porque os direitos humanos não se encontram entre os critérios da FIFA [para selecção de candidaturas]».
No final, a África do Sul foi o país escolhido para a realização do evento desportivo de 2010, gorando as expectativas de Marrocos.

O seguimento

No dia 14 de Março, segundo o jornal El Español e agência Lusa, com base em informação divulgada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros marroquino, o rei Mohamed VI, antecipando-se aos Presidentes da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e da Real Federação Espanhola de Futebol (Luis Rubiales), declarou que «(…) o Reino de Marrocos decidiu, com Espanha e Portugal, apresentar uma candidatura conjunta para acolher o CMF de 2030.»
Desde então pairou um pesado silêncio por parte das duas federações ibéricas, que recusaram um pedido de informação de El Independiente. No dia 16 de Março, o departamento de comunicação da Federação Espanhola remetia unicamente para «os comunicados e informações publicados no nosso sítio Web sobre o assunto» e a Federação Portuguesa, em resposta a uma pergunta do mesmo jornal, afirmava que «não haverá declarações públicas sobre a candidatura».
Contrastando com a surpresa com que os cidadãos/ãs da Península Ibérica receberam a notícia, a comunicação de Mohamed VI deu início a uma activa campanha mediática através de publicações em redes sociais marroquinas, em que são exibidos os mapas dos três países, com o de Marrocos a violar o Direito Internacional ao englobar o Sahara Ocidental. Em cascata, a imprensa vinculada a Rabat recolheu as reacções entusiásticas de conhecidas figuras em Espanha, como Miguel Ángel Moratinos e María Antonia Trujillo, antigos ministros de José Luis Rodríguez Zapatero.
Fica a dúvida se Rabat irá incluir no processo de candidatura a apresentar à FIFA a realização de eventos desportivos nos territórios ocupados do Sahara Ocidental. A escolha final da candidatura organizadora será feita em Setembro de 2024.
De acordo com a Fair/Square, uma das ONG que estuda a chamada "lavagem desportiva", Marrocos, tal como outros Estados ditatoriais, apercebe-se dos benefícios de reputação associados à realização de grandes eventos desportivos e, apesar de toda a polémica associada ao Catargate, o recente mundial encorajou ainda mais estes Estados a recorrer a este tipo de iniciativas para branquear o seu regime. «É um facto que países com graves violações dos direitos humanos utilizam o desporto para os encobrir e apresentar uma imagem de modernidade e abertura ao mundo exterior».
A estratégia de comunicação usada por Mohamed VI nesta "jogada de antecipação", relembrou o ocorrido no ano transacto quando publicitou unilateral e antecipadamente a carta que o Primeiro-ministro de Espanha, Pedro Sánchez, lhe escreveu a anunciar a mudança radical de posição em relação à antiga colónia espanhola do Sahara Ocidental.

Em finais de Março

Na sequência da Carta Aberta enviada, a FPF recebeu no passado dia 29 de Março uma delegação da AAPSO. Esta expressou a sua surpresa perante o anúncio da candidatura, explicando as razões da sua indignação, e indagou do porquê da escolha desse país como parceiro. A FPF argumentou que o processo ainda não foi entregue à FIFA e que o mesmo «está ainda em discussão».
A AAPSO apresentou a sua profunda preocupação face ao processo de selecção que a FIFA irá desenvolver, uma vez que esta entidade é pouco credível em termos de observância de Direitos Humanos, tendo em conta o que se registou no ano passado no Catar.
Os argumentos apresentados pela FPF em defesa do evento centram-se na "promoção do futebol acima de tudo", ao que a AAPSO contrapôs que não podia ser a qualquer custo, voltando a lembrar o que caracteriza hoje o regime marroquino: violação reiterada do Direito Internacional e dos Direitos Humanos, corrupção e chantagem política. A este respeito a AAPSO entregou à FPF detalhada e idónea informação, na esperança de que a ajude na discussão "ainda em curso".
A AAPSO continuará a acompanhar o desenrolar deste processo e a bater-se pela defesa destes direitos.