sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Boletim nº 79 - Dezembro 2019


EUCOCO 44: DIREITO À AUTODERTERMINAÇÃO, SEMPRE

Entre 1975 e 2019, o objectivo permanece o mesmo: garantir que o povo saharauí pode exercer livremente o seu direito à autodeterminação. Já vão quase 45 anos e a luta continua. 

EUCOCO: desde 1975

 

Cerca de 400 participantes de vários pontos da Europa e mesmo de outros continentes, entre as quais muitos cidadãos e cidadãs saharauís, vindos do exílio nos Acampamentos, do Território Ocupado e a viver em Espanha, encontraram-se em Vitória-Gasteiz, no País Basco. Em 1975, na cidade de Haia, ao arrancar a 1ª EUCOCO (Conferência Europeia de Apoio e Solidariedade com o Povo Saharauí), eram doze pessoas à volta da mesa.
Durante dois dias fez-se o ponto da situação política e diplomática, ouviram-se muitas organizações, governamentais e não-governamentais, parlamentares e responsáveis políticos, reencontraram-se companheiros/as e conheceram-se novas pessoas, partilharam-se avanços e impasses, materiais e ideias de actividades. À margem desta EUCOCO 44 reuniram-se parlamentares de três continentes (Europa, África e América Latina), juristas especializados na questão saharauí e representantes de sindicatos de vários países, entre os quais a CGTP.
Parte do tempo foi utilizada em trabalho de grupos, temáticos - “Acção política e informação”, “Direitos humanos”, “Espoliação de recursos naturais”, “Consolidação do Estado saharauí” - de onde saíram uma caracterização do momento e propostas de acção no respectivo âmbito. No final, foi lida uma Declaração, sintetizando o debate.
Percorreram a 44ª EUCOCO dois tipos de sentimentos: a convicção da justiça das exigências do povo saharauí, comprovada pelo Direito internacional, e a determinação em defender esses direitos; em simultâneo, uma “zanga” perante a incapacidade de as instâncias apropriadas – as Nações Unidas, a União Europeia, a Espanha enquanto Potência Administrante – se recusarem a fazê-lo. A paciência está a esgotar-se.
Ficou mais uma vez claro que, perante as várias resoluções da Assembleia Geral da ONU, o parecer do Tribunal de Haia de 1975, os acórdãos do Tribunal de Justiça Europeu (TJUE) dos últimos anos e a decisão adoptada pela Audiência Nacional de Espanha a 4 de Julho de 2014, o Sahara Ocidental é um território pendente de um processo de descolonização, a Espanha, apesar dos vergonhosos Acordos de Madrid de 1975, continua a ser a Potência Administrante do território, Marrocos é a potência ocupante e a Frente POLISARIO é o legítimo representante do povo saharauí. Toda a argumentação jurídica é transparente e inequívoca.
A maior desilusão é a condução do processo de descolonização pela ONU, à qual cabe essa responsabilidade. O novo Secretário-geral, António Guterres, começou bem, indicando um Representante pessoal que foi capaz de relançar as conversações entre as partes interessadas e criar um novo ritmo. Perante as dificuldades, a demissão repentina do seu Representante pessoal, e as pressões do costume, nomeadamente da França, membro do Conselho de Segurança, o processo parou e até hoje o Secretário-geral da ONU não deu mais nenhum passo. Em Março de 2020 terá de apresentar um novo relatório ao Conselho de Segurança.
A forma como a União Europeia tem gerido as relações com Marrocos provoca repulsa: ao arrepio dos pareceres do TJUE, todos os truques são usados para manter inalterados os tratados assinados com a Potência Ocupante do Sahara Ocidental. Perante estas violações, um novo parecer foi pedido pela Frente POLISARIO, reconhecida nestes documentos como único representante do povo saharauí, ao mesmo Tribunal.
A cadeia de desresponsabilização está assim montada: os países europeus, em particular a França, cúmplice de Marrocos, que funciona como seu protectorado, e a Espanha, Potência Administrante que se nega a assumi-lo, mas também todos os outros países, escudam-se nas decisões da União Europeia. Esta, para além de se furtar ao cumprimento das suas próprias determinações, escuda-se amiúde nas Nações Unidas. E a ONU não cumpre com o compromisso com a sua própria Carta e resoluções.
Neste contexto, identificaram-se vias para romper o impasse:
  • pedir ao novo governo em Madrid que reconheça os erros do seu processo de descolonização em 1975 e assuma o seu estatuto de Potência Administrante, participando activamente nas negociações que, de acordo com o Direito Internacional, devem levar à realização de um referendo livre e justo;
  • exigir coerência e transparência nas políticas europeias, nomeadamente no que diz respeito à defesa dos direitos humanos do povo saharauí (incluindo o direito à autodeterminação) e o fim da espoliação dos seus seus recursos naturais;
  • pressionar o Secretário-geral da ONU para que promova e apoie digna e decisivamente o processo de descolonização do Sahara Ocidental em curso.
Em Dezembro celebrar-se-á o Congresso da F. POLISARIO, nas vésperas de se assinalarem 45 anos da invasão marroquina do território, do infame Tratado de Madrid e da fuga forçada para o exílio de milhares de saharauís, que desde então vivem precariamente nos Acampamentos em território argelino. Exactamente quando termina a 3ª Década para a Erradicação do Colonialismo proclamada pela ONU!
É tempo de escutar o povo do Sahara Ocidental e de agir.

TJUE: OBRIGATÓRIA A MENÇÃO DO TERRITÓRIO DE PROVENIÊNCIA

No passado dia 12 de Novembro o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) pronunciou uma sentença com um largo impacto nos diversos acordos comercias (e políticos!) que a União tem vindo a celebrar à revelia do direito internacional e, logo, da política externa que afirma prosseguir.

TJUE: identificação de origem obrigatória

 

Em resposta a um “pedido de decisão” apresentado pela Organisation Juive Européenne e pela Vignoble Psâgot Ltd, uma empresa israelita que explora os vinhedos nos territórios ocupados dos montes Golã e da Cisjordânia, pondo em causa a «legalidade de um parecer relativo à indicação da origem das mercadorias dos territórios ocupados pelo Estado de Israel desde Junho de 1967», o Tribunal reafirmou a «Menção obrigatória do país de origem ou do local de proveniência de um género alimentício no caso de a sua omissão ser susceptível de induzir os consumidores em erro» e a «Obrigação de os géneros alimentícios originários dos territórios ocupados pelo Estado de Israel conterem a indicação do seu território de origem, acompanhada, caso provenham de um colonato israelita situado nesse território, da indicação dessa proveniência.»
O Tribunal justificou a sua decisão pela necessidade «(...) de atingir um elevado nível de protecção da saúde dos consumidores e de garantir o seu direito à informação», pelo que «importa assegurar uma informação adequada dos consumidores sobre os alimentos que consomem. Os consumidores podem ser influenciados nas suas escolhas por considerações de saúde, económicas, ambientais, sociais e éticas, entre outras.»
«Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara: (…) os géneros alimentícios originários de um território ocupado pelo Estado de Israel devem conter não só a indicação desse território mas igualmente, no caso de esses géneros alimentícios provirem de uma localidade ou de um grupo de localidades que constituam um colonato israelita nesse território, a indicação dessa proveniência.»
No seu acórdão o Tribunal cita anteriores decisões suas no quadro da abordagem que fez à situação do Sahara Ocidental e ao aproveitamento que o regime marroquino realiza com os seus recursos. Fá-lo ao esclarecer os conceitos de “Estado” («Acórdão de 21 de Dezembro de 2016, Conselho/Frente Polisário, C-104/16 P, EU:C:2016:973, n.° 95») e de “território”. E lembra: «Como o Tribunal de Justiça já salientou, essas entidades compreendem, nomeadamente, espaços geográficos que, embora estejam sob a jurisdição ou a responsabilidade internacional de um Estado, dispõem, no entanto, à luz do direito internacional, de um estatuto próprio e distinto do desse Estado (v., neste sentido, Acórdãos de 21 de Dezembro de 2016, Conselho/Frente Polisário, C-104/16 P, EU:C:2016:973, n.os 92 e 95; e de 27 de Fevereiro de 2018, Western Sahara Campaign UK, C-266/16, EU:C:2018:118, n.os 62 a 64).»
No documento de trabalho apresentado na última reunião da EUCOCO, aborda-se esta decisão do TJUE e refere-se que «segundo os advogados de direito público internacional, esta resolução poderia aplicar-se aos acordos de comércio livre entre a UE e Marrocos. Este argumento reforçará ainda mais a posição da Frente POLISARIO nos seus recursos perante este mesmo Tribunal contra os novos acordos agrícola e pesqueiro da UE com Marrocos, que incluem ilegalmente o Sahara Ocidental. Isto é tanto mais assim quando esta resolução do TJUE acontece no momento em que a Oficina Cheridiana de Fosfatos (OCP) reconheceu num comunicado de imprensa de 5 de Novembro de 2019 que o Sahara Ocidental não faz parte de Marrocos.»
O documento de trabalho passa em revisão o comportamento das instâncias da União nesta matéria: «Numa questão similar, em 6 de Novembro, a Comissão de Comércio Internacional (INTA) do Parlamento Europeu adoptou uma resolução que estabelece um mecanismo para que as autoridades aduaneiras da UE obtenham informações fiáveis e detalhadas sobre os produtos originários do Sahara Ocidental. (…). O objectivo final é informar o consumidor sobre a origem do produto, para não o induzir em erro, porque o consumidor deve ter a oportunidade de tomar uma decisão baseada em razões éticas.
«O representante do Director das Alfândegas da Comissão Europeia, que esteve presente na reunião da INTA, disse que todas estas informações são prestadas regularmente pelas autoridades marroquinas. Para além disso, também afirmou que Marrocos “se ocupa” das regiões “marroquinas” (incluindo o Sahara Ocidental ocupado).»
Os participantes na 44ª EUCOCO de 22 e 23 de Novembro passado não podiam ignorar esta vergonhosa política externa que utiliza o direito internacional conforme as suas conveniências comerciais: «O movimento de solidariedade com o povo saharauí lembra à Comissão Europeia e ao seu novo Alto Representante para a Política Externa, Josep Borrell, a sua obrigação de respeitar os acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia e de reconhecer a Frente POLISARIO como o único representante da Povo saharauí, legitimado para negociar acordos de cooperação.» 

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Boletim nº 78 - Novembro 2019


«CONTINUO CONVENCIDO QUE É POSSÍVEL UMA SOLUÇÃO PARA A QUESTÃO DO SAHARA OCIDENTAL»

É com esta convicção que o Secretário-geral da ONU abre o capítulo das “Observações e recomendações” do seu relatório ao Conselho de Segurança. Mas o que transparece do mesmo é uma enorme impotência política das Nações Unidas.

Uma fraca prestação

No passado dia 2 de Outubro o Secretário-geral das Nações Unidas tornou público o seu relatório semestral, a que está obrigado pelas Resoluções do Conselho de Segurança, sobre a situação no Sahara Ocidental, em que «relata os desenvolvimentos desde a emissão do relatório anterior em 1 de Abril de 2019 (S/2019/282) e descreve a situação no terreno, o estado e o progresso das negociações políticas sobre o Sahara Ocidental, a implementação da resolução 2468 (2019), os desafios enfrentados pelas operações da Missão e as medidas adoptadas para superá-las». O relatório serviu de base à aprovação da prorrogação do mandato da MINURSO (Missão das Nações Unidas para a Organização de um Referendo no Sahara Ocidental) por mais um ano, contrariando a tendência das últimas resoluções em que era apenas por seis meses. Voltaremos à adopção desta resolução, a 2494 (2019), pelo Conselho de Segurança e a respectiva reacção por parte da Frente POLISARIO numa próxima edição.
Sobre a evolução da situação o relatório considera que «Durante o período em análise, a situação no Sahara Ocidental permaneceu relativamente calma, apesar de algumas incertezas. No geral, as partes continuaram a implementar o acordo militar n.º 1 e os acordos relacionados e a respeitar o cessar-fogo.»
Entre as “incertezas” estará «O ponto de passagem de Guerguerat, entre o Sahara Ocidental e a Mauritânia, no extremo sul do Território, [que] passou por fortes tensões entre comerciantes, manifestantes e autoridades fronteiriças marroquinas. Desde o meu relatório anterior, indivíduos e pequenos grupos que protestavam contra a falta de perspectivas sócio-económicas ou contra as políticas e medidas aduaneiras, organizaram protestos em 54 pontos» no interior da zona tampão que separa a parte ocupada da parte libertada do Sahara Ocidental. «A MINURSO interveio informalmente em várias ocasiões para aliviar as tensões e restaurar o tráfego, além de ajudar turistas estrangeiros bloqueados na zona tampão.»
«O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (HCDR) está preocupado com a persistência das amplas restrições impostas pelas autoridades marroquinas aos direitos à liberdade de expressão e à liberdade de reunião e de associação pacíficas no Sahara Ocidental.» Assim começa o parágrafo do relatório sobre os direitos humanos, onde se dá conta de que «o HCDH continuou a receber denúncias de assédio e prisão arbitrária de jornalistas, advogados, bloggers e defensores de direitos humanos que denunciavam violações cometidas no Território. (...). Segundo informações recolhidas pelo HCDH, teria sido utilizada uma força excessiva para dispersar manifestações pacíficas, que provocaram feridos em várias ocasiões e uma vítima numa situação. (...). De acordo com alguns relatos, os detidos saharauis em Marrocos continuam sujeitos a tortura e a maus-tratos.»
O relatório dá igualmente conta de um incidente ocorrido nos campos de refugiados. «Entre Abril e Junho, pequenos grupos de civis saharauís manifestaram-se repetidamente nos campos de refugiados perto de Tindouf (Argélia) contra as regras adoptadas pela Frente POLISARIO para controlar os pontos de passagem entre os campos de refugiados e o território da Mauritânia e os pontos permitindo passar para a zona leste do muro de areia [a ‘zona libertada’]. Também pediram liberdade de movimentos e reformas gerais. Em Rabouni (Argélia), foram organizadas manifestações para exigir que a Frente POLISARIO soubesse do destino de Khalil Ahmed, um membro da Frente POLISARIO desaparecido na Argélia em 2009. Em 15 de Julho, a mulher e os filhos de Ahmed iniciaram uma manifestação em frente ao complexo da ONU em Rabouni e, em 29 de Julho, cerca de 60 manifestantes invadiram o complexo. O pessoal das Nações Unidas não foi expressamente ameaçado, mas como precaução, 13 funcionários das Nações Unidas e 11 membros de organizações não-governamentais internacionais foram transferidos para perto de Tindouf. Em 4 de Agosto, após negociações com a Frente POLISARIO e dirigentes tribais, a família de Ahmed saiu e as Nações Unidas regressaram ao complexo.»
Sobre as «Dificuldades encontradas pela Missão nas suas operações», o relatório volta a referir que «A MINURSO continua com o acesso negado a qualquer interlocutor local a oeste do muro de areia [zona ocupada por Marrocos], o que prejudica a sua capacidade de colher informações fiáveis, avaliar a situação na sua área de responsabilidade e informar sobre elas.»
Outra referência constante nos relatórios do Secretário-geral é «A imposição por Marrocos da utilização de matrículas marroquinas em veículos da MINURSO a oeste do muro de areia, violando o acordo sobre o estatuto da Missão, [que] continua a desconsiderar a imagem de imparcialidade da Missão aos olhos da população. Em Março de 2014, o meu representante especial e o governo marroquino concordaram verbalmente em substituir gradualmente as matrículas marroquinas por matrículas da ONU. Este acordo ainda não foi implementado.»
O relatório é muito crítico sobre a «Assistência à protecção dos refugiados do Sahara Ocidental». Um inquérito levado a cabo em Abril deste ano pelo HCR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) e o PAM (Programa Alimentar Mundial) mostrou uma degradação da situação relativamente a 2016, com um aumento da má nutrição e da anemia, com o consequente atraso no crescimento das crianças e jovens. «(…) todos os indicadores de desnutrição aumentaram desde a pesquisa realizada em 2016, incluindo desnutrição aguda global (7% vs. 4%), os atrasos de crescimento (28% vs. 18%), anemia em crianças (50% vs. 38%) e anemia entre as mulheres (52% vs. 43%). (…). O principal desafio para os actores humanitários continua a ser a falta de recursos.»
Além das violações dos DH praticadas pelas autoridades marroquinas o relatório faz igualmente referência a um caso que já aqui referimos: «a prisão arbitrária de um blogger e de um defensor dos direitos humanos» pelas forças de segurança da Frente POLISARIO. (…). Ambos tinham denunciado a administração dos campos de refugiados de Tindouf nas redes sociais.»
Citámos no início a convicção do Secretário-geral António Guterres quanto a uma solução para o processo de descolonização do Sahara Ocidental, o que exigirá, segundo ele, «uma forte vontade política por parte das partes e da comunidade internacional.» Por isso, diz: «Exorto os membros do Conselho de Segurança, os amigos do Sahara Ocidental e outras partes interessadas a encorajar Marrocos e a Frente POLISARIO a envolverem-se de boa fé e sem pré-condições no processo político, assim que o meu novo enviado pessoal for nomeado.»
Neste quadro o contributo da ONU é ajudar a ultrapassar as “incertezas” ou, para utilizar a linguagem do relatório, a «prevenir ou reduzir as tensões» entre as partes. «Esse papel permanece essencial para manter um ambiente propício ao sucesso do processo político». Esta é uma afirmação inquestionável, mas ao fim de 46 anos de processo de descolonização, tornou-se manifestamente insuficiente.
Em 15 de Outubro a Frente POLISARIO reagiu ao relatório, em carta assinada pelo seu Secretário-geral e entregue pelo Representante permanente da Namíbia junto das Nações Unidas a António Guterres.
«Gostaríamos de sublinhar que, em vez de chamar a atenção para os aspectos acessórios do mandato da Missão, deve-se sempre ter presente que a principal missão da MINURSO e a sua razão de ser é, como o prevêem as resoluções do Conselho de Segurança sobre o assunto, a realização de um referendo livre e regular sobre a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental». E critica a permissividade das Nações Unidas às pressões de Rabat. «Desde a renúncia do Enviado Pessoal do Secretário-geral para o Sahara Ocidental, Horst Köhler, Marrocos tem vindo a fazer todo o possível para enfraquecer o impulso criado nos últimos meses e consolidar o status quo. Particularmente preocupante, Marrocos exerce uma influencia unilateral, e livremente, na nomeação de um novo enviado pessoal, estabelecendo um conjunto de pré-condições e veto a certas candidaturas. (…) não permitiremos - e a ONU não o deve permitir - que o processo de paz das Nações Unidas, incluindo a nomeação do enviado pessoal do Secretário-geral, se afunde nas pré-condições impostas por Marrocos e as interferências deste país.»
Sobre a passividade da ONU perante as restrições marroquinas, como a da matricula dos veículos, a carta afirma: «É necessário acabar de vez com essas práticas inaceitáveis, que comprometem a imparcialidade, a independência e a credibilidade da MINURSO e da própria ONU.»
Quanto à tensão existente na zona sul do território junto à fronteira com a Mauritânia a Frente POLISARIO lembra: «Primeiro, o Secretário-geral não menciona que a brecha aberta por Marrocos no seu muro militar em Guerguerat não existia no momento da entrada em vigor do cessar-fogo, em 6 de Setembro de 1991, nem aquando da assinatura do acordo militar n.° 1 entre a MINURSO e a Frente POLISARIO, em 24 de Dezembro de 1997.» E enfatiza: «A Frente POLISARIO realça que o aumento das tensões em Guerguerat se deve principalmente à existência da violação ilegal resultante de uma alteração unilateral por parte de Marrocos do status quo nessa área, perante a qual o Secretariado e o Conselho de Segurança da ONU deveriam ter reagido imediatamente, com firmeza e determinação.»
Sobre as violações dos direitos humanos nos territórios ocupados, diz a carta: «Compartilhamos da opinião do Secretário-geral de que "é necessário um acompanhamento independente, imparcial, abrangente e sustentado da situação dos direitos humanos para garantir a protecção de todos os habitantes do Sahara Ocidental"».
E reafirma uma proposta há muito avançada por múltiplos organismos: «Dadas as violações sistemáticas e persistentes dos direitos humanos cometidas pelas autoridades marroquinas contra o povo saharauí, não podemos compreender porque não é adicionado ao mandato da MINURSO uma componente "direitos humanos", o que permitiria [replicar] no Sahara Ocidental o que todas as outras missões de manutenção da paz das Nações Unidas fazem, a saber, garantir o acompanhamento constante da situação desses direitos.»

KHADIJA RYADI: «A INSURREIÇÃO POPULAR ACONTECERÁ EM MARROCOS»

Entrevista com Khadija Ryadi, a primeira mulher a ocupar a presidência da Associação Marroquina de Direitos Humanos (AMDH), sobre a situação dos movimentos sociais em Marrocos. Entrevista concedida a Jérôme Duval e publicada em 11 de Junho. Criada em 1979, esta associação comemora este ano o seu 40º aniversário e é uma das duas ONG de direitos humanos mais antigas do reino. Khadija Ryadi ganhou o Prémio das Nações Unidas para os Direitos Humanos em 2013.

Khadija Ryadi

Jérôme Duval: Pode apresentar-nos a AMDH?
Khadija Ryadi: A AMDH trabalha sobre diferentes aspectos económicos, sociais, culturais, ambientais ou civis e políticos, bem como sobre os direitos das mulheres, dos migrantes, das crianças ou dos deficientes. A AMDH, que tem cerca de 12.000 membros, possui três secções na Europa e está implantada em todo o Marrocos com 92 secções locais. É membro da Federação Internacional de Ligas dos Direitos Humanos, da Rede Euro-Mediterrânea de Direitos Humanos, da Organização Árabe dos Direitos Humanos e da Coordenação do Magrebe das organizações de direitos humanos, das quais actualmente sou coordenadora em nome da AMDH. Caracteriza-se pelo seu sistema único de referência universal dos direitos humanos.
De passagem por Bruxelas falou sobre a questão dos presos políticos. Do que se trata?
Actualmente em Marrocos existem, de facto, centenas de presos políticos. Geralmente são pessoas que reivindicam direitos elementares e fundamentais como a educação e a saúde pública, a água potável, o fim da corrupção, etc.. Esses direitos básicos deveriam, evidentemente, ser garantidos pelo Estado, dado o compromisso oficial de Marrocos no campo dos direitos humanos.
No Rif, no norte de Marrocos, em Al Hoceima em particular, foi desencadeado um movimento pela morte de um peixeiro, Mohcine Fikri. Ele quis recuperar os seus bens confiscados e lançados pelas autoridades num carro do lixo e nessa tentativa morreu trucidado, em 28 de Outubro de 2016. Milhares de pessoas saíram de imediato para a rua até Maio de 2017, quando a repressão impossibilitou a continuação do movimento. A brutalidade, o número excessivo de prisões, a tortura e os julgamentos políticos travaram esse entusiasmo popular. Centenas de pessoas foram presas e cerca de 50 delas, entre as quais os dirigentes conhecidos desse movimento, foram transferidas para 700 km do seu local de residência para serem julgadas em Casablanca, o que aumentou o sofrimento das famílias que tinham de fazer longas viagens durante a semana para assistir ao julgamento e visitar os parentes na cadeia. As sentenças chegaram aos 20 anos de prisão. Além do Rif, outras cidades de Marrocos conheceram protestos populares e foram confrontadas com a repressão, as prisões e os julgamentos políticos.
Quantas pessoas do Hirak ainda estão hoje presas?
O AMDH contou mais de mil pessoas que foram presas por causa dos protestos sociais durante o Hirak vivido em Marrocos em 2017-2018. Esperamos pelo novo relatório do AMDH
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Nos seus relatórios anuais, a AMDH publica, no capítulo dedicado à detenção política, a lista nominal das pessoas de cuja prisão por razões políticas têm provas.
para termos a situação actualizada, porque várias pessoas saíram do país, outras, cerca de uma centena, foram indultadas o ano passado, e outras cem este ano. Mas, de acordo com a minha própria estimativa, haverá ainda entre 300 a 400 pessoas na prisão. As prisões e os julgamentos injustos continuam.
Quais as razões que levam, em geral, à prisão dessas pessoas?
As verdadeiras razões, todos as conhecem. É uma maneira de punir as pessoas que tiveram a coragem de protestar contra uma situação social alarmante e degradada, mas as acusações que enfrentam no tribunal não têm nada a ver com a realidade. São acusadas de violência, suspeitas de adesão a causas separatistas, de receberem dinheiro do exterior de fontes duvidosas, de tratarem brutalmente os polícias ou participarem na destruição de bens públicos. Em Marrocos, os tribunais são instrumentos do Estado. Os juízes pronunciam sentenças sem qualquer prova. Todos os observadores presentes o confirmaram e todas as ONG marroquinas de direitos humanos, sem excepção, mesmo as mais moderadas e conciliadoras, bem como personalidades longe de serem da oposição, consideram esses presos inocentes, reivindicam a sua libertação e qualificam os julgamentos de injustos.
E além desse movimento, sabe-se quantas pessoas estão presas em Marrocos por razões políticas?
Uma dúzia de activistas da União Nacional de Estudantes de Marrocos ainda está na prisão. Activistas do 20 de Fevereiro e pelo menos 35 independentistas saharauís continuam encarcerados. Jornalistas e autores de blogues também são vítimas de julgamentos injustos e presos pelos seus artigos ou investigações; cidadãos e cidadãs são lançados na prisão por defenderem as suas terras contra as empresas multinacionais ou contra personalidades apoiadas pelas autoridades. Um grande número de islamitas também foi julgado na luta contra o terrorismo sem haver nenhuma prova do seu envolvimento em actos ou redes terroristas. Reivindicamos sempre a sua libertação pois são pessoas presas pelas suas crenças religiosas ou ideológicas.
Na sua intervenção falou de "ditadura" a propósito de Marrocos. No entanto, parece que na Europa se utilizava mais essa designação no tempo de Hassan II do que hoje. O que nos pode dizer sobre os Estados ocidentais que exaltam frequentemente uma fachada democrática de Marrocos?
Marrocos soube cuidar da sua imagem. Desde a chegada ao poder do actual rei Mohammed VI, a Comissão de Equidade e Reconciliação, encarregada de esclarecer as graves violações dos direitos humanos que ocorreram entre 1956 e 1999, indemnizou as antigas vítimas de tortura ou de desaparecimento forçado, esclareceu alguns casos de desaparecidos políticos, mas não fez avançar Marrocos para uma verdadeira democracia. Em 2011, sob a pressão do movimento de 20 de Fevereiro que organizou protestos em todo o país, foi adoptada uma nova Constituição contendo um certo número de garantias do Estado de respeito pelas liberdades. No entanto, sem verdadeira independência da justiça, esta Constituição permanece não democrática. Assim, os limites à liberdade de expressão persistem e os tabus, como a monarquia, a religião islâmica ou a questão do conflito no Sahara Ocidental, fazem parte deles. O nível de tolerância até diminuiu, agora há pessoas na prisão por causa de um comentário no Facebook. Das centenas de presos do Hirak, muitos nem saíram às ruas para protestar, prenderam-nos só porque expressaram a sua raiva.
Há alguns dias atrás, Abdollah Chabni foi condenado a três anos de prisão por dizer no Facebook que a marcha de apoio aos presos do Hirak, realizada em 21 de Abril, deveria transformar-se em desobediência civil. Como se pode qualificar um Estado, que prende as pessoas por comentar, senão como uma ditadura? Não é porque não há desaparecimentos forçados como antes e lugares tristemente conhecidos por tais práticas como Tazmamart
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Tazmamart era uma prisão secreta para presos políticos. Símbolo da opressão sob o reinado do rei Hassan II, foi finalmente encerrada em 1991, sob pressão de grupos internacionais de direitos humanos.
, que não vamos falar de ditadura. Deixou de haver uma imprensa independente, deixou de haver jornalistas de investigação capazes de criticar porque a dissidência é sistematicamente reprimida.
Pensamos nesse jovem argelino, Hadj Gharmoul, preso simplesmente porque uma foto que o mostrava com um cartaz com o slogan "não ao quinto mandato" de Abdelaziz Bouteflika circulou no Facebook
De facto, é a mesma coisa em Marrocos, onde basta sair à rua para denunciar o poder para ser preso. A maioria dos presos políticos actualmente detidos nem sequer denunciou o chefe de Estado, limitou-se a criticar a situação de pobreza e a negação dos direitos fundamentais das populações das suas regiões. Pessoas em Zagora, no sul de Marrocos, foram detidas e condenadas à prisão pelo simples facto de protestar porque não há água potável na cidade.
As informações sobre a sublevação actual na Argélia estão a ser seguidas pela população marroquina?
Sim, as informações chegam e os activistas e as organizações seguem atentamente o que se está a passar na Argélia e no Sudão. As relações entre a Argélia e Marrocos são tensas, devido, entre outras coisas, ao conflito no Sahara Ocidental e a televisão oficial marroquina mostra os protestos que decorrem na Argélia para criticar o poder argelino qualificando-o de autoritário e até ditatorial. Mas nunca veremos na televisão as manifestações marroquinas, nem os julgamentos que sofrem os activistas, excepto quando se trata de comunicados oficiais que são geralmente qualificados pelo movimento de direitos humanos como comunicados difamatórias, violando a presunção de inocência.
Houve manifestações de solidariedade com a insurreição na Argélia? Será que esta pode influenciar a mobilização em Marrocos?
Certamente. Como coordenadora magrebina, publicámos declarações de solidariedade, especialmente desde que o vice-presidente da Liga para a Defesa dos Direitos Humanos da Argélia, um membro de nossa coordenadora, Said Salhi, foi preso durante todo um dia no início dos protestos na Argélia. Estas insurreições vão certamente incentivar outros movimentos em Marrocos, mas é necessário dizer que são principalmente factores internos que mobilizam as pessoas.
A insurreição popular acontecerá em Marrocos porque todos os motivos que levaram a população às ruas em 2011 continuam presentes, e até aumentaram com a pobreza e a degradação dos serviços públicos. A falta de iniciativa capaz de reunir e federar todas estas lutas atrasa essa explosão.
Os médicos manifestaram-se há alguns dias atrás para denunciar a falta de recursos, não há nada nos hospitais, é a falência total do sistema de saúde público. O mesmo se passa com os professores que entraram em greve durante semanas, a luta mais divulgada e mobilizadora dos últimos meses, devido à falência do sistema público.
As pessoas em extrema necessidade não esperarão indefinidamente, até porque já não são os partidos e os sindicatos que as mobilizam, as massas populares saem espontaneamente à rua quando já não aguentam mais.
O movimento do Hirak desapareceu?
No norte, sim, porque basta sair à rua para arriscar anos de prisão. Além disso, muitos jovens foram para Espanha. Actualmente, as lutas são sectoriais e, portanto, dispersas. Depois da repressão em Al Hoceima, a rebelião passou para o nordeste de Jerada, onde as minas de carvão estão oficialmente encerradas desde 1998-2000, mas onde a população ainda vive do minério e desce às minas de maneira não convencional, sem nenhuma segurança. Muitos perdem lá a vida. Em reacção à morte de dois irmãos, Houcine e Jedouane, em 22 de Dezembro de 2017 numa mina, as pessoas saíram à rua e isso criou outro Hirak. Outras pessoas foram presas e um jovem, atropelado por um carro da polícia, perdeu as pernas. Actualmente é um deficiente completamente negligenciado pelas autoridades, que não fizeram qualquer investigação para esclarecer as circunstâncias e responsabilidades deste crime. Mas a repressão não impede outros Hirak de explodir noutros locais.
Em Imiter, uma pequena cidade perto de Ouarzazate, encontra-se a maior mina de prata da África
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As minas em Marrocos são exploradas pela empresa Managem, que faz parte de uma holding da família real.
. A sua exploração provoca muitos problemas ecológicos, as terras ficam inquinadas e os impactos são enormes para a saúde dos habitantes que já não podem viver da agricultura como antes. Reactivado em 2011, o movimento social de Imiter, mesmo fraco numericamente, é muito antigo. Novas pessoas foram presas e passaram até cinco anos na prisão. Como em outros centros operários, os responsáveis da mina não contratam localmente, mas recrutam trabalhadores de outras cidades para evitar qualquer solidariedade das famílias com os mineiros.
Com tanto activismo não receia pela sua segurança?
Sim, vivemos sempre sob a ameaça. Conduzem campanhas de mentiras e insultos contra mim na imprensa criada e financiada pelo poder. Estamos num país não democrático e todos corremos o risco de ser reprimidos, mas qual é a utilidade de permanecermos livres se tivermos de ficar calados e não denunciarmos as injustiças?
Como vê o futuro próximo em Marrocos?
Tenho a certeza de que outro Hirak vai ocorrer em Marrocos. Tudo o que esperamos é que seja tão pacífico e organizado como em 2011, que alcance mais do que o movimento de 20 de Fevereiro que, no entanto, fez avançar as mentalidades dos marroquinos, pois desde 2011 as pessoas já não se calam, já não têm medo e falam dos problemas políticos reais. Espera-se que as organizações políticas e sindicais superem as suas diferenças, as suas contendas por razões muitas vezes fúteis e ajam finalmente de acordo com as suas responsabilidades.
Como está hoje a solidariedade internacional pelo respeito dos direitos humanos no seu apoio aos movimentos populares reprimidos em Marrocos?
A Europa também mudou. Nos anos de chumbo (1956-1999), os direitos humanos ocuparam um lugar nas políticas dos Estados. Havia uma esquerda bastante forte, o movimento de solidariedade das organizações de direitos humanos em França e na Europa, os Comités de luta contra a repressão em Marrocos... Tudo isso mudou. Os governos europeus estão mais focados nas prioridades financeiras, securitárias, com as questões do terrorismo, das migrações... O discurso da extrema-direita generaliza-se. A esquerda ficou muito fraca, a solidariedade com as lutas marroquinas está menos presente e os governos europeus são cada vez mais cúmplices com o poder em Marrocos. Fecham os olhos a tudo o que acontece para que isso não perturbe os seus interesses económicos e financeiros.

Entrevista publicada no blog Un monde sans dette do jornal Politis.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Boletim nº 77 - Outubro 2019


SAHARA OCIDENTAL: QUEM GANHA/QUEM PERDE COM A PILHAGEM DE RECURSOS

A batalha pela defesa dos recursos naturais do Sahara Ocidental, objecto de pilhagem do colonialismo marroquino, tem sido uma constante ao longo da luta de libertação do povo saharauí.

Ao serviço das multinacionais

Um dos grandes promotores deste saque – e que nos ajuda a compreender as razões do seu apoio ao regime marroquino – é a União Europeia que, com essa política, insurge contra ela não só cidadãs e cidadãos como associações profissionais.
No mês de Setembro a Coordinadora de Organizaciones de Agricultores y Ganaderos (COAG) de Espanha denunciou que «Marrocos está a reforçar o seu sistema logístico para aumentar as exportações agrícolas fraudulentas do Sahara Ocidental para o mercado europeu.» E dá o exemplo de «uma das principais companhias de navegação e transporte de contentores do mundo, a francesa CMA CGM, [que] anunciou no passado dia 7 de Agosto o arranque de uma rota semanal que ligará Dajla, nos territórios ocupados do Sahara Ocidental, aos principais portos marroquinos (Agadir – Casablanca – Tánger) e a Algeciras [Espanha] como porta de entrada na Europa. Este anúncio já se tornou realidade com a saída do primeiro cargueiro, o CMA CGM AGADIR, de Dajla no passado dia 22 de Agosto com mercadorias dos territórios saharauís e que fez as paragens necessárias nos portos de Marrocos.»
A COAG lembra que a revisão do acordo comercial UE-Marrocos assinado no princípio deste ano visava acomodar a decisão do Tribunal de Justiça (TJUE) que considerou que Marrocos e o Sahara Ocidental eram «dois territórios distintos e separados». «A COAG considera que, com esta revisão, tanto o governo de Espanha como a UE só procuram favorecer os interesses económicos de um punhado de multinacionais agro-exportadoras e, não só não cuidam dos interesses dos agricultores europeus, como também ignoram os direitos fundamentais da população autóctone do Sahara Ocidental.»
A COAG mostra a sua preocupação com o aumento das importações do Sahara Ocidental como produtos marroquinos, pois «Exercem uma concorrência desleal com base em custos mais baixos, em regulamentos muito permissivos em termos de condições de trabalho, cobertura social e salários dos trabalhadores, utilização de agro-tóxicos, segurança e qualidade de alimentos, etc. ... », afirmou Andrés Góngora, da COAG.
A Coordenadora reitera que o Acordo de Livre Comércio Agrícola UE-Marrocos viola a legislação europeia sobre comercialização de frutas e hortaliças frescas ao limitar a capacidade dos consumidores em saber claramente se um produto etiquetado como originário de Marrocos procede deste Reino ou do Sahara Ocidental. «A legislação é clara e estabelece que frutas e legumes frescos só podem ser comercializados se contiverem a indicação do país de origem. Por conseguinte, exigimos que a União Europeia reforce o controlo nas fronteiras para impedir que produtos agrícolas cultivados nos territórios do Sahara Ocidental entrem no mercado comunitário como se fossem de Marrocos, sem os esclarecimentos correspondentes na rotulagem», reivindica a COAG.
Mas não é só nos países da União Europeia que se ouvem vozes a insurgirem-se contra este saque. No parlamento da Suíça o deputado do Partido Socialista Tornare Manuel apresentou em finais de Junho uma interpelação onde começa por lembrar que sendo o Sahara Ocidental um território não-autónomo, é necessário um mecanismo de rastreabilidade das mercadorias importadas de Marrocos, até porque o seu Ministro dos Negócios Estrangeiros declarou que «a parte do Sahara Ocidental nas exportações marroquinas nunca foi discriminada».
Para mais, acrescenta o deputado, o Sahara Ocidental não está incluído nem no acordo quadro Suíça-Marrocos de 2013 nem no acordo de comércio livre Suíça-Marrocos. Pelo que coloca ao Conselho Federal as seguintes questões:
  1. «Não deveria a Suíça suspender as suas importações de produtos agrícolas e piscatórios (Marrocos e Sahara Ocidental) até ao fim do conflito?
  2. «Não fazendo Marrocos a distinção entre produtos saharauís e produtos marroquinos, não deveria o SIPPO (Swiss Import Promotion Programme) deixar de apoiar as agências marroquinas de promoção das exportações de produtos onde pode existir confusão entre Marrocos e o Sahara Ocidental?
  3. «Dado que a exploração dos recursos do Sahara Ocidental não deve fazer-se ignorando a vontade do povo saharauí, não deveria o Conselho Federal desaconselhar as empresas suíças a desenvolver actividades económicas no Sahara Ocidental até à resolução do conflito?»
Na sua resposta, em finais de Agosto, o Conselho Federal começa por referir que as importações preferenciais de Marrocos baseiam-se nas disposições do acordo entre os Estados da AELE (Associação Europeia de Comércio Livre - Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça) e o Reino, sendo que os Estados da AELE partilham uma posição comum, «a de que o acordo se aplica unicamente ao território reconhecido de Marrocos, não ao do Sahara Ocidental. O princípio vale igualmente para a importação de produtos agrícolas e piscatórios».
De evidenciar ainda que na sua resposta à terceira questão, o Conselho Federal salienta que «as empresas suíças devem exercer as suas actividades económicas no respeito do direito internacional e das normas legais aplicáveis». Para além destas, o Conselho «espera das empresas sediadas ou activas na Suíça que assumam as suas responsabilidades segundo as normas da RSE [Responsabilidade Social das Empresas] relativamente à sociedade e ao ambiente.
«De acordo com os princípios orientadores da ONU relativos às empresas e aos direitos humanos e o guia da OCDE-FAO para as fileiras agrícolas responsáveis em toda a cadeia de aprovisionamento, as empresas devem realizar uma análise para descobrir potenciais impactos negativos nos direitos humanos das suas próprias actividades e das suas cadeias de aprovisionamento».

APRENDER COM A EXPERIÊNCIA DOS OUTROS

Nos últimos dois meses a comunicação social tem destacado os acontecimentos na Papua Ocidental. Uma situação que, tal como a de Timor-Leste, tem muitos traços comuns com a do Sahara Ocidental.

Manokwary, 19 Agosto (AFP/Str)

Na década de 1950 do século passado a Holanda, após ter reconhecido a independência da sua colónia Indonésia, começou a preparar a independência da sua outra colónia, a Papua Ocidental. Em 1 de Dezembro de 1961 realizou-se um Congresso onde foi proclamada a independência, hasteada a nova bandeira – a ”Estrela da Manhã” - e entoado o hino do novo país. Mas em 1962 a Indonésia, com o apoio político e militar da União Soviética, invadiu e ocupou o território abrindo um conflito com a Holanda e a população da Papua. Com a mediação dos EUA, que queria arrancar Jacarta à influência soviética (Washington na altura estava a semear a guerra no Vietname), a Indonésia e a Holanda chegaram a um acordo «o qual dava o controlo da Papua Ocidental às Nações Unidas [que] um ano depois o transferia para a Indonésia. Os Papuas nunca foram consultados. Contudo, o acordo prometia-lhes o direito à autodeterminação.» Em 1969, após sete anos de terror em que milhares de pessoas foram assassinadas e presas — um ensaio para o que viriam depois a fazer em Timor-Leste – as autoridades de ocupação organizaram aquilo a que chamaram “Act of Free Choice”. Invocando que os habitantes eram demasiado “primitivos” para compreenderem a democracia, escolheram 1.026 cidadãos, ameaçaram matá-los e às suas famílias se votassem “erradamente” e deram-lhes a escolher entre a integração e a independência. E o voto foi “unânime” na integração. Apesar dos protestos dos Papuas, das denúncias dos meios de comunicação internacionais e do relatório de um seu funcionário que acompanhou todo este processo, a ONU, sob a presidência do birmanês U Thant, reconheceu o resultado.
Logo em 1970 recomeçou o movimento de resistência ao colonialismo indonésio, particularmente impulsionado pela política de transmigração seguida pelas autoridades que inundaram de indonésios os campos e as cidades da Papua. Nesse ano foi fundada a OPM (Organização de Libertação da Papua) que, apesar da ausência de apoio externo, conseguiu desenvolver acções esporádicas de incidência armada. Com a queda da ditadura de Suharto em 1998, as aspirações emancipatórias ganharam um novo impulso, alimentadas pelo processo de independência de Timor-Leste e por alguma abertura política conquistada às autoridades de ocupação. Em 2000 realizou-se um Congresso reunindo centenas de delegados vindos das várias comunidades do território. O Congresso rejeitou o “Free Choice” de 1969, reafirmou a Papua Ocidental como uma nação independente e elegeu um Conselho da Presidência da Papua (PDP). A OPM declarou um cessar-fogo e acreditou-se que Jacarta encetaria negociações visando a independência do território. Mas a resposta das autoridades foi um “regresso ao passado”.
Em 2001 as Forças Armadas entraram em acção em força, reprimindo brutalmente actos como o do hastear da bandeira ou o da concentração de populares, provocando a morte de centenas de pessoas e a prisão de muitas mais. Entre elas Theys Eluay, o carismático presidente do PDP, assassinado pelo exército em Novembro daquele ano.
Nos princípios de 2004 duas proeminentes figuras nas carnificinas que se seguiram ao voto na independência de Agosto de 1999 em Timor-Leste foram enviadas para a Papua. O antigo chefe da polícia Timbil Silaen foi nomeado chefe da polícia na Papua e Eurico Guterres, o antigo chefe de milícias pró-indonésias, foi encarregado de organizar milícias na região de Wamena, no interior do território.
No início do seu mandato presidencial em 2014, Joko Widodo comprometeu-se com a população da Papua a acabar com a violação dos direitos humanos, a levantar o embargo à presença da imprensa internacional e a libertar os presos políticos. Nenhum destes compromissos, porém, teve qualquer concretização, exceptuando os presos políticos que foram sendo substituídos por outros.
Apesar da concessão de um estatuto de autonomia ao território, a questão tem vindo a ganhar espaço na agenda internacional. Em 2017, uma petição organizada por Yanto Awerkion, um jovem activista de 27 anos do Comité Nacional da Papua Ocidental (KNPB), recolheu 1,8 milhões de assinaturas (ou seja, 70% da população) tendo conseguido fazê-la passar para fora do país e entregá-la à Comissão de Descolonização das Nações Unidas. A petição pedia a nomeação de um Representante Especial para investigar as violações dos direitos humanos e o pedido para «colocar de novo a Papua Ocidental na agenda da Comissão de Descolonização e assegurar o seu direito à autodeterminação», de onde foi retirada em 1963. O grupo parlamentar do Reino Unido sobre a Papua apoiou calorosamente a iniciativa. Awerkion foi condenado a 10 meses de prisão por sedição e separatismo e a ONU recusou receber a petição alegando que a Papua já «não consta da agenda».
Ainda em 2017, as alegações sobre a violação dos direitos humanos pelas autoridades indonésias na Papua foram denunciadas, ao fim de muitos anos de silêncio, na sessão do Conselho dos DH da ONU, onde um conjunto de Estados do Pacífico – Nauru, Vanuatu, Tonga, ilhas Salomão, Palau, Tuvalu e ilhas Marshall – lembrou as prisões, os espancamentos, as torturas, as execuções extra-judiciais, a violência sobre as mulheres.
Em Agosto passado o Fórum das Ilhas do Pacífico, realizado em Tuvalu, aprovou uma resolução onde defende que o Conselho dos DH deve investigar a situação dos direitos humanos na Papua Ocidental. Os dirigentes dos Estados do Pacífico «encorajam a Indonésia» a facilitar uma visita da Alta Comissária das Nações Unidas no espaço de um ano a fim de que ela possa apresentar um «relatório informado, baseado em factos» no Fórum do próximo ano.
Aquando das manifestações de celebração do seu “dia da independência” (1 de Dezembro) mais de 500 pessoas foram presas, abrindo-se um novo ciclo de confrontos e violência.
A 14 de Agosto, uma comissão de membros de organizações dos direitos humanos, que inclui as igrejas da Papua Ocidental, tornou público um relatório sobre os conflitos entre as Forças Armadas indonésias e grupos independentistas. Revela que 182 pessoas morreram, maioritariamente mulheres e crianças, algumas às mãos das forças de segurança, muitas de fome e de doença, na fuga das zonas de confronto. Em Julho do ano passado a secção indonésia da Amnistia Internacional tinha alertado para que pelo menos 95 pessoas tinham morrido desde 2010.
Finalmente no dia 17 de Agosto, dia nacional da Indonésia, aniversário da proclamação unilateral da sua independência em 1945, centenas de pessoas cercaram a residência onde estavam alojados 43 estudantes (40 rapazes e 3 raparigas) da Papua, na cidade de Surabaia em Java oriental. O que teria provocado a sua cólera teria sido, diziam, o facto de os estudantes terem recusado celebrar o aniversário da independência e terem desrespeitado uma bandeira da república. Segundo relata a jornalista Evi Mariani no Jakarta Post, as forças de segurança isolaram a residência, invadiram-na e prenderam os seus ocupantes, enquanto os circundantes gritavam «expulsem esses “macacos”!». A jornalista refere que muitos indonésios consideram os papuas uns ingratos face ao dinheiro que o governo central tem injectado no território para obras de infra-estruturas. «Damos-lhes estradas, desenvolvimento e montes de dinheiro para os fundos para a autonomia especial», dizem. Mas Mariani reconhece: «Contudo, falhámos em dar-lhes o respeito que eles merecem e o reconhecimento de que são nossos iguais. Como cidadãos da Indonésia, têm a mesma oportunidade de protestar quando pensam que estão a ser tratados injustamente.»
E foi precisamente o que fizeram. No dia 19 milhares de pessoas desceram à rua nas cidades da Papua, em Manokwari (onde incendiaram o parlamento regional) e em Jayapura, protestando contra o tratamento de que foram alvo os estudantes e de que são alvo todos os papuas por parte das autoridades e de largos sectores da população indonésia. Muitos dos que protestavam agitavam a bandeira “Estrela da Manhã”. Nos dias seguintes os protestos espalharam-se por outras cidades: Fakfak, Sorong (onde os manifestantes atacaram a prisão, libertando os seus 250 presos, e danificaram seriamente o aeroporto, obrigando à transferência dos voos), Timika, ...
Veronica Koman, uma advogada empenhada na defesa dos DH, disse a The Guardian: «É urgente resolver o conflito na Papua Ocidental. O governo sabe que as causas do conflito são a história de 1960 e o processo de integração, mas continua a seguir a abordagem errada para solucionar o conflito.» Koman declarou que havia mais de 100 indonésios entre os que tinham sido presos pelas autoridades, sugerindo que «o movimento pró-independência está a crescer entre os indonésios».
E Kornelius Purba escreveu no Jakarta Post de 27 de Agosto: «Podem rir-se agora de mim se eu prever que o povo da Papua realizará o seu sonho de independência muito antes do que esperam, assim como Timor-Leste se separou da Indonésia após o histórico referendo de 30 de Agosto de 1999.
«Muitos, sem dúvida, culparão os Estados Unidos ou a Austrália se houver uma saída da Papua. Mas vendo o comportamento racial contra os estudantes da Papua e as reacções intensas no território, nós indonésios, e não apenas o governo, só nos devemos culpar a nós mesmos. Nós tratamos os papuas da mesma maneira que tratámos o povo de Timor-Leste.
«Infelizmente, quando a Indonésia celebra sua libertação do colonialismo, um grupo de pessoas, em nome do nacionalismo, exibiu a mentalidade colonial contra outras.»
Entretanto, segundo informação divulgada por meios próximos de movimentos de solidariedade internacional, «têm vindo a realizar-se encontros entre dirigentes de topo do Sahara Ocidental, da Papua Ocidental, da Palestina, da Ambazonia (Camarões Ocidentais) e do Porto Rico, dando origem a uma nova rede de povos que resistem ao colonialismo e ao neocolonialismo contemporâneos», estando prevista a realização em Outubro de uma grande conferência onde esta nova rede pretende participar.
O que podemos concluir desta experiência de luta é que as “autonomias”, “especiais” ou não, não alteram as relações de poder nas sociedades objecto dessa concessão. E como a experiência portuguesa (1961-1974) e timorense (1975-1999) já tinham mostrado, a corrosão da base social de apoio do colono é um passo fundamental na luta pela libertação do colonialismo.

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Boletim nº 76 - Setembro 2019


FUTEBOL, VIOLÊNCIA E DIREITOS HUMANOS

No dia 19 de Julho passado jogou-se no Cairo a final da Taça das Nações Africanas - a prova futebolística mais importante daquele continente - entre as selecções da Argélia e do Senegal que a primeira venceu por 1-0. Foi o detonador para uma semana de violência no Sahara Ocidental.

Sabah Osman Hamida

Obviamente que esta vitória fez rejubilar de orgulho a população argelina onde quer que se encontrasse. Mas, curiosamente, não foi só ela que manifestou esta alegria desportiva. No Sahara Ocidental os habitantes saharauís saíram para a rua, agitando bandeiras da Argélia e do seu país. Sob a capa de um jogo de futebol defrontavam-se dois Estados que têm posições opostas quanto ao direito à autodeterminação do território. A Argélia, que reconhece e defende esse direito, o Senegal, que ainda não se tornou independente do colonialismo francês, apesar de já ter hino e bandeira, e segue as ordens de Paris para apoiar a proposta de autonomia marroquina para o Sahara Ocidental.
No final do encontro de futebol assistiu-se a cenas de violência na sua capital El Aaiún de que Amandla Thomas-Johnson, jornalista do Middle East Eye (MEE), fez um relato circunstanciado e que levaram à morte de Sabah Osman — também conhecida como Sabah Njourni – uma jovem professora de língua inglesa de 24 anos, «e que fizeram igualmente dezenas de feridos suscitando críticas que acusam Rabat de “criar uma atmosfera de opressão e de terror”».
Segundo relata,
«os apoiantes saharauís invadiram a grande avenida Smara, a principal via que atravessa El Aaiún, (...), a cantar “Um, dois, três, viva a Argélia” e a agitar a bandeira argelina.
«Dado que já tinha havido confrontos nos jogos anteriores, a polícia tinha erguido barricadas na avenida antes do encontro e colocado agentes nos cafés onde havia transmissão televisiva.
«Contudo, o ambiente começou a mudar quando alguns apoiantes começaram a agitar a bandeira da Frente POLISARIO e a entoar apelos à autodeterminação (…).
«Mansour Mohamed Moloud, uma testemunha ocular e militante da Fundação pró-saharauí Nushatta, declarou ao MEE que, depois de não ter conseguido dispersar os manifestantes, a polícia começou a apedrejá-los e estes ripostaram.
«”Ao princípio houve provocações da parte da polícia. Tentaram dispersar os manifestantes. De repente, começaram a lançar pedras o que levou os manifestantes a fazerem o mesmo”, conta Moloud.
«Os confrontos prosseguiram durante toda a noite até de madrugada, diz Moloud. As forças de segurança lançaram gás lacrimogéneo, dispararam balas de borracha e utilizaram canhões de água.
«Imagens divulgadas dos confrontos mostram o momento em que as forças de segurança avançaram em linha para ganhar o controlo da avenida, disparando projécteis.
«Os disparos podem ser ouvidos no mesmo vídeo publicado pela Fundação Nushatta, que documenta os actos de violência cometidos no território sobre a população e afirma que a polícia disparou balas de borracha e reais. Noutras imagens podem ver-se corpos ensanguentados e manifestantes a fugir da nuvem das granadas de gás lacrimogéneo.
«Pela 1:00h da manhã, Sabah Osman (…) foi atropelada na avenida por dois carros da polícia. Quando a ambulância, finalmente, chegou já estava morta. Moloud, que a conhecia pessoalmente, crê que ela foi deliberadamente visada, quando a polícia estava em dificuldades para reprimir os manifestantes. “Vi-os tentar atropelar manifestantes”, disse.
«Segundo a Fundação, mais de 200 pessoas ficaram feridas, muitas estão num estado crítico, especialmente um homem que foi igualmente atropelado pelas forças de segurança. Seis casas foram objecto de rusgas e mais de uma dezena de pessoas, dos quais 4 menores, foram presas depois dos confrontos, indicou a Fundação. Quatro de entre elas foram libertadas enquanto dez aguardam a decisão judicial.
«Moloud, que diz terem-se tratado das piores cenas de violência que abalaram o território desde há vários anos, explica que os militantes passaram à clandestinidade. “As pessoas têm medo, deixaram de andar nas ruas, escondem-se. Toda a gente desligou o telefone, justifica.»
A Amnistia Internacional (AI) publicou um comunicado no dia 1 de Agosto onde denuncia os comportamentos das autoridades securitárias de ocupação durante aqueles acontecimentos. Segundo a AI, imagens e testemunhos mostram como as forças de segurança marroquinas intervieram nas celebrações atirando pedras, usando balas de borracha e disparando gás lacrimogéneo e utilizando canhões de água para dispersar os manifestantes, ao que estes responderam atirando pedras contra os agentes.
«Há evidências claras que sugerem que a resposta inicial das forças de segurança marroquinas ao protesto saharauí, que começou pacificamente, foi excessiva e provocou confrontos violentos que poderiam e deveriam ter sido evitados», disse Magdalena Mughrabi, vice-directora da AI para o Médio Oriente e o norte de África.
Mughrabi acrescentou que a morte de Sabah Njourni «parece ser o resultado directo da falta de moderação da polícia» e considerou necessária «uma investigação exaustiva», cujos resultados sejam tornados públicos, para que qualquer membro da Polícia envolvido «seja levado perante a Justiça». Segundo a AI, existem fontes que sugerem que pelo menos 80 pessoas sofreram ferimentos, embora o número exacto seja desconhecido.
As autoridades de ocupação divulgaram por sua vez um comunicado onde responsabilizam um grupo «dirigido por indivíduos hostis» que aproveitaram as celebrações para realizar actos de vandalismo e saques e que as forças de segurança foram forçadas a intervir para proteger a propriedade pública e privada.
Na mesma ocasião a Associação Saharauí nos Estados Unidos da América (SAUSA, na sigla em inglês) publicou o relatório “Opressão marroquina no Sahara Ocidental: repressão violenta e derramamento de sangue injustificado enquanto o mundo permanece em silêncio” que descreve os acontecimentos ocorridos entre 19 e 28 de Julho na capital do Sahara Ocidental. O relatório centra-se no registo de inúmeras violações dos direitos humanos, sobre a política de repressão clara e sistemática dirigida contra a população civil, em particular os jovens, com recurso à tortura e às detenções arbitrárias. Uma menção especial é dada ao caso do atropelamento da jovem Sabah Njourni.
Mohamed Ali Arkoukou, presidente da SAUSA, dirigiu uma carta ao Secretário de Estado dos EUA, denunciando esta grave situação e solicitando a sua atenção imediata. A SAUSA pede:
  1. A libertação imediata dos detidos.
  2. O início urgente de uma investigação imparcial sobre a morte de Sabah Njourni.
  3. A necessidade de estender o mandato da MINURSO para a monitorização de violações dos direitos humanos.
  4. Insta também o Departamento de Estado a envolver-se directamente para fazer cumprir o Estado de Direito e os direitos humanos, em particular o direito de defesa das pessoas que reclamam o seu direito à liberdade de informação, de expressão e de reunião pacífica no Sahara Ocidental ocupado.
  5. Pressionar o Reino de Marrocos para que ponha fim à sua opressão.
  6. Pressionar as Nações Unidas para que ponham termo à ocupação marroquina do Sahara Ocidental.
Por sua vez o representante da Frente POLISARIO nas Nações Unidas, Mohamed Sidi Omar, enviou uma carta ao Conselho de Segurança, onde descreveu a repressão exercida por Marrocos sobre os entusiastas do futebol como uma componente da sua política sistemática de opressão no Sahara Ocidental ocupado. E exortou a organização a «responsabilizar Marrocos pelas consequências desse acto perigoso e pelos crimes hediondos praticados pelas suas forças de segurança contra a população saharauí».

domingo, 4 de agosto de 2019

Boletim nº 75 - Julho / Agosto 2019


O ATAQUE À LIBERDADE DE IMPRENSA NO SAHARA OCIDENTAL E EM MARROCOS

As notícias sobre a actuação repressiva das autoridades de Rabat no Sahara Ocidental, mas também em Marrocos, têm passado em silêncio na comunicação social. E, no entanto, as vítimas dessa perseguição são colegas de profissão.

Un desierto para el periodismo

Os Direitos Humanos como moeda de troca

O jornal Le Monde publicou recentemente um artigo de Khadija Mohsen-Finan e Pierre Vermeren sobre o actual impasse político em Marrocos e onde são abordadas as relações entre a União Europeia (UE) e aquele país. Escrevem eles:
«Em troca do "bom comportamento" do reino sobre as questões dos migrantes ou do radicalismo religioso, a UE demonstra pouca consideração pelos direitos humanos em Marrocos. (...)».
«Em 2011, para responder às reivindicações políticas e sociais da "Primavera Árabe", o governo mudou “a quente” a Constituição. A oferta real, saudada pela França e pela UE, não mudou contudo em nada o sistema e foi apenas uma resposta marginal às exigências expressas pelos marroquinos. (...)»
«Aliado privilegiado e parceiro de segurança de europeus e americanos, Marrocos já não está sob pressão para abandonar o seu governo autoritário. (...)»
«O "bom comportamento" de Marrocos nestas questões ou na luta contra o terrorismo tem um preço. A UE e os países ocidentais mostram muito pouca consideração pelos direitos humanos. (...)»
«A Comissão Europeia não teve, por exemplo, qualquer escrúpulo em ignorar a opinião do Tribunal de Justiça da União Europeia. Com efeito, este decidiu que o acordo de pesca entre a UE e Marrocos não pode aplicar-se ao Sahara Ocidental, uma vez que este território não pertence a Marrocos ao abrigo do direito internacional.
«Apesar disso, o acordo renegociado foi assinado em Rabat em 24 de Julho de 2018, incluindo uma cláusula que parece totalmente inaplicável. Os saharauís, referidos neste texto como "habitantes da região", devem, de facto, beneficiar das somas recolhidas por Marrocos da venda de recursos haliêuticos nas águas do Sahara. Assim, o acordo renegociado continuou a favorecer Marrocos, mas também a UE (…).»

O ataque à liberdade de imprensa no Sahara Ocidental ...

Em Junho passado a organização dos Repórteres Sem Fronteiras (RSF) apresentou na Asociación de la Prensa de Madrid o seu relatório “Sáhara Occidental, un desierto para el periodismo” sobre a situação da liberdade de imprensa no território. Recorde-se que Marrocos ocupa o 135º lugar entre os 180 países e territórios analisados pelos RSF na sua Clasificación Mundial de la Libertad de Prensa. A apresentação contou com a presença do jornalista saharauí Ahmed Ettanji, fundador e presidente do colectivo Equipe Media.
Os RSF denunciam a perseguição sofrida por jornalistas saharauís por parte de Marrocos, que manipula com «mão de ferro» a informação no Sahara Ocidental, pune «implacavelmente» o exercício do jornalismo local e bloqueia o acesso dos media estrangeiros. Exercer jornalismo no Sahara Ocidental é «um acto de heroísmo», cujos protagonistas pagam com detenções arbitrárias, assédio das suas famílias, difamação, tortura, prisão e «sentenças tão pesadas quanto injustas». Citam, entre outros, os casos dos jornalistas El Bachir Khadda (condenado a 20 anos), Hassan Dah e Mohamed Lamin Haddi (condenados a 25 anos) e Abdellahi Lakhfawni (cadeia perpétua), presos aquando do acampamento de Gdeim Izik e ainda Mohamed Bambari, condenado a 12 anos de cadeia.
A organização exige que Marrocos permita que a imprensa internacional entre no Sahara Ocidental, com liberdade de movimento através do território, e ponha fim à expulsão de jornalistas, ao mesmo tempo que exorta o governo marroquino a garantir processos judiciais justos para os jornalistas saharauís presos. Pede a Marrocos que cumpra a Convenção contra a Tortura das Nações Unidas e respeite a integridade física e psicológica dos jornalistas e que respeite os direitos fundamentais no Sahara Ocidental, incluindo a liberdade de expressão e informação, que garanta não só o direito dos jornalistas a exercer o jornalismo livre, mas o direito das suas cidadãs e dos seus cidadãos a receberem informações plurais e verdadeiras.
Desafia também a UE, «e especialmente os governos de Espanha e da França», para que «quebrem o seu habitual silêncio cúmplice com Marrocos e condenem a repressão dos jornalistas saharauís». Para este silêncio contribui igualmente «a precarização nestes últimos anos da profissão de jornalista e a crise do modelo económico dos media». Há também um ponto de crítica à política informativa da Frente POLISARIO – «o papel da POLISARIO no esquecimento mediático do Sahara» – que, dizem, se baseia «em slogans de propaganda que mudaram muito pouco desde a estética dos anos 70», com uma linguagem nada atraente para os meios de comunicação e redes sociais que exigem informação que vá para além do mero clichê político. Os jornalistas consultados reclamam a falta de um departamento de comunicação activo na Delegação Saharauí em Espanha e de uma estratégia de comunicação por parte das autoridades saharauís e do movimento de solidariedade com o Sahara.
Os RSF afirmam que, apesar da severa repressão de Marrocos e do silêncio dos media internacionais, «uma nova geração de repórteres saharauís corre riscos extraordinários para manter viva a chama do jornalismo e impedir que o Sahara Ocidental seja enterrado pelas areias do esquecimento: eles desafiam o férreo controle marroquino e organizam-se na clandestinidade para dizer o que o governo de Rabat não quer que seja conhecido».
Terminam o relatório afirmando que «Os Repórteres Sem Fronteiras perguntaram sobre a situação dos jornalistas presos e sobre a liberdade de informação no Sahara Ocidental a várias instâncias do Governo de Marrocos, sem obter qualquer resposta».
O jornalista Ahmed Ettanji, que recebeu em Abril passado, juntamente com o seu companheiro Mohamed Mayara, o XII Prémio Internacional de Jornalismo Julio Anguita Parrado, concedeu posteriormente uma entrevista ao colega de Espanha Jesús Cabaleiro Larrán.
Desta entrevista ressaltamos duas perguntas e as respectivas respostas:
«JCL: Há que recordar também a situação dos estudantes saharauís nas universidades marroquinas, já que no território do Sahara não existe universidade. Alguns foram assassinados ou perseguidos ou presos.
AE: Os estudantes saharauís sofrem muitas violações dos direitos humanos. Nas universidades marroquinas sofrem a marginalização, são perseguidos, detidos, vigiados e discriminados por parte dos professores e da direcção das universidades.
JCL: Não podemos esquecer porém os saharauís que estão ao serviço de Marrocos e que vivem no território à sua sombra, alguns desde o início do conflito.
AE: Em qualquer causa e conflito há sempre vendidos, são comprados por Marrocos mas não têm influência no Sahara Ocidental. Nós, como saharauís, exigimos sempre o referendo, que os saharauís votem se querem autonomia ou independência, mas Marrocos teme uma tal consulta. Nós reivindicamos a democracia, seja qual for o resultado, mas através da vontade expressa nas urnas através de um referendo.»
Outra colega de Ahmed Ettanji, também da Equipe Media, perseguida pelas autoridades coloniais marroquinas é Nazha El Khalidi. Presa em 4 de Dezembro passado, quando estava a filmar e a transmitir ao vivo as violências policiais sobre uma manifestação na capital do Sahara Ocidental, foi acusada de «reclamar ou usurpar um título associado a uma profissão regulada pela lei sem cumprir as condições necessárias para o seu desempenho». No passado dia 8 de Julho foi julgada e condenada a pagar uma multa equivalente a 400 euros. Cinco observadores internacionais – três advogados de Espanha e dois norte-americanos – viram ser-lhes recusada a assistência ao julgamento (os primeiros nem os deixaram sair do avião).
«Quero denunciar o bloqueio mediático que Marrocos está a impor ao território do Sahara Ocidental. Apelamos também a nível internacional para pressionar o governo marroquino a abrir o território a observadores internacionais e agências noticiosas para que a violação dos direitos humanos do povo saharauí possa ser documentada», disse El Khalidi à Euronews.

… e em Marrocos

Mas o regime de Rabat não limita a liberdade de expressão apenas na sua colónia. Os próprios jornalistas marroquinos são alvo da repressão das autoridades, como o artigo do Le Monde nos lembra.
Um recente e elucidativo caso é o de Taoufik Bouachrine, um jornalista de 49 anos, editor e co-fundador do jornal liberal Akhbar Al Yaoum.
Conforme a sua esposa Asmae Moussaoui contou ao diário britânico The Guardian, o seu marido tinha sido avisado por Jamal Khashoggi – o jornalista assassinado no consulado saudita na Turquia em Outubro de 2018 - de que corria perigo de vida, meses antes de ser preso em Fevereiro de 2018. Bouachrine notabilizou-se pelos seus editoriais críticos dos governos marroquino e saudita. Foi então acusado de múltiplos casos de estupro, assédio sexual e tráfico de pessoas, acusações que negou sempre. Foi condenado a 12 anos de cadeia e a sua prisão e julgamento foram denunciados pelo Grupo de Trabalho sobre as Detenções Arbitrárias do Conselho dos Direitos Humanos da ONU.
E é este regime, com estas práticas no seu próprio país e no território que ilegalmente ocupa e explora, que tem as bênçãos das democracias europeias!

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Boletim nº 74 - Junho 2019


DEMISSÃO DE KÖHLER: APENAS UMA «QUESTÃO DE SAÚDE» ?

O pedido de renúncia ao cargo de Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU para o processo de descolonização do Sahara Ocidental, apresentado por Horst Köhler e tornado público em 22 de Maio, foi uma surpresa para muitos.

Köhler renunciou

Em mensagem enviada ao SG da ONU, Köhler, com 76 anos e nestas funções desde Junho de 2017, anunciou a decisão de abandonar o cargo, justificando-a por razões de saúde.
António Guterres agradeceu o seu empenho, assinalando que os «seus constantes e intensos esforços lançaram as bases para um novo impulso no processo político do Sahara Ocidental». Expressou os seus votos de recuperação e agradeceu à Frente POLISARIO e a Marrocos o compromisso com o processo de paz e com as negociações impulsionadas por Horst Köhler.
O ex-presidente alemão tinha conseguido introduzir uma nova dinâmica nas negociações sobre o conflito, cuja face mais visível foram os encontros entre as partes, com a participação dos vizinhos Mauritânia e Argélia, em Dezembro e Março passados na Suíça.
Em 30 de Abril o Conselho de Segurança – por 13 votos a favor e 2 abstenções (África do Sul e Rússia) – tinha adoptado a resolução 2468 (2019) que prorrogou o mandato da MINURSO (Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental) por mais seis meses, como aliás o tem feito desde Abril de 2018. O Conselho apelou a Marrocos e à Frente POLISARIO para que continuem as negociações «sem condições e de boa fé» e sublinhou a importância deste «compromisso renovado» para fazer avançar o processo político.
Após a aprovação desta resolução, a Frente POLISARIO emitiu um comunicado onde reafirmou o seu compromisso em prosseguir com o o processo de paz, «apesar de uma forte oposição de quem procura manter o status quo», e a sua sincera e construtiva cooperação com os esforços do Secretário-geral das Nações Unidas e do seu Enviado Pessoal, assim como a sua vontade de participar construtivamente em negociações directas.
Face ao comunicado da renúncia de Köhler o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, Heiko Maas, fez uma declaração onde expressou a sua «sincera gratidão pessoal» e o «profundo respeito a Horst Köhler pelo seu compromisso incansável» que «lançou as bases de um processo de negociação para uma solução realista, viável e duradoura no quadro das resoluções das Nações Unidas que permite ao povo saharauí exercer o seu direito à autodeterminação». «Continuaremos nessa linha de esforços e também usaremos a nossa participação no Conselho de Segurança em 2019/20 para alcançar esse objectivo», conclui a declaração.
A Frente POLISARIO, por sua vez, declarou-se «profundamente entristecida» pela notícia e agradeceu a Köhler «os seus dinâmicos esforços para relançar o processo de paz». Instou o Secretário-geral da ONU, António Guterres, a actuar rapidamente para nomear um novo Enviado Pessoal, que compartilhe a forte convicção, estatura e determinação do antigo presidente alemão. Exortou a que não seja utilizada a sua renúncia como desculpa para fazer descarrilar o progresso alcançado desde a primeira reunião patrocinada pela ONU sobre o Sahara Ocidental em Dezembro de 2018, após anos de congelamento e estagnação. «Continuamos a acreditar que, com a vontade política e a determinação do Conselho de Segurança da ONU, está ao nosso alcance uma solução justa e duradoura que permita a autodeterminação do povo saharauí», finaliza a Frente POLISARIO.
Por sua vez «o Reino de Marrocos registou, com pesar» esta demissão, escreveu o Ministério dos Negócios Estrangeiros marroquino, prestando «homenagem ao Sr. Horst Köhler pelos esforços desenvolvidos desde a sua nomeação.»
Rabat, porém, aproveitou a oportunidade para transmitir a mensagem de que “com Marrocos não se brinca”. O Yabiladi, um sítio marroquino arregimentado ao regime, levanta a dúvida: «razões de saúde ou pressão de Marrocos?». Depreciativamente o jornalista escreve: «Ao fim de apenas 20 meses (…) Köhler acabou por deitar a toalha ao chão». E avança com uma resposta à sua pergunta citando fonte próxima do processo, segundo a qual Rabat tinha desde o início manifestado a sua oposição ao envolvimento da União Africana na procura de uma solução para o conflito. Continua este sítio: «a mesma fonte não afasta a hipótese de ligação entre o anúncio desta demissão e a visita de Nasser Bourita, Ministro dos Negócios Estrangeiros, efectuada discretamente aos Estados Unidos a semana passada. (…). “Marrocos iniciou há vários meses uma campanha diplomática junto dos seus amigos e outros países influentes sobre a questão do Sahara com vista a convencê-los dos erros cometidos pelo Alemão”, explica o nosso interlocutor. Que acrescenta que se “Köhler tivesse continuado a assumir as suas funções, o reino teria batido com a porta às negociações». E o redactor da notícia remata: «Com esta partida começa uma nova batalha para a escolha de um novo Enviado Pessoal para o Sahara ocidental. Marrocos deve empenhar-se para que a escolha do sucessor de Köhler não seja prejudicial aos seus interesses.»
Numa entrevista à Sputniknews, Mohamed Khadad, membro da direcção e responsável pelas relações externas da Frente POLISARIO, reconheceu que outros factores além da saúde tinham pesado na tomada de decisão de Horst Köekler. «Efectivamente há razões de saúde (…). Contudo, deve ser salientado que desde a sua nomeação (…) muitos obstáculos foram levantados no seu caminho». Lembrou que desde o início do seu mandato ele «tinha insistido para que a União Africana e a União Europeia fossem partes interessadas na solução do conflito no Sahara Ocidental».
«Infelizmente, o seu trabalho foi prejudicado e completamente sabotado pela atitude do governo francês que em Nova Iorque não queria que o mandato da MINURSO fosse reduzido para seis meses». E acrescentou: «Igualmente em Bruxelas, Paris tudo fez para sabotar os esforços de Köhler e não é sem razão que, durante o seu mandato, nunca foi recebido pelas altas autoridades francesas». «Foi a França que impôs que a União Europeia assinasse os novos acordos [agrícola e de pesca] que incluem o território do Sahara Ocidental em flagrante violação dos acórdãos do Tribunal de Justiça da UE».
Khadad invocou um segundo elemento que terá pesado na decisão do ex-presidente alemão. «Em Nova Iorque Köhler procurou sempre que houvesse um consenso no Conselho de Segurança e que os seus quinze membros o apoiassem votando uma resolução» mas «infelizmente os seus esforços foram sabotados pela França e pelos Estados Unidos que desta vez não procuraram chegar ao consenso pedido por Köhler ».
«Então no final encontrou-se sem o apoio unânime do Conselho de Segurança, sem o apoio da UE, além do metódico trabalho de sapa levado a cabo por Marrocos para impedir que a UA desempenhe o seu papel na resolução deste conflito que dura há demasiado tempo».
E concluiu: «Köhler, com a sua honestidade intelectual e a sua probidade, que sofreu grandes pressões por parte de certos membros do Conselho de Segurança, recusou ser instrumentalizado por certas forças contra os legítimos direitos do povo saharauí, especialmente o relativo à autodeterminação e independência, e só o honra o ter recusado, preferindo deitar a toalha ao chão».

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Boletim nº 73 - Maio 2019


PARA «IMPEDIR A EXPLORAÇÃO DOS RECURSOS DO SAHARA OCIDENTAL»

O saque das riquezas de um território tem sido um dos objectivos políticos centrais dos colonialismos ao longo dos tempos. A luta contra essa prática torna-se assim também um objectivo central dos movimentos de libertação.

SADC: conferência de solidariedade

Em 25 e 26 de Março passado realizou-se em Pretória, na República da África do Sul, a Conferência de Solidariedade com o Sahara Ocidental promovida pela Southern African Development Community (SADC).
Além dos países membros da organização - Angola, Botsuana, República Democrática do Congo, Reino de Eswatini, Lesoto, Malawi, Maurícia, Moçambique, Namíbia, Seychelles, República da África do Sul, Tanzânia, Zâmbia e Zimbabué - estiveram ainda representados os seguintes países «com opinião semelhante»: Argélia, Cuba, Timor-Leste, Alemanha, Nicarágua, Nigéria, Quénia, República Árabe Saharauí Democrática, São Tomé e Príncipe, Uganda e Venezuela. Aos Estados associaram-se também organizações da sociedade civil.
A iniciativa de realizar uma Conferência de Solidariedade «como forma de expressar o apoio (...) à descolonização e autodeterminação do Sahara Ocidental com base nos valores e princípios que guiaram a obtenção da independência em toda a África», nasceu na Cimeira da SADC de Agosto de 2017.
O longo texto aprovado inventaria o caminho seguido pela questão e os documentos que o consubstanciam no campo do direito internacional, assim como os compromissos que têm vindo a ser construídos e os obstáculos que têm sido enfrentados para a sua realização.
Três pontos são particular e insistentemente referenciados: o saque dos recursos naturais do Sahara Ocidental, a violação dos direitos humanos no território ocupado e o apoio aos refugiados nos acampamentos em Tindouf (Argélia).
Logo na introdução os «Chefes de Estado e de Governo» manifestam-se «PREOCUPADOS com a continuação da ocupação ilegal e a exploração dos recursos naturais do Sahara Ocidental» e «AINDA PREOCUPADOS com a deterioração dos direitos humanos e da situação humanitária nos territórios ocupados, conforme observado pela Comissão Africana sobre a Resolução dos Direitos Humanos e dos Povos, ACHPR / Res. 340 (LVIII) de 2016».
Dizem, depois, na declaração:
«IV.- Solicitamos ao Conselho de Segurança da ONU que amplie o mandato da MINURSO para incluir a monitorização da situação dos direitos humanos no Sahara Ocidental;
«V.- Exortamos a comunidade internacional a continuar a prestar ajuda humanitária no Sahara Ocidental e nos campos de refugiados na Argélia;
«VI.- Solicitamos a todas as partes interessadas que se abstenham de explorar os recursos naturais do Sahara Ocidental, tendo em conta a opinião do Conselho Jurídico das Nações Unidas, de Fevereiro de 2002, de que tal actividade viola o direito internacional, salvo expressa autorização do povo saharauí. Além disso, observamos que tal exploração prejudica a futura reconstrução e desenvolvimento do Sahara Ocidental e o seu potencial para se tornar um estado viável; (…).»
E detalham: «X.- Exortamos as Nações Unidas e a Unidade Africana a implementarem imediatamente um mecanismo de monitorização destinado a impedir a exploração dos recursos do Sahara Ocidental. O mecanismo deverá ter sanções e outras medidas de reparação para resolver quaisquer violações da moratória sobre a exploração dos recursos do Sahara Ocidental; (…).»
Sobre o apoio ao povo saharauí:
«XII.- Instamos a comunidade internacional a oferecer apoio material e moral, incluindo bolsas de estudo educacionais para o povo do Sahara Ocidental;
«XIII.- Exortamos a comunidade internacional e a UA a avaliar as necessidades humanitárias imediatas, especialmente das mulheres e crianças do Sahara Ocidental que vivem em campos de refugiados e a mobilizar recursos materiais para ajudar nesse sentido; (…).
«XVI.- Apelamos ao total respeito pelo direito internacional dos direitos humanos nos territórios ocupados do Sahara Ocidental e instamos o Conselho de Segurança das Nações Unidas a incluir um mecanismo de monitorização dos direitos humanos no mandato da MINURSO, com o objectivo de acabar com a impunidade de tais violações e abusos que actualmente não são relatados; (...)».
Segundo o novo jornal de Angola na sua edição de 29 de Março, Luanda foi representada pelo vice-Presidente da República, Bornito de Sousa, que afirmou a urgência do processo de descolonização do Sahara Ocidental. «A região da SADC não pode ficar indiferente à situação prevalecente no território da antiga colónia espanhola (...). Angola considera que a independência, a soberania, a unidade do Estado, a democracia e o primado da lei e do direito, assim como a observância do direito internacional, são hoje princípios cuja violação deve preocupar todas as nações.»
Conforme relata o jornalista Borralho Ndomba daquele jornal, «Na mesma data em que a SADC realizou a cimeira de solidariedade para com o povo saharauí, cujo território é o único não descolonizado no continente, o Reino de Marrocos, que é o “invasor”, realizou em paralelo, na segunda-feira, 25, em Marraquexe, uma Conferência Ministerial Africana sobre o “apoio da União Africana ao processo político das Nações Unidas relativo ao diferendo regional sobre o Sahara”. Segundo a nota de imprensa da Embaixada de Marrocos em Angola, cerca de 40 países africanos estiveram no seu evento, incluindo a SADC, reafirmaram“a escolha estratégica dos seus chefes de Estado e de Governo com vista a superar as causas de divisões”. As autoridades marroquinas são também acusadas de boicotar reuniões sobre o Sahara, chegando mesmo a incluir agressões físicas a membros da delegação saharauí. O embaixador da RASD em Angola, Bah Cheilch Mohamed, disse que a intenção de Marrocos visou impedir que a cimeira de Pretória não tivesse impacto diplomático, político e mediático.»
Como ressalta do texto aprovado em Pretória, a Frente POLISARIO continua a fazer da luta pela defesa dos recursos naturais do Sahara Ocidental um dos eixos centrais do seu combate pela independência. Conforme declarou à agência noticiosa russa Sputnik o responsável pelas relações externas do movimento de libertação Emhamed Khaddad, a Frente iria apresentar em meados do mês passado uma queixa perante o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) contra o recém assinado acordo de pesca entre a UE e Marrocos, que inclui o Sahara Ocidental, contrariando os acórdãos deste Tribunal.
«Temos a convicção de que temos um dossier muito sólido nesse contexto e que o Tribunal rejeitará totalmente esses acordos porque carecem de base legal», afirmou.
Esta decisão política segue-se à decisão do Supremo Tribunal britânico de Justiça que, em resposta a uma queixa apresentada pelo Western Sahara Campaign UK (WSCUK), sentenciou que «Os bens e produtos provenientes do Sahara Ocidental não podem ser considerados originários de Marrocos, no âmbito de direitos aduaneiros preferenciais, nem qualquer outra vantagem concedida aos produtos marroquinos pelo Acordo de Associação.»
Na decisão é igualmente indicado que o Departamento britânico do ambiente, da alimentação e dos assuntos rurais (DEFRA) «não podia atribuir legalmente quotas de pesca aos navios de pesca britânicos ao largo do Sahara Ocidental.» Rosa Curling, advogada do gabinete de advogados de direito público Leigh Day declarou que «o governo britânico não pode mais ignorar os direitos dos povos do Sahara Ocidental nas suas relações com Marrocos. Esperamos que esta vitória do Tribunal marque uma mudança na abordagem do Governo britânico, e dos Estados-Membros da União Europeia em geral, sobre esta importante questão dos direitos humanos.»
Este ponto da defesa dos recursos naturais do território constou igualmente da agenda do encontro entre Katrin Jakobsdóttir, Primeira-ministra da Islândia, quando recebeu o Presidente da República Saharaui e Secretário-geral da Frente POLISARIO, Brahim Ghali, que aproveitou a ocasião para denunciar a inclusão do Sahara Ocidental nos acordos comerciais entre a União Europeia e o Reino de Marrocos, apelando ao cancelamento imediato destes acordos, que comprometem os povos europeus em actividades ilegais, em violação do direito internacional humanitário e dos acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia.
Na reunião no parlamento islandês, Ghali expôs de novo a actual situação e os seus desenvolvimentos e apelou aos parlamentares islandeses, instituições europeias e internacionais para que pusessem fim às graves violações dos direitos humanos cometidas pelas autoridades de ocupação marroquinas nos territórios ocupados, exigindo a libertação de todos os presos políticos saharauís e a cessação da exploração ilegal e do saque marroquino dos recursos naturais do território.
Recorde-se que em Março passado, o parlamento islandês tinha ratificado a decisão adoptada em 2014, na qual solicitava ao governo que trabalhasse nos fora internacionais para garantir o direito do povo saharauí à autodeterminação, conforme estipulado nas resoluções do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral das Nações Unidas.