terça-feira, 5 de julho de 2022

Boletim nº 110 - Julho 2022

VIOLÊNCIA NO ACESSO À EUROPA: A REALPOTIK NÃO CHEGA A SER UM “PENSO RÁPIDO”

Ao primeiro teste importante, três meses passados, o verniz da “parceria estratégica” entre Espanha e Marrocos rebentou e a primeira tentação foi negá-lo e restaurá-lo apressadamente. Não será a última vez.

Mão de obra descartável (foto ECS)

Tragédias

24 de Junho 2022: na fronteira Nador (Marrocos) / Melilha (Espanha) soube-se o que tinha acontecido no próprio dia, através das imagens recolhidas por uma ONG marroquina e difundidas através das redes sociais: cerca de 2.000 pessoas migrantes (de acordo com as autoridades espanholas) tentaram saltar o muro que separa as duas localidades e os dois países. 133 conseguiram, as restantes foram travadas pela polícia marroquina: cerca de 500 acabaram encurraladas num espaço limitado, fortemente agredidas e abandonadas, amontoadas, mortas e feridas, horas ao sol, sem qualquer socorro, e perto de 1.000 foram presas. Balanço: 23 mortos e 76 feridos reconhecidos pelo governo de Rabat e 37 mortos, pelo menos, identificados pela organização espanhola de Direitos Humanos Caminando Fronteras. «A maior tragédia registada nesta fronteira», salienta o jornal espanhol Público.
17-19 de Maio 2021: milhares de migrantes foram encorajados a alcançar Ceuta, cidade espanhola do norte de África, por terra e por mar, incluindo um grande número de menores não acompanhados, aos quais se chegou a sugerir que, do outro lado, Cristiano Ronaldo estava a dar autógrafos aos adeptos. Foram cerca de 10.000 pessoas que, em dois dias, perante a permissão da polícia marroquina e a inoperância da congénere espanhola, atravessaram a fronteira.
O contraste político entre estes dois casos — em que as vítimas são sempre as mesmas – não poderia ser mais evidente. O que mudou nos 13 meses que medeiam entre um e outro?
Pedro Sánchez, Presidente do Governo de Espanha (PSOE), escreveu uma carta ao rei de Marrocos, Mohamed VI, divulgada por ordem deste último em 18 de Março passado, considerando que o plano de autonomia para o Sahara Ocidental, proposto pelo Reino de Marrocos em 2007, representa a proposta «mais séria, realista e credível» para a resolução da questão saharaui e que este posicionamento serve «para garantir a estabilidade, soberania, integridade territorial e prosperidade dos nossos dois países». Como se sabe, a "integridade territorial" de Marrocos significa, para este país, o reconhecimento da sua soberania sobre o território não-autónomo do Sahara Ocidental.
Foi esta «nova etapa da relação com Marrocos, (…) que será desenvolvida, (...) num roteiro claro e ambicioso», segundo Madrid, que levou Pedro Sánchez a declarar assim que se soube deste incidente fronteiriço, ainda sem notícia de mortes confirmadas: «Foi um trabalho extraordinário por parte das Forças e Corpos de Segurança do Estado espanhol e de Marrocos para suster um assalto violento que coloca em questão a nossa integridade territorial. Foi um assalto bem organizado e perpetrado, mas também bem resolvido. Marrocos é um parceiro estratégico de Espanha.»
No dia seguinte o chefe do governo de Espanha clarificou: «Se há um responsável de tudo o que se passou, são as máfias que traficam seres humanos». «A polícia marroquina», disse, trabalhou «em coordenação» com as forças espanholas para «repelir este assalto tão violento». Quase uma semana depois (30/06) admitiu numa entrevista que não voltaria a repetir que o incidente tinha sido «bem resolvido», depois de «conhecer a tragédia dos mortos de Nador», mas não quis criticar a actuação das forças de segurança.
O jornal francês Le Monde escreve: «Em Marrocos, as ONG relatam que a pressão sobre os migrantes tinha subido em flecha depois da reconciliação entre a Espanha e Marrocos, no seguimento de um ano de desentendimentos. Esta normalização, confirmada aquando da visita, a 7 de Abril, do chefe do governo espanhol, Pedro Sánchez, a Rabat, traduziu-se pelo compromisso de reforçar a cooperação securitária entre os dois países em matéria de migração. Consequentemente, com ‘campanhas de prisões’, ‘varrimento dos acampamentos’ [onde se concentram os migrantes], e ‘deslocações forçadas’, de acordo com os defensores de Direitos Humanos.»
Um jovem migrante explica ao jornal Público espanhol: «Agora sabemos a que preço [Espanha] cedeu o Sahara Ocidental [a Marrocos], foi o preço das próprias vidas negras, isto vai voltar a acontecer.»
«Uma centena de associações – europeias e africanas – assinaram uma declaração intitulada ‘O acordo Espanha-Marrocos sobre a imigração mata’, publicada no seguimento do drama», noticia o Le Monde.
Marrocos continua a beneficiar de um orçamento total de 147,7 milhões de euros providenciados pela União Europeia como parte do Fundo Fiduciário de Emergência para África, criado em 2015, e destinado a lutar contra a imigração ilegal e o tráfico de seres humanos, proteger as pessoas vulneráveis e fortalecer o desenvolvimento económico — sem contar com a ajuda bilateral para as suas forças de segurança e equipas de vigilância costeira.

Violências

Do lado marroquino concordam que não têm memória de episódios semelhantes, com tanta gente e tanta violência: paus, armas com lâminas e ganchos do lado dos migrantes e gás lacrimogéneo, balas de borracha e bastões do lado das forças de segurança, escreve a agência noticiosa espanhola EFE.
Um jovem que tentou atravessar a fronteira diz ao jornal espanhol El País que tanto aqueles que o tentaram fazer, como a polícia, tinham atirado pedras uns aos outros, mas notou que a polícia tinha a vantagem de usar protecção. «Os agentes marroquinos foram muito violentos, mais agressivos do que outras vezes, e as pessoas entraram em pânico», disse ele. «Foi isso que provocou a debandada».
Ao diário britânico The Guardian, um outro migrante conta que nos dias anteriores a polícia tinha efectuado várias rusgas aos acampamentos onde os migrantes e refugiados dormiam em condições muito duras, enquanto esperavam pela oportunidade de atravessar para Espanha. «A polícia confiscou comida e todo o dinheiro que encontrava, deixando os migrantes ansiosos e exaustos enquanto lutavam com níveis cada vez mais elevados de precariedade.»
O Le Monde cita a politóloga Nadia Khrouz, docente na universidade Mohamed V, em Rabat-Agdal: «Tem havido várias acções de desmantelamento dos acampamentos [dos migrantes] e foram notificados vários enfrentamentos com as forças de segurança. Houve também prisões e multas por permanência ilegal. A assistência providenciada pelas associações que forneciam tendas, cobertores e alimentação ficou muito reduzida nos últimos meses.»
O Público espanhol recolheu vários testemunhos dos jovens que conseguiram chegar a Melilha: «Os polícias estavam a atacar-nos há dois dias nos montes em Nador. O que mais podíamos fazer? (…). Queriam que nos fossemos embora, mas não nos diziam para onde. Se nos atacavam, e se ao lado estava a fronteira, claro que tentaríamos saltar. (…). Não são armas, usámo-las para escalar o muro. Não somos terroristas, somos gente que foge de uma guerra.»
«Quase todos nós, sudaneses, andamos a pé em grande parte destes percursos. Poucas vezes temos dinheiro para andar de carro. Máfias? As maiores máfias que há em Marrocos são o governo e a polícia. Nos montes de Nador ninguém pode pagar a uma máfia. Somos nós próprios que nos organizamos para saltar.»
A maioria vem de países como o Sudão, o Sudão do Sul ou o Chade, envolvidos em conflitos armados, pelo que são pessoas susceptíveis de pedir e de receber protecção internacional, explica o mesmo jornal. Mas nem os que não conseguiram passar a fronteira, nem os que foram empurrados para fora dela vão poder solicitá-la, porque não conseguem chegar ao local onde o poderiam legalmente fazer, do outro lado da fronteira.
«Segundo informação oficial, que não é muita, mais de 900 pessoas foram presas na sexta-feira e deslocadas à força para zonas a centenas de quilómetros da fronteira com Melilha, um número que aumentou para 1.300 nesta terça-feira», esclarece também o Público. «65 migrantes foram acusados judicialmente por diferentes delitos, 35 serão presentes no dia 13 de Julho ao tribunal de Apelação de Nador.»

Consequências?

«Estou chocado com a violência na fronteira Nador-Melilla», escreve António Guterres no Twitter. «O uso de força excessiva é inaceitável, e os direitos humanos e a dignidade das pessoas em movimento devem ser priorizados pelos países».
No dia 25, 50 Organizações Não-Governamentais (ONG), marroquinas e espanholas, incluindo Caminando Fronteras (Espanha) e a Associação Marroquina de Direitos Humanos (AMDH), denunciam «o trágico simbolismo das políticas da UE de externalização das suas fronteiras, com a cumplicidade de um país do Sul, Marrocos» e a «natureza mortal da cooperação securitária em matéria de migração entre Marrocos e Espanha». E a Comissão da Conferência dos Bispos da UE apela ao respeito pela dignidade humana e pelos direitos fundamentais dos migrantes e requerentes de asilo e à realização de uma «investigação independente e confiável do que aconteceu».
No dia 26, o Presidente da Comissão da União Africana, Moussa Faki Mahamat, pede «uma investigação imediata sobre a questão, e lembra a todos os países os seus deveres, ao abrigo do Direito Internacional, de tratar todos os migrantes com dignidade e dar prioridade à sua segurança e direitos humanos, abstendo-se de usar violência excessiva». E ONG marroquinas denunciam que as autoridades locais de Nador prepararam 21 fossas no cemitério de Sidi Salem para enterrar os migrantes que morreram na sexta-feira.
No dia 28, o escritório da Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos pede oficialmente a Espanha e Marrocos que assegurem «uma investigação independente e respeito pelos direitos humanos dos migrantes». A Procuradoria Geral espanhola anuncia ter aberto uma investigação à morte de, pelo menos, 23 migrantes na fronteira com Melilha, «dada a seriedade e gravidade» dos acontecimentos. E o Comité da ONU sobre Trabalhadores Migrantes, para além de exigir uma «investigação completa, independente, imparcial e transparente», pede que as vítimas e suas famílias tenham acesso à justiça e a consequentes reparações pela violação dos seus direitos humanos, e que Marrocos assegure «a preservação dos corpos dos mortos, a sua identificação completa, informação às suas famílias e o apoio necessário à trasladação dos mesmos», assim como a assistência médica aos feridos. E lembra todos os deveres dos Estados ao abrigo dos vários instrumentos internacionais que subscreveram, incluindo o Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular, aprovado em Marraquexe, Marrocos (2018).
No dia 29, o Conselho de Segurança reúne à porta fechada, a pedido do Quénia, para examinar «a violência mortal que migrantes africanos enfrentaram ao entrar no enclave de Melilha, provenientes de território marroquino», mas falha na aprovação de uma declaração comum, por falta de consenso entre os seus 15 membros, incluindo divergências entre os três representantes africanos: Quénia, Gabão e Gana. Um diplomata queniano, que já tinha dito que «Migrantes são migrantes, quer venham de África ou da Europa, não merecem ser brutalizados desta maneira», afirma agora que «as discussões sobre o texto continuam».
No dia 30, a organização Human Rights Watch, que já no dia 26 tinha denunciado a possível ocultação de cadáveres por parte de Marrocos, publica um documento no qual exige «uma investigação independente e imparcial capaz de determinar o que se passou e quem são os responsáveis».
Uma semana depois, na sexta-feira 1 de Julho, mais de 60 cidades em Espanha vêem os seus cidadãos e cidadãs sair às ruas para protestar contra o «massacre de Melilla», denunciando a actuação das forças de segurança marroquinas. Em Madrid grita-se ‘Não são mortes, são assassinatos’, ‘nenhum ser humano é ilegal’, ‘as fronteiras matam’, ‘todas as vidas valem o mesmo’. A porta-voz da organização ‘Regularização Já’ pede que «se reconheça que este não é um caso isolado, e que responde a um sistema racista do qual beneficiam os países do Norte».