sexta-feira, 5 de junho de 2020

Boletim nº 85 - Junho 2020


TESTEMUNHO DE UMA VIAGEM PELOS INFERNOS

Em finais de Abril o sítio El Confidencial Saharaui divulgou a notícia dos testemunhos dados pelo cidadão saharaui Mohamed Daihani na sua página no Facebook onde ele contava as torturas a que tinha sido submetido no centro de detenção de Tmara, uma cidade perto de Rabat, capital de Marrocos.

Viagem pelos infernos (https://www.ecsaharaui.com)

Tortura esta realizada sob a supervisão, entre outros, de Abdellatif Hammouchi, Director Geral da Segurança do Território (DGST), e Abdelhak al-Khayyam, Director Geral do Gabinete de Investigação (BCIJ).
Mohamed Daihani foi detido arbitrariamente em El-Ayún no dia 28 de Abril de 2010. Foi levado para Tmara e mantido incomunicável durante seis meses. Em 29 de Outubro daquele ano o Ministério do Interior marroquino anunciou o desmantelamento de uma célula terrorista integrando um elemento saharaui cuja descrição coincidia com a de Daihani. Em 27 de Outubro foi condenado pelo Tribunal Criminal de Rabat a 10 anos de prisão pelo crime de terrorismo, acusação que ele sempre negou. Após recurso, o tribunal reduziu-lhe a pena para 6 anos, cumprida na prisão de Salé, em Rabat.
Libertado finalmente em 2015, deslocou-se à Tunísia para realizar tratamento médico, sob o patrocínio da Amnistia Internacional, aproveitando para dar uma série de testemunhos da sua viagem pelos infernos, a história da sua detenção política.
Conta-nos, de viva voz, em hassania, as torturas que sofreu e com que fins.
«Os meus torturadores pediram-me para participar num plano hostil, num falso ataque terrorista ou envolvimento num arsenal de armas escondido na cidade ocupada saharaui de Amgala, para culpar a Frente POLISARIO de terrorismo. Recusei e fui torturado sem piedade, sujeito a tortura endémica diária, até ficar inconsciente».
As técnicas brutais de tortura usadas pelas forças de segurança contra os detidos, como forçá-los a permanecer em posições tensas ou pendurá-los pelos pulsos e joelhos de uma barra de ferro, são documentadas por Daihani com imagens desenhadas por um seu amigo.
Conforme relata Khalil Asmar, bloguista e escritor saharaui,
«Durante a sua viagem pelas horríveis prisões marroquinas, Daihani encontrou muitos detidos marroquinos, alguns dos quais foram presos sob a acusação de terrorismo. Daihani relatou a história de R. Hicham, que havia sido chantageado em troca da sua libertação; teve de se transformar em informador e foi enviado pelos serviços secretos marroquinos para se infiltrar nas fileiras dos terroristas da Al-Qaida que operam no norte do Mali, mas acabou por combater com eles de 2005 a 2007. Foi preso em 2007, no seu regresso a Marrocos, porque se recusou a fornecer aos serviços secretos marroquinos informações especiais, pondo fim à sua colaboração.
«Aquando do seu encontro com os detidos marroquinos nas prisões do regime de Rabat, Daihani descobriu a verdadeira natureza das células terroristas que Marrocos frequentemente afirma ter desmantelado, para chegar à conclusão de que todos esses grupos terroristas e o seu desmantelamento são apenas um trabalho montado pelos serviços secretos marroquinos. A "célula terrorista de Amgala", que incluía militares e civis e que Marrocos alegou ter desmantelado em Janeiro de 2011, foi uma farsa perfeita. É um produto da condenação pela União Europeia (UE) do desmantelamento brutal do acampamento de Gdeim izik que os saharauis organizaram em 2010 para protestar contra a ocupação do seu país, (...). Era uma mensagem para a UE e a comunidade internacional de que a intervenção muito musculada contra os civis saharauis deste campo de protesto era justificável e fazia parte integrante dessa célula "terrorista" desmantelada. “No centro de detenção secreto de Tmara e à força de torturar, os detidos acabam por confessar e admitem o que for preciso para terminar o seu sofrimento insuportável. Os carrascos não param de torturar até que as confissões estejam alinhadas com a agenda política do regime ditatorial de Rabat. No centro secreto de Tmara, vais admitir tudo o que for preciso", sublinhou na sua intervenção transmitida no Facebook.
«Daihani encontrou-se com os detidos da chamada "célula de Amgala", (...), disse que todas as acusações do tribunal foram baseadas em alegações completamente falsas. O procurador junto do tribunal não pôde provar a presença de armas pelas quais foram condenados e o processo penal continha acusações completamente diferentes, sem posse de armas ou filiação terrorista. A célula terrorista de Amgala é um exemplo claro de como Marrocos utiliza o falso terrorismo para simples ganho político e financeiro.
«Pior ainda, Daihani mostra na sua intervenção no Facebook como ele próprio foi chantageado. Os serviços secretos marroquinos ofereceram-se para o libertar em troca de planear actos terroristas no Sahara Ocidental ocupado. Propuseram-lhe realizar atentados, assassinar personalidades locais, criando um medo asfixiante. Uma campanha terrorista em que os marroquinos visavam matar vários coelhos com a mesma cajadada: enviar uma mensagem ao mundo de que o Sahara Ocidental é um foco de terrorismo que ameaça a segurança regional e internacional e que a presença de Marrocos no território é essencial para a segurança e o combate ao terrorismo, (...), apresentando Marrocos como o guarda seguro dessa região norte-africana.»
Dias depois o FreedomSupport continuou a divulgar as revelações de Daihani, da sua experiência e da de outros detidos, focando-se desta vez na história de um barão da droga encarcerado que estava ligado a altas personalidades políticas marroquinas.
«Foi durante uma das noites de detenção (…) que Daihani ouviu de repente um carro a rolar numa passagem pedregosa adjacente à sua célula. Através de uma pequena fresta, pôde ver um detido marroquino sair algemado de um carro e conduzido manu-militari, gritando a plenos pulmões para o levarem até Ali Alhimma, o secretário especial e amigo próximo do rei de Marrocos. "Preciso de falar com Alhimma. Preciso de falar com ele agora. Não falo com mais ninguém até ele chegar", gritou.
«O detido era de facto um traficante de droga e parecia estar envolvido num acordo fracassado de cannabis e que, por isso, despertara a suspeita dos seus chefes. Embora ele tenha gritado com raiva, os carcereiros, que torturam impiedosamente os presos políticos, permaneceram estranhamente de bico calado perante este barão do haxixe. Mais tarde, naquela mesma noite, outra viatura estacionou no mesmo local e Daihani pôde perceber Ilias El Aammari a sair do carro. Ilias El Aammari é o presidente do partido marroquino Autenticidade e Modernidade.
«Como nos filmes da Máfia, ele saiu do carro escoltado pelos seus guarda-costas e foi para a cela onde o traficante estava preso, e só então a tortura começou. Daihani enfatizou que podia ouvir o narcotraficante a gritar, dizendo que não sabia onde estava a carga que obviamente era cannabis, da qual Marrocos é o maior exportador do mundo.
«O próprio chefe do partido político do rei vigiava a tortura, pois esse narcotraficante era suspeito de se apropriar de um carregamento de droga em seu benefício e não havia melhor lugar do que esse centro de tortura para fazê-lo confessar as circunstâncias reais do suposto desvio que certamente valia milhões de dólares.
«A presença do presidente do partido do rei de Marrocos, Ilias El Aammari, e os pedidos incessantes deste narcotraficante para telefonar para o amigo mais próximo e conselheiro do rei, Ali Alhimma, é uma prova clara e verdadeira de que o tráfico intercontinental de cannabis em Marrocos está sob o controlo, supervisão e gestão da mais alta esfera política em Marrocos, o palácio real e o seu regime monárquico.
«O partido marroquino Autenticidade e Modernidade foi fundado por Ali Alhimma, amigo de infância e conselheiro próximo do rei. Inúmeros relatórios indicam que o rei Mohamed VI ordenou a criação deste partido político para combater a representação política ascendente do partido islâmico moderado, Justiça e Desenvolvimento, que preside ao actual governo. A missão de Ali Alhimma era organizar o partido e depois colocar outras personalidades a dirigi-lo sob o controle e a supervisão directa do rei.
«Com este testemunho de dentro das prisões marroquinas, parece que o rei de Marrocos também é o rei da cannabis.
«Lembremos que em 2017, o Departamento de Estado dos EUA lançou o alarme sobre a produção de cannabis em Marrocos, alegando que a exportação da droga e dos seus subprodutos representam 23% do seu PIB (US $ 100 mil milhões).»
Em 15 de Maio passado Mohamed Dahini foi chamado pelas autoridades tunisinas e aconselhado a não prosseguir com estes testemunhos. Obviamente, os dirigentes marroquinos ficaram incomodados com a divulgação desta informação e pressionaram o governo da Tunísia para a impedir, solicitando a sua extradição. Chegou a recear-se que Tunes acedesse a esse pedido, o que até agora não ocorreu.

NOTÍCIAS DA ALEMANHA: OS LIMITES DA REALPOLITIK

Sabemos como a realpolitik tem prevalecido nas relações entre a União Europeia e os seus Estados-membro, e Marrocos, no que diz respeito aos direitos do povo do Sahara Ocidental. Mas há limites e eles estão a emergir.

Limites à realpolitik

Uma deputada alemã, Katja Keul, do partido “Os Verdes”, pediu um parecer sobre a questão do Sahara Ocidental aos serviços jurídicos do parlamento nacional (Bundestag). O relatório tem a data de Março de 2019, mas só agora, um ano depois, foi dado a conhecer. Intitulado “Aspectos do Direito Internacional ligados ao conflito do Sahara Ocidental”, o documento faz uma revisão das decisões e resoluções de diversas instâncias internacionais desde 1975 (ano da ocupação marroquina, com o beneplácito do Estado espanhol, potência colonial e administrante do território), à luz dos princípios do Direito Internacional, e chega a duas conclusões fundamentais: o Reino de Marrocos é a «potência ocupante», e cometeu «violações substanciais» da Quarta Convenção de Genebra de 1949, incorrendo em «crimes de guerra».
Qual a importância destas conclusões? Ambas têm consequências quanto ao quadro em que deve ser negociado o futuro da antiga colónia espanhola, e quanto ao tipo de soluções admissíveis nesse quadro. Também têm implicações em várias campos no presente: por exemplo, no repovoamento do território com populações marroquinas, na exploração e comercialização dos recursos naturais do Sahara Ocidental ocupado e na transferência de prisioneiros saharauís para cadeias marroquinas.
Marrocos ocupou e anexou a maior parte do Sahara Ocidental, considerando-a como integrando o reino desde então. Até agora, nenhum país no mundo reconheceu oficialmente esta situação. Para tentar ultrapassar a condenação da comunidade internacional, vários aliados da monarquia alauíta têm designado Marrocos como “potência administrante” ou “potência administrante de facto”. O relatório alemão reitera que a segunda hipótese é inexistente no Direito Internacional e que Espanha nunca transferiu a sua soberania sobre o território, nem os Acordos de Madrid (que não são considerados juridicamente válidos
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A Audiência Nacional de Espanha reconheceu em 2014 que Espanha mantém o estatuto de jure de «Potência Administrante do território», assim como as responsabilidades daí decorrentes, «até que seja finalizado o período de descolonização (…) entre elas dar protecção, inclusivamente jurisdicional, aos seus cidadãos [do Sahara Ocidental], contra todo o abuso (...)». (AAN 256/2014, de 4 de Julho).
) «afectaram o estatuto internacional do Sahara Ocidental como território-não autónomo». Apoiando-se sobre vários estudos e decisões anteriores, o relatório conclui que Marrocos é a «potência ocupante» do Sahara Ocidental.
A segunda constatação diz respeito às “violações substanciais” da IV Convenção de Genebra. Está em causa o artigo 49 (parágrafo 6), inserido na Secção III, “Territórios Ocupados” que diz: «A Potência ocupante não poderá proceder à deportação ou à transferência de uma parte da sua própria população civil para o território por ela ocupado». Em consequência, o documento cita o artigo 85 (parágrafo 4) do I Protocolo Adicional à Convenção, datado de 1977, que considera que «graves violações destes instrumentos [Convenções de Genebra e I Protocolo Adicional] devem ser consideradas como crimes de guerra»; ora no mesmo artigo (parágrafo 4, alínea a) considera-se como grave violação dos mesmos instrumentos «a transferência pela Potência ocupante de parte da sua própria população civil para o território que ocupa, ou a deportação ou transferência de toda ou parte da população do território ocupado, dentro ou para fora deste território, em violação do Artigo 49 da Quarta Convenção.»
O relatório refere ainda que à luz dos Estatutos de Roma do Tribunal Penal Internacional (que, de acordo com o respectivo Artigo 8, nº 2, «tem competência para julgar os crimes de guerra, em particular quando cometidos como parte integrante de um plano ou de uma política ou como parte de uma prática em larga escala desse tipo de crimes»), na definição do que «se entende como “crimes de guerra”» (Artigo 85) se inclui «(viii) A transferência, directa ou indirecta, por uma potência ocupante de parte da sua população civil para o território que ocupa ou a deportação ou transferência da totalidade ou de parte da população do território ocupado, dentro ou para fora desse território.»
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http://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/estatuto_roma_tpi.pdf.
No entanto, a possibilidade de julgamento da responsabilidade criminal individual de quem tomou as decisões políticas em causa só pode ser considerada se o Estatuto de Roma for reconhecido pelo país infractor. Não certamente por acaso, Marrocos assinou o Estatuto em 2000 mas nunca o ratificou...

Política de repovoamento

Nos últimos dias os e as activistas saharauís têm notado a chegada a Dakhla, no território ocupado, de filas de camiões cheios de novos emigrantes marroquinos, para trabalharem no sector das pescas. Para além da persistente pilhagem dos seus recursos naturais, para além da continuação da política que os exclui dos postos de trabalho existentes na sua própria terra, agora afligem-se com mais uma preocupação: estes trabalhadores podem ser portadores de COVID-19, disseminando-a à sua volta.
A política que o relatório do Bundestag veio reafirmar como constituindo um “crime de guerra” não é nova, data do primeiro dia da ocupação, e tem-se desenvolvido consistentemente como forma de tornar o povo saharauí uma minoria no seu país, criando mais um obstáculo relevante ao processo de autodeterminação.
O relatório do Departamento de Estado norte-americano de 2019 sobre os Direitos Humanos no Sahara Ocidental exemplifica: «Como um incentivo à sua deslocação para o território, os trabalhadores do sector formal ganharam mais 85% do que os seus colegas no território internacionalmente reconhecido como Marrocos. O governo também forneceu subsídios aos combustíveis e isentou os trabalhadores de impostos sobre o rendimento e sobre o valor agregado.»

Exploração dos recursos naturais

Do ponto de vista do Direito Internacional é, pois, muito claro que no caso do Sahara Ocidental, enquanto território não-autónomo, pendente de um efectivo processo de descolonização, a potência ocupante está proibida de dispor dos respectivos recursos naturais.
Uma boa formulação deste princípio encontra-se num documento da União Africana, publicado em 2015. Depois de passar em revista toda a legislação internacional, no ponto 57, afirma: «Consequentemente, Marrocos não tem o direito legal, no quadro da Carta da ONU e do direito internacional, de ocupar ou governar o Território do Sahara Ocidental. (…). Marrocos não tem o direito de explorar nem de utilizar nenhum recurso natural, renovável ou não-renovável, localizado no território ocupado do Sahara Ocidental ou de entrar em acordo com qualquer terceira parte em relação a estes recursos.». No ponto seguinte, acrescenta: «Adicionalmente, qualquer exploração e utilização dos recursos naturais por parte de Marrocos no Sahara Ocidental mina seriamente os esforços e negociações com vista a uma solução pacífica, que têm ocorrido há mais de quatro décadas.»
Da Alemanha chegou também recentemente uma notícia consequente, que confirma outras anteriores: o Banco de Desenvolvimento público KfW (Kreditanstalt für Wiederaufbau) afirmou que não financiará projectos no Sahara Ocidental e esclareceu que o empréstimo concedido à empresa estatal de fosfatos marroquina (Marrocos OCP, S.A.) não pode ser utilizado no território ocupado.
Mais uma vez, a posição foi conhecida através de uma pergunta feita por uma deputada nacional, Eva-Maria Schreiber, ao governo. A carta do Ministério Federal da Cooperação Económica e do Desenvolvimento, datada de 7 de Maio de 2020, diz: «Os contratos existentes de crédito de desenvolvimento mencionados (…) excluem explicitamente o financiamento de actividades económicas no Sahara Ocidental.»
Sabe-se que várias empresas alemãs, entre as quais a Siemens e a Continental, estão fortemente envolvidas no esforço de colonização marroquina do Sahara Ocidental. Mas não têm apoio governamental: já em Julho de 2016 o KfW tinha escrito ao Western Sahara Resource Watch, afirmando: «não financiamos projectos no Sahara Ocidenatl e não estamos a planear fazê-lo no futuro». O esclarecimento veio na sequência de notícias publicadas na imprensa marroquina no sentido contrário, que o Banco de Desenvolvimento classificou como «enganosas». Em 2017, o Secretário de Estado do Ministério Federal dos Assuntos Económicos e Energia reiterou perante o Bundestag que «O governo federal não apoia as actividades económicas das empresas alemãs no Sahara Ocidental e não oferece garantias aos negócios através de créditos à exportação nem de garantias ao investimento.»
No entanto, a mesma Alemanha tem uma posição diferente ao nível europeu. Juntando-se aos outros governos, fez avançar a aprovação dos Acordos de pesca e de comercialização de produtos agrícolas entre Marrocos e a UE enfrentando as decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia.
Nem Marrocos, nem a União Europeia, ou os países que afinam pelo mesmo diapasão, conseguem alterar os princípios do Direito Internacional. Para fazer valer a sua política de “facto consumado” utilizam diversos expedientes e navegam, a maior parte do tempo, em águas duplas: nuns lugares dizem uma coisa, noutros afirmam, ou agem, de acordo com o seu contrário.