sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Boletim nº 77 - Outubro 2019


SAHARA OCIDENTAL: QUEM GANHA/QUEM PERDE COM A PILHAGEM DE RECURSOS

A batalha pela defesa dos recursos naturais do Sahara Ocidental, objecto de pilhagem do colonialismo marroquino, tem sido uma constante ao longo da luta de libertação do povo saharauí.

Ao serviço das multinacionais

Um dos grandes promotores deste saque – e que nos ajuda a compreender as razões do seu apoio ao regime marroquino – é a União Europeia que, com essa política, insurge contra ela não só cidadãs e cidadãos como associações profissionais.
No mês de Setembro a Coordinadora de Organizaciones de Agricultores y Ganaderos (COAG) de Espanha denunciou que «Marrocos está a reforçar o seu sistema logístico para aumentar as exportações agrícolas fraudulentas do Sahara Ocidental para o mercado europeu.» E dá o exemplo de «uma das principais companhias de navegação e transporte de contentores do mundo, a francesa CMA CGM, [que] anunciou no passado dia 7 de Agosto o arranque de uma rota semanal que ligará Dajla, nos territórios ocupados do Sahara Ocidental, aos principais portos marroquinos (Agadir – Casablanca – Tánger) e a Algeciras [Espanha] como porta de entrada na Europa. Este anúncio já se tornou realidade com a saída do primeiro cargueiro, o CMA CGM AGADIR, de Dajla no passado dia 22 de Agosto com mercadorias dos territórios saharauís e que fez as paragens necessárias nos portos de Marrocos.»
A COAG lembra que a revisão do acordo comercial UE-Marrocos assinado no princípio deste ano visava acomodar a decisão do Tribunal de Justiça (TJUE) que considerou que Marrocos e o Sahara Ocidental eram «dois territórios distintos e separados». «A COAG considera que, com esta revisão, tanto o governo de Espanha como a UE só procuram favorecer os interesses económicos de um punhado de multinacionais agro-exportadoras e, não só não cuidam dos interesses dos agricultores europeus, como também ignoram os direitos fundamentais da população autóctone do Sahara Ocidental.»
A COAG mostra a sua preocupação com o aumento das importações do Sahara Ocidental como produtos marroquinos, pois «Exercem uma concorrência desleal com base em custos mais baixos, em regulamentos muito permissivos em termos de condições de trabalho, cobertura social e salários dos trabalhadores, utilização de agro-tóxicos, segurança e qualidade de alimentos, etc. ... », afirmou Andrés Góngora, da COAG.
A Coordenadora reitera que o Acordo de Livre Comércio Agrícola UE-Marrocos viola a legislação europeia sobre comercialização de frutas e hortaliças frescas ao limitar a capacidade dos consumidores em saber claramente se um produto etiquetado como originário de Marrocos procede deste Reino ou do Sahara Ocidental. «A legislação é clara e estabelece que frutas e legumes frescos só podem ser comercializados se contiverem a indicação do país de origem. Por conseguinte, exigimos que a União Europeia reforce o controlo nas fronteiras para impedir que produtos agrícolas cultivados nos territórios do Sahara Ocidental entrem no mercado comunitário como se fossem de Marrocos, sem os esclarecimentos correspondentes na rotulagem», reivindica a COAG.
Mas não é só nos países da União Europeia que se ouvem vozes a insurgirem-se contra este saque. No parlamento da Suíça o deputado do Partido Socialista Tornare Manuel apresentou em finais de Junho uma interpelação onde começa por lembrar que sendo o Sahara Ocidental um território não-autónomo, é necessário um mecanismo de rastreabilidade das mercadorias importadas de Marrocos, até porque o seu Ministro dos Negócios Estrangeiros declarou que «a parte do Sahara Ocidental nas exportações marroquinas nunca foi discriminada».
Para mais, acrescenta o deputado, o Sahara Ocidental não está incluído nem no acordo quadro Suíça-Marrocos de 2013 nem no acordo de comércio livre Suíça-Marrocos. Pelo que coloca ao Conselho Federal as seguintes questões:
  1. «Não deveria a Suíça suspender as suas importações de produtos agrícolas e piscatórios (Marrocos e Sahara Ocidental) até ao fim do conflito?
  2. «Não fazendo Marrocos a distinção entre produtos saharauís e produtos marroquinos, não deveria o SIPPO (Swiss Import Promotion Programme) deixar de apoiar as agências marroquinas de promoção das exportações de produtos onde pode existir confusão entre Marrocos e o Sahara Ocidental?
  3. «Dado que a exploração dos recursos do Sahara Ocidental não deve fazer-se ignorando a vontade do povo saharauí, não deveria o Conselho Federal desaconselhar as empresas suíças a desenvolver actividades económicas no Sahara Ocidental até à resolução do conflito?»
Na sua resposta, em finais de Agosto, o Conselho Federal começa por referir que as importações preferenciais de Marrocos baseiam-se nas disposições do acordo entre os Estados da AELE (Associação Europeia de Comércio Livre - Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça) e o Reino, sendo que os Estados da AELE partilham uma posição comum, «a de que o acordo se aplica unicamente ao território reconhecido de Marrocos, não ao do Sahara Ocidental. O princípio vale igualmente para a importação de produtos agrícolas e piscatórios».
De evidenciar ainda que na sua resposta à terceira questão, o Conselho Federal salienta que «as empresas suíças devem exercer as suas actividades económicas no respeito do direito internacional e das normas legais aplicáveis». Para além destas, o Conselho «espera das empresas sediadas ou activas na Suíça que assumam as suas responsabilidades segundo as normas da RSE [Responsabilidade Social das Empresas] relativamente à sociedade e ao ambiente.
«De acordo com os princípios orientadores da ONU relativos às empresas e aos direitos humanos e o guia da OCDE-FAO para as fileiras agrícolas responsáveis em toda a cadeia de aprovisionamento, as empresas devem realizar uma análise para descobrir potenciais impactos negativos nos direitos humanos das suas próprias actividades e das suas cadeias de aprovisionamento».

APRENDER COM A EXPERIÊNCIA DOS OUTROS

Nos últimos dois meses a comunicação social tem destacado os acontecimentos na Papua Ocidental. Uma situação que, tal como a de Timor-Leste, tem muitos traços comuns com a do Sahara Ocidental.

Manokwary, 19 Agosto (AFP/Str)

Na década de 1950 do século passado a Holanda, após ter reconhecido a independência da sua colónia Indonésia, começou a preparar a independência da sua outra colónia, a Papua Ocidental. Em 1 de Dezembro de 1961 realizou-se um Congresso onde foi proclamada a independência, hasteada a nova bandeira – a ”Estrela da Manhã” - e entoado o hino do novo país. Mas em 1962 a Indonésia, com o apoio político e militar da União Soviética, invadiu e ocupou o território abrindo um conflito com a Holanda e a população da Papua. Com a mediação dos EUA, que queria arrancar Jacarta à influência soviética (Washington na altura estava a semear a guerra no Vietname), a Indonésia e a Holanda chegaram a um acordo «o qual dava o controlo da Papua Ocidental às Nações Unidas [que] um ano depois o transferia para a Indonésia. Os Papuas nunca foram consultados. Contudo, o acordo prometia-lhes o direito à autodeterminação.» Em 1969, após sete anos de terror em que milhares de pessoas foram assassinadas e presas — um ensaio para o que viriam depois a fazer em Timor-Leste – as autoridades de ocupação organizaram aquilo a que chamaram “Act of Free Choice”. Invocando que os habitantes eram demasiado “primitivos” para compreenderem a democracia, escolheram 1.026 cidadãos, ameaçaram matá-los e às suas famílias se votassem “erradamente” e deram-lhes a escolher entre a integração e a independência. E o voto foi “unânime” na integração. Apesar dos protestos dos Papuas, das denúncias dos meios de comunicação internacionais e do relatório de um seu funcionário que acompanhou todo este processo, a ONU, sob a presidência do birmanês U Thant, reconheceu o resultado.
Logo em 1970 recomeçou o movimento de resistência ao colonialismo indonésio, particularmente impulsionado pela política de transmigração seguida pelas autoridades que inundaram de indonésios os campos e as cidades da Papua. Nesse ano foi fundada a OPM (Organização de Libertação da Papua) que, apesar da ausência de apoio externo, conseguiu desenvolver acções esporádicas de incidência armada. Com a queda da ditadura de Suharto em 1998, as aspirações emancipatórias ganharam um novo impulso, alimentadas pelo processo de independência de Timor-Leste e por alguma abertura política conquistada às autoridades de ocupação. Em 2000 realizou-se um Congresso reunindo centenas de delegados vindos das várias comunidades do território. O Congresso rejeitou o “Free Choice” de 1969, reafirmou a Papua Ocidental como uma nação independente e elegeu um Conselho da Presidência da Papua (PDP). A OPM declarou um cessar-fogo e acreditou-se que Jacarta encetaria negociações visando a independência do território. Mas a resposta das autoridades foi um “regresso ao passado”.
Em 2001 as Forças Armadas entraram em acção em força, reprimindo brutalmente actos como o do hastear da bandeira ou o da concentração de populares, provocando a morte de centenas de pessoas e a prisão de muitas mais. Entre elas Theys Eluay, o carismático presidente do PDP, assassinado pelo exército em Novembro daquele ano.
Nos princípios de 2004 duas proeminentes figuras nas carnificinas que se seguiram ao voto na independência de Agosto de 1999 em Timor-Leste foram enviadas para a Papua. O antigo chefe da polícia Timbil Silaen foi nomeado chefe da polícia na Papua e Eurico Guterres, o antigo chefe de milícias pró-indonésias, foi encarregado de organizar milícias na região de Wamena, no interior do território.
No início do seu mandato presidencial em 2014, Joko Widodo comprometeu-se com a população da Papua a acabar com a violação dos direitos humanos, a levantar o embargo à presença da imprensa internacional e a libertar os presos políticos. Nenhum destes compromissos, porém, teve qualquer concretização, exceptuando os presos políticos que foram sendo substituídos por outros.
Apesar da concessão de um estatuto de autonomia ao território, a questão tem vindo a ganhar espaço na agenda internacional. Em 2017, uma petição organizada por Yanto Awerkion, um jovem activista de 27 anos do Comité Nacional da Papua Ocidental (KNPB), recolheu 1,8 milhões de assinaturas (ou seja, 70% da população) tendo conseguido fazê-la passar para fora do país e entregá-la à Comissão de Descolonização das Nações Unidas. A petição pedia a nomeação de um Representante Especial para investigar as violações dos direitos humanos e o pedido para «colocar de novo a Papua Ocidental na agenda da Comissão de Descolonização e assegurar o seu direito à autodeterminação», de onde foi retirada em 1963. O grupo parlamentar do Reino Unido sobre a Papua apoiou calorosamente a iniciativa. Awerkion foi condenado a 10 meses de prisão por sedição e separatismo e a ONU recusou receber a petição alegando que a Papua já «não consta da agenda».
Ainda em 2017, as alegações sobre a violação dos direitos humanos pelas autoridades indonésias na Papua foram denunciadas, ao fim de muitos anos de silêncio, na sessão do Conselho dos DH da ONU, onde um conjunto de Estados do Pacífico – Nauru, Vanuatu, Tonga, ilhas Salomão, Palau, Tuvalu e ilhas Marshall – lembrou as prisões, os espancamentos, as torturas, as execuções extra-judiciais, a violência sobre as mulheres.
Em Agosto passado o Fórum das Ilhas do Pacífico, realizado em Tuvalu, aprovou uma resolução onde defende que o Conselho dos DH deve investigar a situação dos direitos humanos na Papua Ocidental. Os dirigentes dos Estados do Pacífico «encorajam a Indonésia» a facilitar uma visita da Alta Comissária das Nações Unidas no espaço de um ano a fim de que ela possa apresentar um «relatório informado, baseado em factos» no Fórum do próximo ano.
Aquando das manifestações de celebração do seu “dia da independência” (1 de Dezembro) mais de 500 pessoas foram presas, abrindo-se um novo ciclo de confrontos e violência.
A 14 de Agosto, uma comissão de membros de organizações dos direitos humanos, que inclui as igrejas da Papua Ocidental, tornou público um relatório sobre os conflitos entre as Forças Armadas indonésias e grupos independentistas. Revela que 182 pessoas morreram, maioritariamente mulheres e crianças, algumas às mãos das forças de segurança, muitas de fome e de doença, na fuga das zonas de confronto. Em Julho do ano passado a secção indonésia da Amnistia Internacional tinha alertado para que pelo menos 95 pessoas tinham morrido desde 2010.
Finalmente no dia 17 de Agosto, dia nacional da Indonésia, aniversário da proclamação unilateral da sua independência em 1945, centenas de pessoas cercaram a residência onde estavam alojados 43 estudantes (40 rapazes e 3 raparigas) da Papua, na cidade de Surabaia em Java oriental. O que teria provocado a sua cólera teria sido, diziam, o facto de os estudantes terem recusado celebrar o aniversário da independência e terem desrespeitado uma bandeira da república. Segundo relata a jornalista Evi Mariani no Jakarta Post, as forças de segurança isolaram a residência, invadiram-na e prenderam os seus ocupantes, enquanto os circundantes gritavam «expulsem esses “macacos”!». A jornalista refere que muitos indonésios consideram os papuas uns ingratos face ao dinheiro que o governo central tem injectado no território para obras de infra-estruturas. «Damos-lhes estradas, desenvolvimento e montes de dinheiro para os fundos para a autonomia especial», dizem. Mas Mariani reconhece: «Contudo, falhámos em dar-lhes o respeito que eles merecem e o reconhecimento de que são nossos iguais. Como cidadãos da Indonésia, têm a mesma oportunidade de protestar quando pensam que estão a ser tratados injustamente.»
E foi precisamente o que fizeram. No dia 19 milhares de pessoas desceram à rua nas cidades da Papua, em Manokwari (onde incendiaram o parlamento regional) e em Jayapura, protestando contra o tratamento de que foram alvo os estudantes e de que são alvo todos os papuas por parte das autoridades e de largos sectores da população indonésia. Muitos dos que protestavam agitavam a bandeira “Estrela da Manhã”. Nos dias seguintes os protestos espalharam-se por outras cidades: Fakfak, Sorong (onde os manifestantes atacaram a prisão, libertando os seus 250 presos, e danificaram seriamente o aeroporto, obrigando à transferência dos voos), Timika, ...
Veronica Koman, uma advogada empenhada na defesa dos DH, disse a The Guardian: «É urgente resolver o conflito na Papua Ocidental. O governo sabe que as causas do conflito são a história de 1960 e o processo de integração, mas continua a seguir a abordagem errada para solucionar o conflito.» Koman declarou que havia mais de 100 indonésios entre os que tinham sido presos pelas autoridades, sugerindo que «o movimento pró-independência está a crescer entre os indonésios».
E Kornelius Purba escreveu no Jakarta Post de 27 de Agosto: «Podem rir-se agora de mim se eu prever que o povo da Papua realizará o seu sonho de independência muito antes do que esperam, assim como Timor-Leste se separou da Indonésia após o histórico referendo de 30 de Agosto de 1999.
«Muitos, sem dúvida, culparão os Estados Unidos ou a Austrália se houver uma saída da Papua. Mas vendo o comportamento racial contra os estudantes da Papua e as reacções intensas no território, nós indonésios, e não apenas o governo, só nos devemos culpar a nós mesmos. Nós tratamos os papuas da mesma maneira que tratámos o povo de Timor-Leste.
«Infelizmente, quando a Indonésia celebra sua libertação do colonialismo, um grupo de pessoas, em nome do nacionalismo, exibiu a mentalidade colonial contra outras.»
Entretanto, segundo informação divulgada por meios próximos de movimentos de solidariedade internacional, «têm vindo a realizar-se encontros entre dirigentes de topo do Sahara Ocidental, da Papua Ocidental, da Palestina, da Ambazonia (Camarões Ocidentais) e do Porto Rico, dando origem a uma nova rede de povos que resistem ao colonialismo e ao neocolonialismo contemporâneos», estando prevista a realização em Outubro de uma grande conferência onde esta nova rede pretende participar.
O que podemos concluir desta experiência de luta é que as “autonomias”, “especiais” ou não, não alteram as relações de poder nas sociedades objecto dessa concessão. E como a experiência portuguesa (1961-1974) e timorense (1975-1999) já tinham mostrado, a corrosão da base social de apoio do colono é um passo fundamental na luta pela libertação do colonialismo.

TIMOR-LESTE E SAHARA OCIDENTAL: DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS

A 30 de Agosto último, o Presidente de Timor-Leste, Francisco Guterres (Lú-Olo), afirmou no seu discurso oficial perante as delegações nacionais e internacionais e o corpo diplomático acreditado em Díli: «Não podemos comemorar o vigésimo aniversário do referendo de autodeterminação do povo timorense sem fazer uma menção ao povo irmão do Sahara Ocidental. Em nome do povo timorense, aproveito a ocasião para expressar o nosso mais profundo sentimento de solidariedade».


Os dois casos são como irmãos gémeos: duas colónias da Península Ibérica, o território de Timor colonizado por Portugal e o território do Sahara colonizado por Espanha. Os ventos de mudança varrendo em simultâneo (embora diferentemente) as potências coloniais, em 1974-75, deram força às aspirações populares independentistas, na cauda do tempo da cadeia de sucessivos processos de descolonização na Ásia e em África (iniciada no pós-guerra).
Perante as pulsões agressivas de dois grandes vizinhos, a Indonésia e Marrocos, respectivamente, ambos esgrimindo argumentos de natureza histórica e de olhos postos nas riquezas alheias, as Nações Unidas confirmaram em 1975 o estatuto das duas colónias, reconhecido desde 15 de Dezembro de 1960, como Territórios Não-Autónomos, pendentes de processos de autodeterminação.
Foi aí que a singularidade de cada caso marcou um ponto importante: Portugal nunca renunciou ao seu estatuto de Potência Administrante, acreditando que o povo timorense acabaria por aceitar a fatalidade de ser absorvido por um poderoso país vizinho e, verificando-se o contrário, vendo-se acossado por resoluções na ONU cada vez mais perto da derrota, decidiu-se por fim a tentar uma resolução diplomática do conflito, evoluindo mais tarde para uma atitude de assumido empenho político na defesa dos direitos do povo timorense; a Espanha optou por desfazer-se do problema e, ardilosamente, proclamando a sua disponibilidade para organizar um referendo (Agosto 1974), assinou um acordo tripartido com Marrocos e a Mauritânia estabelecendo a repartição do Sahara Ocidental (Novembro 1975). A Mauritânia, militarmente derrotada pelas forças da Frente POLISARIO, assinou a paz com esta (Agosto 1979) e acaba de convidar o Presidente da República Árabe Saharauí Democrática (RASD) para a investidura do seu homólogo recém-eleito (Agosto 2019).
Há mais algumas singularidades: tendo o Conselho de Segurança da ONU um papel fundamental na resolução destes conflitos, não é indiferente o apoio incondicional de um dos seus membros, a França, à nova potência colonizadora, Marrocos. A Indonésia teve durante todo o período de ocupação de Timor-Leste o apoio explícito e activo da Austrália (único país que reconheceu oficialmente a criação da chamada “27ª Província” indonésia), mas esta não detinha poder de veto nas Nações Unidas. Também Timor está muito longe, geograficamente falando, da sua Potência Administrante e os interesses portugueses no território (geopolíticos, económicos…) nunca foram relevantes, ao passo que Marrocos está a dois passos do Estado Espanhol e usa, e abusa, do seu poder de abrir e fechar fronteiras com Ceuta e Melilla, e de ameaçar deixar passar mais migrantes, ou mais droga, ou mais “terroristas”. Finalmente, e para resumir, as ligações e interesses espanhóis, e europeus, com e em Marrocos, são incontáveis, e deles faz o Reino alauíta uma hábil teia de apresar “moscas”.
Há um outro fenómeno diferenciador: enquanto que os países asiáticos sempre apoiaram a Indonésia, em África, a então Organização de Unidade Africana acolheu como membro a República Árabe Saharauí Democrática (1984), provocando a saída intempestiva de Marrocos. O Reino voltou a solicitar a adesão (2017) mas a RASD, com apenas o senão de não poder contar com a solidariedade dos países que foram colónias francesas, viu o apoio da UA (Unidade Africana) reforçado nos últimos anos. O continente sabe o que é o colonialismo e a Argélia, que pagou cara a sua revolta contra a potência colonial francesa, não o esquece.
As diferenças não anulam as semelhanças próprias de dois casos gémeos.
Do lado dos regimes ocupantes, as estratégias de sempre foram aplicadas pela Indonésia e continuam a ser a política de Marrocos: isolamento dos territórios ocupados, o que facilita as violações graves e permanentes dos direitos humanos e o silenciamento dos meios de comunicação social nacionais e estrangeiros, em contraponto com campanhas mediáticas falsas e agressivas fomentadas pelo poder de Estado; manobras diplomáticas, compra de personalidades e instituições, ameaças e intimidação de jornalistas, defensores de direitos humanos e políticos de muitos países não alinhados com as suas teses e acções. Ao mesmo tempo, opressão do seu próprio povo.
Do lado dos povos ocupados, percursos semelhantes: luta armada e diplomática, solidariedade internacional; prolongamento das reivindicações independentistas nas novas gerações, surgimento de formas de luta pacíficas nas cidades ocupadas, reforço das identidades culturais, esforço de comunicação com o exterior e denúncia das situações de repressão sistemática e brutal e de captura dos recursos naturais nacionais.
Em Timor Leste o cumprimento do Direito Internacional acabou por prevalecer, fruto de muito esforço articulado de várias frentes que encontrou uma oportunidade no seguimento do derrube da ditadura indonésia. O referendo realizou-se a 30 de Agosto de 1999 e, apesar de todas as ameaças, as convicções e a coragem do povo timorense ditaram o reconhecimento da independência do país.
No Sahara Ocidental o referendo foi aceite por ambas as partes, preparado pela ONU, apoiado pela criação da MINURSO - a Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (1991). Concluído o recenseamento em Janeiro de 2000, Marrocos denunciou o processo que antevia iria ditar a sua derrota. Desde então, várias tentativas de retomar o processo negocial têm sido boicotadas pelo Reino e pelos governos seus apoiantes. O direito do povo saharauí à autodeterminação está por cumprir.
O povo do Sahara Ocidental não desiste da sua luta, como o povo timorense nunca desistiu. Instâncias intergovernamentais guiadas pelo Direito Internacional - as Nações Unidas (nomeadamente o chamado “Comité de Descolonização” que supervisiona estes casos), a União Africana, o Tribunal de Justiça da União Europeia, entre outros - mantêm uma posição clara: a Frente POLISARIO representa o povo saharauí e este tem direito a pronunciar-se livremente sobre o seu destino.
Um povo em luta por um direito que lhe é reconhecido internacionalmente merece a nossa activa solidariedade. Relembrando a Constituição Portuguesa: “Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao desenvolvimento, bem como o direito à insurreição contra todas as formas de opressão.” (Artigo 7º, 3.)

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