terça-feira, 5 de novembro de 2019

Boletim nº 78 - Novembro 2019


«CONTINUO CONVENCIDO QUE É POSSÍVEL UMA SOLUÇÃO PARA A QUESTÃO DO SAHARA OCIDENTAL»

É com esta convicção que o Secretário-geral da ONU abre o capítulo das “Observações e recomendações” do seu relatório ao Conselho de Segurança. Mas o que transparece do mesmo é uma enorme impotência política das Nações Unidas.

Uma fraca prestação

No passado dia 2 de Outubro o Secretário-geral das Nações Unidas tornou público o seu relatório semestral, a que está obrigado pelas Resoluções do Conselho de Segurança, sobre a situação no Sahara Ocidental, em que «relata os desenvolvimentos desde a emissão do relatório anterior em 1 de Abril de 2019 (S/2019/282) e descreve a situação no terreno, o estado e o progresso das negociações políticas sobre o Sahara Ocidental, a implementação da resolução 2468 (2019), os desafios enfrentados pelas operações da Missão e as medidas adoptadas para superá-las». O relatório serviu de base à aprovação da prorrogação do mandato da MINURSO (Missão das Nações Unidas para a Organização de um Referendo no Sahara Ocidental) por mais um ano, contrariando a tendência das últimas resoluções em que era apenas por seis meses. Voltaremos à adopção desta resolução, a 2494 (2019), pelo Conselho de Segurança e a respectiva reacção por parte da Frente POLISARIO numa próxima edição.
Sobre a evolução da situação o relatório considera que «Durante o período em análise, a situação no Sahara Ocidental permaneceu relativamente calma, apesar de algumas incertezas. No geral, as partes continuaram a implementar o acordo militar n.º 1 e os acordos relacionados e a respeitar o cessar-fogo.»
Entre as “incertezas” estará «O ponto de passagem de Guerguerat, entre o Sahara Ocidental e a Mauritânia, no extremo sul do Território, [que] passou por fortes tensões entre comerciantes, manifestantes e autoridades fronteiriças marroquinas. Desde o meu relatório anterior, indivíduos e pequenos grupos que protestavam contra a falta de perspectivas sócio-económicas ou contra as políticas e medidas aduaneiras, organizaram protestos em 54 pontos» no interior da zona tampão que separa a parte ocupada da parte libertada do Sahara Ocidental. «A MINURSO interveio informalmente em várias ocasiões para aliviar as tensões e restaurar o tráfego, além de ajudar turistas estrangeiros bloqueados na zona tampão.»
«O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (HCDR) está preocupado com a persistência das amplas restrições impostas pelas autoridades marroquinas aos direitos à liberdade de expressão e à liberdade de reunião e de associação pacíficas no Sahara Ocidental.» Assim começa o parágrafo do relatório sobre os direitos humanos, onde se dá conta de que «o HCDH continuou a receber denúncias de assédio e prisão arbitrária de jornalistas, advogados, bloggers e defensores de direitos humanos que denunciavam violações cometidas no Território. (...). Segundo informações recolhidas pelo HCDH, teria sido utilizada uma força excessiva para dispersar manifestações pacíficas, que provocaram feridos em várias ocasiões e uma vítima numa situação. (...). De acordo com alguns relatos, os detidos saharauis em Marrocos continuam sujeitos a tortura e a maus-tratos.»
O relatório dá igualmente conta de um incidente ocorrido nos campos de refugiados. «Entre Abril e Junho, pequenos grupos de civis saharauís manifestaram-se repetidamente nos campos de refugiados perto de Tindouf (Argélia) contra as regras adoptadas pela Frente POLISARIO para controlar os pontos de passagem entre os campos de refugiados e o território da Mauritânia e os pontos permitindo passar para a zona leste do muro de areia [a ‘zona libertada’]. Também pediram liberdade de movimentos e reformas gerais. Em Rabouni (Argélia), foram organizadas manifestações para exigir que a Frente POLISARIO soubesse do destino de Khalil Ahmed, um membro da Frente POLISARIO desaparecido na Argélia em 2009. Em 15 de Julho, a mulher e os filhos de Ahmed iniciaram uma manifestação em frente ao complexo da ONU em Rabouni e, em 29 de Julho, cerca de 60 manifestantes invadiram o complexo. O pessoal das Nações Unidas não foi expressamente ameaçado, mas como precaução, 13 funcionários das Nações Unidas e 11 membros de organizações não-governamentais internacionais foram transferidos para perto de Tindouf. Em 4 de Agosto, após negociações com a Frente POLISARIO e dirigentes tribais, a família de Ahmed saiu e as Nações Unidas regressaram ao complexo.»
Sobre as «Dificuldades encontradas pela Missão nas suas operações», o relatório volta a referir que «A MINURSO continua com o acesso negado a qualquer interlocutor local a oeste do muro de areia [zona ocupada por Marrocos], o que prejudica a sua capacidade de colher informações fiáveis, avaliar a situação na sua área de responsabilidade e informar sobre elas.»
Outra referência constante nos relatórios do Secretário-geral é «A imposição por Marrocos da utilização de matrículas marroquinas em veículos da MINURSO a oeste do muro de areia, violando o acordo sobre o estatuto da Missão, [que] continua a desconsiderar a imagem de imparcialidade da Missão aos olhos da população. Em Março de 2014, o meu representante especial e o governo marroquino concordaram verbalmente em substituir gradualmente as matrículas marroquinas por matrículas da ONU. Este acordo ainda não foi implementado.»
O relatório é muito crítico sobre a «Assistência à protecção dos refugiados do Sahara Ocidental». Um inquérito levado a cabo em Abril deste ano pelo HCR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) e o PAM (Programa Alimentar Mundial) mostrou uma degradação da situação relativamente a 2016, com um aumento da má nutrição e da anemia, com o consequente atraso no crescimento das crianças e jovens. «(…) todos os indicadores de desnutrição aumentaram desde a pesquisa realizada em 2016, incluindo desnutrição aguda global (7% vs. 4%), os atrasos de crescimento (28% vs. 18%), anemia em crianças (50% vs. 38%) e anemia entre as mulheres (52% vs. 43%). (…). O principal desafio para os actores humanitários continua a ser a falta de recursos.»
Além das violações dos DH praticadas pelas autoridades marroquinas o relatório faz igualmente referência a um caso que já aqui referimos: «a prisão arbitrária de um blogger e de um defensor dos direitos humanos» pelas forças de segurança da Frente POLISARIO. (…). Ambos tinham denunciado a administração dos campos de refugiados de Tindouf nas redes sociais.»
Citámos no início a convicção do Secretário-geral António Guterres quanto a uma solução para o processo de descolonização do Sahara Ocidental, o que exigirá, segundo ele, «uma forte vontade política por parte das partes e da comunidade internacional.» Por isso, diz: «Exorto os membros do Conselho de Segurança, os amigos do Sahara Ocidental e outras partes interessadas a encorajar Marrocos e a Frente POLISARIO a envolverem-se de boa fé e sem pré-condições no processo político, assim que o meu novo enviado pessoal for nomeado.»
Neste quadro o contributo da ONU é ajudar a ultrapassar as “incertezas” ou, para utilizar a linguagem do relatório, a «prevenir ou reduzir as tensões» entre as partes. «Esse papel permanece essencial para manter um ambiente propício ao sucesso do processo político». Esta é uma afirmação inquestionável, mas ao fim de 46 anos de processo de descolonização, tornou-se manifestamente insuficiente.
Em 15 de Outubro a Frente POLISARIO reagiu ao relatório, em carta assinada pelo seu Secretário-geral e entregue pelo Representante permanente da Namíbia junto das Nações Unidas a António Guterres.
«Gostaríamos de sublinhar que, em vez de chamar a atenção para os aspectos acessórios do mandato da Missão, deve-se sempre ter presente que a principal missão da MINURSO e a sua razão de ser é, como o prevêem as resoluções do Conselho de Segurança sobre o assunto, a realização de um referendo livre e regular sobre a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental». E critica a permissividade das Nações Unidas às pressões de Rabat. «Desde a renúncia do Enviado Pessoal do Secretário-geral para o Sahara Ocidental, Horst Köhler, Marrocos tem vindo a fazer todo o possível para enfraquecer o impulso criado nos últimos meses e consolidar o status quo. Particularmente preocupante, Marrocos exerce uma influencia unilateral, e livremente, na nomeação de um novo enviado pessoal, estabelecendo um conjunto de pré-condições e veto a certas candidaturas. (…) não permitiremos - e a ONU não o deve permitir - que o processo de paz das Nações Unidas, incluindo a nomeação do enviado pessoal do Secretário-geral, se afunde nas pré-condições impostas por Marrocos e as interferências deste país.»
Sobre a passividade da ONU perante as restrições marroquinas, como a da matricula dos veículos, a carta afirma: «É necessário acabar de vez com essas práticas inaceitáveis, que comprometem a imparcialidade, a independência e a credibilidade da MINURSO e da própria ONU.»
Quanto à tensão existente na zona sul do território junto à fronteira com a Mauritânia a Frente POLISARIO lembra: «Primeiro, o Secretário-geral não menciona que a brecha aberta por Marrocos no seu muro militar em Guerguerat não existia no momento da entrada em vigor do cessar-fogo, em 6 de Setembro de 1991, nem aquando da assinatura do acordo militar n.° 1 entre a MINURSO e a Frente POLISARIO, em 24 de Dezembro de 1997.» E enfatiza: «A Frente POLISARIO realça que o aumento das tensões em Guerguerat se deve principalmente à existência da violação ilegal resultante de uma alteração unilateral por parte de Marrocos do status quo nessa área, perante a qual o Secretariado e o Conselho de Segurança da ONU deveriam ter reagido imediatamente, com firmeza e determinação.»
Sobre as violações dos direitos humanos nos territórios ocupados, diz a carta: «Compartilhamos da opinião do Secretário-geral de que "é necessário um acompanhamento independente, imparcial, abrangente e sustentado da situação dos direitos humanos para garantir a protecção de todos os habitantes do Sahara Ocidental"».
E reafirma uma proposta há muito avançada por múltiplos organismos: «Dadas as violações sistemáticas e persistentes dos direitos humanos cometidas pelas autoridades marroquinas contra o povo saharauí, não podemos compreender porque não é adicionado ao mandato da MINURSO uma componente "direitos humanos", o que permitiria [replicar] no Sahara Ocidental o que todas as outras missões de manutenção da paz das Nações Unidas fazem, a saber, garantir o acompanhamento constante da situação desses direitos.»

KHADIJA RYADI: «A INSURREIÇÃO POPULAR ACONTECERÁ EM MARROCOS»

Entrevista com Khadija Ryadi, a primeira mulher a ocupar a presidência da Associação Marroquina de Direitos Humanos (AMDH), sobre a situação dos movimentos sociais em Marrocos. Entrevista concedida a Jérôme Duval e publicada em 11 de Junho. Criada em 1979, esta associação comemora este ano o seu 40º aniversário e é uma das duas ONG de direitos humanos mais antigas do reino. Khadija Ryadi ganhou o Prémio das Nações Unidas para os Direitos Humanos em 2013.

Khadija Ryadi

Jérôme Duval: Pode apresentar-nos a AMDH?
Khadija Ryadi: A AMDH trabalha sobre diferentes aspectos económicos, sociais, culturais, ambientais ou civis e políticos, bem como sobre os direitos das mulheres, dos migrantes, das crianças ou dos deficientes. A AMDH, que tem cerca de 12.000 membros, possui três secções na Europa e está implantada em todo o Marrocos com 92 secções locais. É membro da Federação Internacional de Ligas dos Direitos Humanos, da Rede Euro-Mediterrânea de Direitos Humanos, da Organização Árabe dos Direitos Humanos e da Coordenação do Magrebe das organizações de direitos humanos, das quais actualmente sou coordenadora em nome da AMDH. Caracteriza-se pelo seu sistema único de referência universal dos direitos humanos.
De passagem por Bruxelas falou sobre a questão dos presos políticos. Do que se trata?
Actualmente em Marrocos existem, de facto, centenas de presos políticos. Geralmente são pessoas que reivindicam direitos elementares e fundamentais como a educação e a saúde pública, a água potável, o fim da corrupção, etc.. Esses direitos básicos deveriam, evidentemente, ser garantidos pelo Estado, dado o compromisso oficial de Marrocos no campo dos direitos humanos.
No Rif, no norte de Marrocos, em Al Hoceima em particular, foi desencadeado um movimento pela morte de um peixeiro, Mohcine Fikri. Ele quis recuperar os seus bens confiscados e lançados pelas autoridades num carro do lixo e nessa tentativa morreu trucidado, em 28 de Outubro de 2016. Milhares de pessoas saíram de imediato para a rua até Maio de 2017, quando a repressão impossibilitou a continuação do movimento. A brutalidade, o número excessivo de prisões, a tortura e os julgamentos políticos travaram esse entusiasmo popular. Centenas de pessoas foram presas e cerca de 50 delas, entre as quais os dirigentes conhecidos desse movimento, foram transferidas para 700 km do seu local de residência para serem julgadas em Casablanca, o que aumentou o sofrimento das famílias que tinham de fazer longas viagens durante a semana para assistir ao julgamento e visitar os parentes na cadeia. As sentenças chegaram aos 20 anos de prisão. Além do Rif, outras cidades de Marrocos conheceram protestos populares e foram confrontadas com a repressão, as prisões e os julgamentos políticos.
Quantas pessoas do Hirak ainda estão hoje presas?
O AMDH contou mais de mil pessoas que foram presas por causa dos protestos sociais durante o Hirak vivido em Marrocos em 2017-2018. Esperamos pelo novo relatório do AMDH
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Nos seus relatórios anuais, a AMDH publica, no capítulo dedicado à detenção política, a lista nominal das pessoas de cuja prisão por razões políticas têm provas.
para termos a situação actualizada, porque várias pessoas saíram do país, outras, cerca de uma centena, foram indultadas o ano passado, e outras cem este ano. Mas, de acordo com a minha própria estimativa, haverá ainda entre 300 a 400 pessoas na prisão. As prisões e os julgamentos injustos continuam.
Quais as razões que levam, em geral, à prisão dessas pessoas?
As verdadeiras razões, todos as conhecem. É uma maneira de punir as pessoas que tiveram a coragem de protestar contra uma situação social alarmante e degradada, mas as acusações que enfrentam no tribunal não têm nada a ver com a realidade. São acusadas de violência, suspeitas de adesão a causas separatistas, de receberem dinheiro do exterior de fontes duvidosas, de tratarem brutalmente os polícias ou participarem na destruição de bens públicos. Em Marrocos, os tribunais são instrumentos do Estado. Os juízes pronunciam sentenças sem qualquer prova. Todos os observadores presentes o confirmaram e todas as ONG marroquinas de direitos humanos, sem excepção, mesmo as mais moderadas e conciliadoras, bem como personalidades longe de serem da oposição, consideram esses presos inocentes, reivindicam a sua libertação e qualificam os julgamentos de injustos.
E além desse movimento, sabe-se quantas pessoas estão presas em Marrocos por razões políticas?
Uma dúzia de activistas da União Nacional de Estudantes de Marrocos ainda está na prisão. Activistas do 20 de Fevereiro e pelo menos 35 independentistas saharauís continuam encarcerados. Jornalistas e autores de blogues também são vítimas de julgamentos injustos e presos pelos seus artigos ou investigações; cidadãos e cidadãs são lançados na prisão por defenderem as suas terras contra as empresas multinacionais ou contra personalidades apoiadas pelas autoridades. Um grande número de islamitas também foi julgado na luta contra o terrorismo sem haver nenhuma prova do seu envolvimento em actos ou redes terroristas. Reivindicamos sempre a sua libertação pois são pessoas presas pelas suas crenças religiosas ou ideológicas.
Na sua intervenção falou de "ditadura" a propósito de Marrocos. No entanto, parece que na Europa se utilizava mais essa designação no tempo de Hassan II do que hoje. O que nos pode dizer sobre os Estados ocidentais que exaltam frequentemente uma fachada democrática de Marrocos?
Marrocos soube cuidar da sua imagem. Desde a chegada ao poder do actual rei Mohammed VI, a Comissão de Equidade e Reconciliação, encarregada de esclarecer as graves violações dos direitos humanos que ocorreram entre 1956 e 1999, indemnizou as antigas vítimas de tortura ou de desaparecimento forçado, esclareceu alguns casos de desaparecidos políticos, mas não fez avançar Marrocos para uma verdadeira democracia. Em 2011, sob a pressão do movimento de 20 de Fevereiro que organizou protestos em todo o país, foi adoptada uma nova Constituição contendo um certo número de garantias do Estado de respeito pelas liberdades. No entanto, sem verdadeira independência da justiça, esta Constituição permanece não democrática. Assim, os limites à liberdade de expressão persistem e os tabus, como a monarquia, a religião islâmica ou a questão do conflito no Sahara Ocidental, fazem parte deles. O nível de tolerância até diminuiu, agora há pessoas na prisão por causa de um comentário no Facebook. Das centenas de presos do Hirak, muitos nem saíram às ruas para protestar, prenderam-nos só porque expressaram a sua raiva.
Há alguns dias atrás, Abdollah Chabni foi condenado a três anos de prisão por dizer no Facebook que a marcha de apoio aos presos do Hirak, realizada em 21 de Abril, deveria transformar-se em desobediência civil. Como se pode qualificar um Estado, que prende as pessoas por comentar, senão como uma ditadura? Não é porque não há desaparecimentos forçados como antes e lugares tristemente conhecidos por tais práticas como Tazmamart
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Tazmamart era uma prisão secreta para presos políticos. Símbolo da opressão sob o reinado do rei Hassan II, foi finalmente encerrada em 1991, sob pressão de grupos internacionais de direitos humanos.
, que não vamos falar de ditadura. Deixou de haver uma imprensa independente, deixou de haver jornalistas de investigação capazes de criticar porque a dissidência é sistematicamente reprimida.
Pensamos nesse jovem argelino, Hadj Gharmoul, preso simplesmente porque uma foto que o mostrava com um cartaz com o slogan "não ao quinto mandato" de Abdelaziz Bouteflika circulou no Facebook
De facto, é a mesma coisa em Marrocos, onde basta sair à rua para denunciar o poder para ser preso. A maioria dos presos políticos actualmente detidos nem sequer denunciou o chefe de Estado, limitou-se a criticar a situação de pobreza e a negação dos direitos fundamentais das populações das suas regiões. Pessoas em Zagora, no sul de Marrocos, foram detidas e condenadas à prisão pelo simples facto de protestar porque não há água potável na cidade.
As informações sobre a sublevação actual na Argélia estão a ser seguidas pela população marroquina?
Sim, as informações chegam e os activistas e as organizações seguem atentamente o que se está a passar na Argélia e no Sudão. As relações entre a Argélia e Marrocos são tensas, devido, entre outras coisas, ao conflito no Sahara Ocidental e a televisão oficial marroquina mostra os protestos que decorrem na Argélia para criticar o poder argelino qualificando-o de autoritário e até ditatorial. Mas nunca veremos na televisão as manifestações marroquinas, nem os julgamentos que sofrem os activistas, excepto quando se trata de comunicados oficiais que são geralmente qualificados pelo movimento de direitos humanos como comunicados difamatórias, violando a presunção de inocência.
Houve manifestações de solidariedade com a insurreição na Argélia? Será que esta pode influenciar a mobilização em Marrocos?
Certamente. Como coordenadora magrebina, publicámos declarações de solidariedade, especialmente desde que o vice-presidente da Liga para a Defesa dos Direitos Humanos da Argélia, um membro de nossa coordenadora, Said Salhi, foi preso durante todo um dia no início dos protestos na Argélia. Estas insurreições vão certamente incentivar outros movimentos em Marrocos, mas é necessário dizer que são principalmente factores internos que mobilizam as pessoas.
A insurreição popular acontecerá em Marrocos porque todos os motivos que levaram a população às ruas em 2011 continuam presentes, e até aumentaram com a pobreza e a degradação dos serviços públicos. A falta de iniciativa capaz de reunir e federar todas estas lutas atrasa essa explosão.
Os médicos manifestaram-se há alguns dias atrás para denunciar a falta de recursos, não há nada nos hospitais, é a falência total do sistema de saúde público. O mesmo se passa com os professores que entraram em greve durante semanas, a luta mais divulgada e mobilizadora dos últimos meses, devido à falência do sistema público.
As pessoas em extrema necessidade não esperarão indefinidamente, até porque já não são os partidos e os sindicatos que as mobilizam, as massas populares saem espontaneamente à rua quando já não aguentam mais.
O movimento do Hirak desapareceu?
No norte, sim, porque basta sair à rua para arriscar anos de prisão. Além disso, muitos jovens foram para Espanha. Actualmente, as lutas são sectoriais e, portanto, dispersas. Depois da repressão em Al Hoceima, a rebelião passou para o nordeste de Jerada, onde as minas de carvão estão oficialmente encerradas desde 1998-2000, mas onde a população ainda vive do minério e desce às minas de maneira não convencional, sem nenhuma segurança. Muitos perdem lá a vida. Em reacção à morte de dois irmãos, Houcine e Jedouane, em 22 de Dezembro de 2017 numa mina, as pessoas saíram à rua e isso criou outro Hirak. Outras pessoas foram presas e um jovem, atropelado por um carro da polícia, perdeu as pernas. Actualmente é um deficiente completamente negligenciado pelas autoridades, que não fizeram qualquer investigação para esclarecer as circunstâncias e responsabilidades deste crime. Mas a repressão não impede outros Hirak de explodir noutros locais.
Em Imiter, uma pequena cidade perto de Ouarzazate, encontra-se a maior mina de prata da África
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As minas em Marrocos são exploradas pela empresa Managem, que faz parte de uma holding da família real.
. A sua exploração provoca muitos problemas ecológicos, as terras ficam inquinadas e os impactos são enormes para a saúde dos habitantes que já não podem viver da agricultura como antes. Reactivado em 2011, o movimento social de Imiter, mesmo fraco numericamente, é muito antigo. Novas pessoas foram presas e passaram até cinco anos na prisão. Como em outros centros operários, os responsáveis da mina não contratam localmente, mas recrutam trabalhadores de outras cidades para evitar qualquer solidariedade das famílias com os mineiros.
Com tanto activismo não receia pela sua segurança?
Sim, vivemos sempre sob a ameaça. Conduzem campanhas de mentiras e insultos contra mim na imprensa criada e financiada pelo poder. Estamos num país não democrático e todos corremos o risco de ser reprimidos, mas qual é a utilidade de permanecermos livres se tivermos de ficar calados e não denunciarmos as injustiças?
Como vê o futuro próximo em Marrocos?
Tenho a certeza de que outro Hirak vai ocorrer em Marrocos. Tudo o que esperamos é que seja tão pacífico e organizado como em 2011, que alcance mais do que o movimento de 20 de Fevereiro que, no entanto, fez avançar as mentalidades dos marroquinos, pois desde 2011 as pessoas já não se calam, já não têm medo e falam dos problemas políticos reais. Espera-se que as organizações políticas e sindicais superem as suas diferenças, as suas contendas por razões muitas vezes fúteis e ajam finalmente de acordo com as suas responsabilidades.
Como está hoje a solidariedade internacional pelo respeito dos direitos humanos no seu apoio aos movimentos populares reprimidos em Marrocos?
A Europa também mudou. Nos anos de chumbo (1956-1999), os direitos humanos ocuparam um lugar nas políticas dos Estados. Havia uma esquerda bastante forte, o movimento de solidariedade das organizações de direitos humanos em França e na Europa, os Comités de luta contra a repressão em Marrocos... Tudo isso mudou. Os governos europeus estão mais focados nas prioridades financeiras, securitárias, com as questões do terrorismo, das migrações... O discurso da extrema-direita generaliza-se. A esquerda ficou muito fraca, a solidariedade com as lutas marroquinas está menos presente e os governos europeus são cada vez mais cúmplices com o poder em Marrocos. Fecham os olhos a tudo o que acontece para que isso não perturbe os seus interesses económicos e financeiros.

Entrevista publicada no blog Un monde sans dette do jornal Politis.

COMPREENDER AS POLÍTICAS DO IMPASSE

Uma excelente publicação sobre o Sahara Ocidental e o seu lançamento em Lisboa. Compreender porquê e como se mantém, ao arrepio do Direito Internacional, uma tragédia política e humana há mais de 40 anos faz crescer a nossa indignação, apela à justiça e solidariedade.

Os impasses no Sahara Ocidental

O Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (CEAUP) publica semestralmente a revista internacional Africana Studia. Todo o seu 29º número é dedicado ao «impasse que à escala mundial pesa sobre o mais antigo conflito colonial em África».
Justamente sob o título “Saara Ocidental: as políticas do impasse” (que dá o nome ao número) agrupam-se artigos organizados em 3 conjuntos, de acordo com o papel desempenhado pelos actores em análise: (1) Actores directos e indirectos (Marrocos, Argélia, EUA, União Europeia, União Africana e Liga Árabe); (2) Observadores emergentes (África do Sul, China, Turquia e México) e (3) A RASD e a área lusófona (Portugal, Angola, Brasil e Timor Leste). Outras duas secções complementam o panorama: “Problemáticas do Saara Ocidental” (“Modernização e tradição no Sahara Ocidental, a Constituição Saharauí” e “Pode a opinião pública sobre a Causa do Sahara Ocidental ser revelada através da análise de dados das redes socais?”) e “ Entrevistas” (ao Presidente do Parlamento Saharauí e ao Secretário-geral da UGT Saario, a organização sindical saharauí). O número tem artigos em Inglês (13), em Português (7), em Castelhano (2) e em Francês (1). No fim há resumos de todos os artigos em Português, Inglês, Francês e Árabe. Para além da edição em formato de revista académica, há igualmente acesso em linha a alguns dos seus artigos.
Vale a pena ler. Há estudos sobre as políticas de países que mais raramente são referidos neste contexto, como a Turquia, o México e alguns países de língua oficial portuguesa; há ângulos de abordagem novos, como o da percepção da opinião pública através das redes sociais, o da política internacional vista através do conceito de “hipocrisia organizada”, ou o testemunho do primeiro repórter português na RASD sobre o dia-a-dia no território há 40 anos.
Ficam visivelmente em aberto algumas situações, como as políticas da Espanha e da França, actores principais e maioritariamente responsáveis pela sistemática obstrução ao cumprimento do Direito Internacional, assim como o caso da Mauritânia, muito peculiar e interessante. E evidencia-se a falta de um trabalho estruturado e abrangente sobre a política portuguesa desde 1975 até à actualidade, mas contribui-se com três artigos: um sobre a primeira década do conflito, outro sobre o caso do sequestro nas águas saharauís de pescadores portugueses em 1980, e o terceiro, já citado, da primeira visita à RASD de um jornalista português. Esforço a continuar!
Em 21 de Outubro, o Centro de Estudos Internacionais do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa e o Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto organizaram a apresentação deste número da Africana Studia, tendo como convidada Olfa Ouled, advogada dos presos políticos de Gdeim Izik. A sua apresentação foi antecedida de uma intervenção sobre a política argelina relativa ao Sahara Ocidental e outra sobre a investigação “As crianças e os estudantes saarauís sob a ocupação”, da autoria de Isabel Lourenço. Aos presentes foi distribuído o relatório “La tortura sufrida por la población saharaui bajo aocupación”, publicado pela Fundación Sahara Occidental em Junho de 2018, assim como uma breve informação sobre os presos políticos saharauís, com enfoque na situação do grupo de Gdeim Izik e no tipo de torturas a que, em geral, os mais de 30 presos têm sido sujeitos nas prisões marroquinas.
A jurista Olfa Ouled explicou em resumo o processo de prisão, julgamentos (um em tribunal militar, a que se seguiu outro em tribunal civil) e condenações a que foram submetidos os presos ligados ao “Acampamento da Dignidade”, em Gdeim Izik (2010), esclarecendo todo o conjunto de ilegalidades, torturas, pressões sobre os advogados de defesa e sobre os familiares que tem sido denunciado internacionalmente, mas não tem sido tido em conta pelas autoridades marroquinas. O processo começou com 25 acusados, e segue agora com 19: um foi julgado em ausência, outro morreu em liberdade condicional em Fevereiro de 2018 devido às sequelas da tortura, e 4 foram libertados em 2017 (dos quais 2 tinham a sentença cumprida em 2013, mas foram novamente presos e julgados).
As sentenças vão de 20 anos a prisão perpétua e 5 destes presos estão em isolamento desde 2017, temendo-se pela sua vida. A acção jurídica para que se faça justiça e a campanha política de solidariedade com os presos políticos saharauís e as suas famílias continua, até que a legalidade seja reposta.

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