sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Boletim nº 76 - Setembro 2019


FUTEBOL, VIOLÊNCIA E DIREITOS HUMANOS

No dia 19 de Julho passado jogou-se no Cairo a final da Taça das Nações Africanas - a prova futebolística mais importante daquele continente - entre as selecções da Argélia e do Senegal que a primeira venceu por 1-0. Foi o detonador para uma semana de violência no Sahara Ocidental.

Sabah Osman Hamida

Obviamente que esta vitória fez rejubilar de orgulho a população argelina onde quer que se encontrasse. Mas, curiosamente, não foi só ela que manifestou esta alegria desportiva. No Sahara Ocidental os habitantes saharauís saíram para a rua, agitando bandeiras da Argélia e do seu país. Sob a capa de um jogo de futebol defrontavam-se dois Estados que têm posições opostas quanto ao direito à autodeterminação do território. A Argélia, que reconhece e defende esse direito, o Senegal, que ainda não se tornou independente do colonialismo francês, apesar de já ter hino e bandeira, e segue as ordens de Paris para apoiar a proposta de autonomia marroquina para o Sahara Ocidental.
No final do encontro de futebol assistiu-se a cenas de violência na sua capital El Aaiún de que Amandla Thomas-Johnson, jornalista do Middle East Eye (MEE), fez um relato circunstanciado e que levaram à morte de Sabah Osman — também conhecida como Sabah Njourni – uma jovem professora de língua inglesa de 24 anos, «e que fizeram igualmente dezenas de feridos suscitando críticas que acusam Rabat de “criar uma atmosfera de opressão e de terror”».
Segundo relata,
«os apoiantes saharauís invadiram a grande avenida Smara, a principal via que atravessa El Aaiún, (...), a cantar “Um, dois, três, viva a Argélia” e a agitar a bandeira argelina.
«Dado que já tinha havido confrontos nos jogos anteriores, a polícia tinha erguido barricadas na avenida antes do encontro e colocado agentes nos cafés onde havia transmissão televisiva.
«Contudo, o ambiente começou a mudar quando alguns apoiantes começaram a agitar a bandeira da Frente POLISARIO e a entoar apelos à autodeterminação (…).
«Mansour Mohamed Moloud, uma testemunha ocular e militante da Fundação pró-saharauí Nushatta, declarou ao MEE que, depois de não ter conseguido dispersar os manifestantes, a polícia começou a apedrejá-los e estes ripostaram.
«”Ao princípio houve provocações da parte da polícia. Tentaram dispersar os manifestantes. De repente, começaram a lançar pedras o que levou os manifestantes a fazerem o mesmo”, conta Moloud.
«Os confrontos prosseguiram durante toda a noite até de madrugada, diz Moloud. As forças de segurança lançaram gás lacrimogéneo, dispararam balas de borracha e utilizaram canhões de água.
«Imagens divulgadas dos confrontos mostram o momento em que as forças de segurança avançaram em linha para ganhar o controlo da avenida, disparando projécteis.
«Os disparos podem ser ouvidos no mesmo vídeo publicado pela Fundação Nushatta, que documenta os actos de violência cometidos no território sobre a população e afirma que a polícia disparou balas de borracha e reais. Noutras imagens podem ver-se corpos ensanguentados e manifestantes a fugir da nuvem das granadas de gás lacrimogéneo.
«Pela 1:00h da manhã, Sabah Osman (…) foi atropelada na avenida por dois carros da polícia. Quando a ambulância, finalmente, chegou já estava morta. Moloud, que a conhecia pessoalmente, crê que ela foi deliberadamente visada, quando a polícia estava em dificuldades para reprimir os manifestantes. “Vi-os tentar atropelar manifestantes”, disse.
«Segundo a Fundação, mais de 200 pessoas ficaram feridas, muitas estão num estado crítico, especialmente um homem que foi igualmente atropelado pelas forças de segurança. Seis casas foram objecto de rusgas e mais de uma dezena de pessoas, dos quais 4 menores, foram presas depois dos confrontos, indicou a Fundação. Quatro de entre elas foram libertadas enquanto dez aguardam a decisão judicial.
«Moloud, que diz terem-se tratado das piores cenas de violência que abalaram o território desde há vários anos, explica que os militantes passaram à clandestinidade. “As pessoas têm medo, deixaram de andar nas ruas, escondem-se. Toda a gente desligou o telefone, justifica.»
A Amnistia Internacional (AI) publicou um comunicado no dia 1 de Agosto onde denuncia os comportamentos das autoridades securitárias de ocupação durante aqueles acontecimentos. Segundo a AI, imagens e testemunhos mostram como as forças de segurança marroquinas intervieram nas celebrações atirando pedras, usando balas de borracha e disparando gás lacrimogéneo e utilizando canhões de água para dispersar os manifestantes, ao que estes responderam atirando pedras contra os agentes.
«Há evidências claras que sugerem que a resposta inicial das forças de segurança marroquinas ao protesto saharauí, que começou pacificamente, foi excessiva e provocou confrontos violentos que poderiam e deveriam ter sido evitados», disse Magdalena Mughrabi, vice-directora da AI para o Médio Oriente e o norte de África.
Mughrabi acrescentou que a morte de Sabah Njourni «parece ser o resultado directo da falta de moderação da polícia» e considerou necessária «uma investigação exaustiva», cujos resultados sejam tornados públicos, para que qualquer membro da Polícia envolvido «seja levado perante a Justiça». Segundo a AI, existem fontes que sugerem que pelo menos 80 pessoas sofreram ferimentos, embora o número exacto seja desconhecido.
As autoridades de ocupação divulgaram por sua vez um comunicado onde responsabilizam um grupo «dirigido por indivíduos hostis» que aproveitaram as celebrações para realizar actos de vandalismo e saques e que as forças de segurança foram forçadas a intervir para proteger a propriedade pública e privada.
Na mesma ocasião a Associação Saharauí nos Estados Unidos da América (SAUSA, na sigla em inglês) publicou o relatório “Opressão marroquina no Sahara Ocidental: repressão violenta e derramamento de sangue injustificado enquanto o mundo permanece em silêncio” que descreve os acontecimentos ocorridos entre 19 e 28 de Julho na capital do Sahara Ocidental. O relatório centra-se no registo de inúmeras violações dos direitos humanos, sobre a política de repressão clara e sistemática dirigida contra a população civil, em particular os jovens, com recurso à tortura e às detenções arbitrárias. Uma menção especial é dada ao caso do atropelamento da jovem Sabah Njourni.
Mohamed Ali Arkoukou, presidente da SAUSA, dirigiu uma carta ao Secretário de Estado dos EUA, denunciando esta grave situação e solicitando a sua atenção imediata. A SAUSA pede:
  1. A libertação imediata dos detidos.
  2. O início urgente de uma investigação imparcial sobre a morte de Sabah Njourni.
  3. A necessidade de estender o mandato da MINURSO para a monitorização de violações dos direitos humanos.
  4. Insta também o Departamento de Estado a envolver-se directamente para fazer cumprir o Estado de Direito e os direitos humanos, em particular o direito de defesa das pessoas que reclamam o seu direito à liberdade de informação, de expressão e de reunião pacífica no Sahara Ocidental ocupado.
  5. Pressionar o Reino de Marrocos para que ponha fim à sua opressão.
  6. Pressionar as Nações Unidas para que ponham termo à ocupação marroquina do Sahara Ocidental.
Por sua vez o representante da Frente POLISARIO nas Nações Unidas, Mohamed Sidi Omar, enviou uma carta ao Conselho de Segurança, onde descreveu a repressão exercida por Marrocos sobre os entusiastas do futebol como uma componente da sua política sistemática de opressão no Sahara Ocidental ocupado. E exortou a organização a «responsabilizar Marrocos pelas consequências desse acto perigoso e pelos crimes hediondos praticados pelas suas forças de segurança contra a população saharauí».

O PESO DA HERANÇA COLONIAL?

A Human Rights Watch, uma organização norte-americana de defesa dos direitos humanos, divulgou em 16 de Julho passado uma informação dando conta das violações dos direitos humanos por parte das autoridades da Frente POLISARIO nos acampamentos de refugiados na Argélia.

Pelo respeito conquistado por esta organização, de que é exemplo a sua acção na defesa dos direitos humanos dos saharauís sob a ocupação marroquina, transcrevemos quase na íntegra a informação divulgada.
«ARGÉLIA/SAHARA OCIDENTAL: Três dissidentes atrás das grades
«Oponentes da POLISARIO alvo de investigação por "traição"
«Tunis - O governo no exílio que administra os campos de refugiados do Sahara Ocidental, na Argélia, mantém três oponentes detidos enquanto um juiz de instrução os investiga por traição e outras razões, afirmou hoje a Human Rights Watch (HRW). (...). Entre 17 e 19 de Junho de 2019, as autoridades saharauís prenderam três homens: os activistas Moulay Abba Bouzid e Fadel Mohamed Breica, e o jornalista Mahmoud Zeidan. Breica possui também nacionalidade espanhola.
«”As autoridades saharauís devem estabelecer de maneira credível que Bouzid, Breica e Zeidan podem ter cometido actos verdadeiramente criminosos e não apenas criticado de forma pacífica a Frente POLISARIO”, disse Lama Fakih, vice-directora da Divisão do Médio Oriente e África do Norte para a HRW. ”Na ausência de provas de actividade criminosa, os três homens devem ser libertados.”
«Um comunicado de 20 de Junho, emitido por um tribunal da República Árabe Saharauí Democrática (RASD), diz que os três homens serão investigados por calúnia, insultos e ”incitação à rebelião”. Numa mensagem de correio electrónico recebida pela HRW em 15 de Julho, Sidi Omar, representante da Frente POLISARIO junto das Nações Unidas em Nova Iorque, disse que ”os réus continuam sob custódia e sob investigação judicial [por acusações incluindo] traição à nação, actos de agressão contra o Estado saharauí, sedição, vandalismo, difamação e calúnia”. As acusações são puníveis com penas de prisão que variam de cinco anos a prisão perpétua. Contudo, um mês após a prisão, as autoridades ainda não divulgaram os elementos que suportam as acusações.
«Em 15 de Julho os três homens estavam detidos na prisão de Dhaibiya, perto do campo de Rabouni, sede do governo da Frente POLISARIO, cerca de Tindouf, na Argélia.
«Bobbih Abba Bouzid, irmão de Moulay Bouzid, disse em 5 de Julho à HRW que as autoridades haviam permitido que um primo, Sidi Ahmadi, o visitasse em 23 de Junho. Moulay disse a Ahmadi só ter sido autorizado a deixar a sua cela uma única vez e de ter sido repetidamente interrogado com os olhos vendados e os pulsos algemados, informou o irmão. Segundo este, as autoridades acabaram com a visita ao fim de cinco minutos quando o prisioneiro começou a divulgar ao primo algumas das perguntas que os seus interrogadores lhe fizeram.
«Segundo o irmão, a visita do advogado de Bouzid em 2 de Julho terminou do mesmo modo quando Bouzid afirmou que os seus interrogadores haviam tentado forçá-lo a assinar uma confissão por escrito.
«Ahmadi visitou novamente Bouzid na prisão de Dhaibiya em 11 de Julho. Após a visita, divulgou nas redes sociais que Bouzid tinha assinado confissões depois de vários agentes de segurança da POLISARIO entrarem na sua cela e ameaçarem torturá-lo.
«Fatimatou Al Mahdi Breica, irmã de Fadel Breica, disse à HRW tê-lo visitado na prisão de Dhaibiya em 11 de Julho. Na ocasião, Fadel disse-lhe ter sido preso em 18 de Junho, à saída de um centro médico em Rabouni, por vários agentes de segurança que saíram de quatro veículos militares. Fadel contou-lhe ter sido interrogado intermitentemente durante nove dias num local de detenção secreto, durante o qual esteve constantemente algemado e com os olhos vendados.
«Se se confirmar que os agentes de segurança interrogaram Bouzid e Breica enquanto estavam algemados e com os olhos vendados, e os ameaçaram ou intimidaram para extrair confissões, isso violaria seriamente a exigência do direito internacional segundo a qual as confissões devem ser feitas voluntariamente, enfatizou a HRW.
«Os três homens são conhecidos nos campos de refugiados como dissidentes. Enquanto defendiam a resistência à ocupação do Sahara Ocidental por Marrocos, publicaram nos últimos meses muitas mensagens no Facebook a criticar severamente os dirigentes da Frente POLISARIO.
«Em 8 de Maio Bouzid brincou com a falta de liberdade de opinião e expressão em Rabouni, uma semana depois de denunciar a ”tirania e a ditadura” dos dirigentes da POLISARIO. Em 12 de Junho, Zeidan criticou ”a falta de diálogo” e a falta de ”alternativas à repressão” dentro dos campos. Em 16 de Junho, Breica escreveu que a ”direcção corrupta” da POLISARIO ”está a tremer [em reacção] às dificuldades enfrentadas pelos seus senhores na Argélia”, aludindo aos amplos movimentos de protesto que obrigaram o ex-presidente Abdelaziz Bouteflika a renunciar ao seu mandato.
«Saïra Zarwal, jornalista saharauí sediada na Suécia, disse à HRW que Zeidan trabalhou até 2018 na RASD-TV, a estação oficial da POLISARIO.
«Bouzid participou activamente no movimento de 5 de Março, um grupo dissidente fundado em 5 de Março de 2011 após a Primavera Árabe, para exigir reformas na POLISARIO, incluindo o fim da corrupção e do tribalismo, assim como mudanças radicais em termos de direcção.
«Bouzid e Breica são também membros da "Iniciativa Saharauí para a Mudança" e Zeidan é membro fundador do "Fórum da Juventude Saharauí por uma Solução". Estas duas organizações, com sede na Espanha, contestam a direcção da POLISARIO e são a favor de novas abordagens para resolver o conflito de 44 anos com Marrocos sobre o destino político do Sahara Ocidental.
«Numa mensagem de correio electrónico para a HRW, o representante da Frente POLISARIO junto da ONU, Sidi Omar, disse que ”quando os casos forem entregues ao tribunal, os réus terão um julgamento justo e transparente, com todos os direitos e garantias fornecidos pelas leis da RASD”.
«É da responsabilidade da RASD, que administra os campos de refugiados, e da Argélia, país anfitrião onde os três homens estão detidos, garantir o respeito pelos direitos humanos nesses campos. “A Argélia não pode atribuir a outrem a protecção dos direitos humanos no seu território e fechar os olhos se a POLISARIO os violar”, concluiu Lama Fakih.»
Estas informações, vindas de uma instituição como a HRW, são muito preocupantes. A Frente POLISARIO, através da RASD, está a pré-figurar um Estado autodeterminado, a sociedade futura pela qual o povo saharauí anseia, pela qual luta e morre. No entanto, o que aqui transparece é a velha herança colonial. A não serem devidamente esclarecidas as razões destas medidas, elas terão um elevado custo político para a luta de libertação.


Sem comentários:

Enviar um comentário