quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Boletim nº 102 - Novembro 2021

ONU: «UM PASSO EM FRENTE, DOIS PASSOS À RECTAGUARDA»

No mês passado interrogámo-nos aqui se a ONU estaria a iniciar uma nova dinâmica para a questão do Sahara Ocidental. Porém, os sinais que nos chegam não nos dão esperança quanto a essa possibilidade.

ONU: direito internacional ignorado

Mais do que em anos anteriores, as semanas que antecederam a votação da resolução anual do Conselho de Segurança sobre o Sahara Ocidental foram férteis em declarações públicas de vários actores, tanto estatais como não-governamentais. Este facto reflecte as novas situações, quer no terreno – com a quebra do cessar-fogo e o recomeço das hostilidades - quer no campo diplomático.
A nomeação do novo chefe da MINURSO, o russo Alexander Ivanko, e do novo Enviado Pessoal do Secretário-geral das Nações Unidas, Staffan de Mistura, vieram criar alguma expectativa quanto ao retomar do processo de descolonização do território. Os EUA, através do Secretário de Estado Anthony Blinken, saudaram a nomeação «do novo Enviado Pessoal das Nações Unidas para o Sahara Ocidental», enfatizando que Washington apoia totalmente o processo político dirigido pela ONU para promover «um futuro pacífico e próspero para o povo do Sahara Ocidental e da região».
A União Europeia também se congratulou com esta nomeação. «Estamos confiantes de que, como diplomata abalizado com longa experiência na região e em negociações internacionais, De Mistura contribuirá para dar um novo impulso ao processo dirigido pela ONU no Sahara Ocidental. (…). Também encorajamos todas as partes a cooperar com o Enviado para chegar a uma solução, de acordo com as resoluções do Conselho de Segurança e os princípios e propósitos da Carta das Nações Unidas.»
A Frente POLISARIO reagiu pela voz do MNE da RASD, Mohamed Salem Ould Salek. «Se o Enviado Especial De Mistura conseguir fixar uma data para o referendo ou desenvolver um plano prático para acabar com as manobras e a prevaricação que têm dificultado os esforços da ONU para descolonizar o Sahara Ocidental, a história recordará que ele e o SG da ONU conseguiram pôr em marcha o comboio internacional da legalidade no Sahara Ocidental, a fim de permitir ao povo saharaui exercer o seu direito à autodeterminação (…). Esta abordagem poderia abrir vastas perspectivas para uma paz justa e final na região».
O ministro saharaui acrescentou que «há quem se torne muito inovador, inventando qualidades e atributos completamente novos, a fim de evitar a evocação do direito à autodeterminação, com o objectivo de (...) alterar o mandato da MINURSO, ou mesmo alterar a natureza da questão do Sahara Ocidental, como uma questão de descolonização».
No dia 13 de Outubro, o porta-voz das Nações Unidas anunciou que Staffan de Mistura assumiria funções em 1 de Novembro, altura em que estabeleceria o calendário para o lançamento de negociações directas entre Marrocos e a Frente POLISARIO, aproveitando para visitar a região. Nesse dia o Conselho de Segurança reuniu à porta fechada para debater a situação no Sahara Ocidental e ouvir o relatório de Alexander Ivanko. Dias antes tinha sido divulgado o relatório anual do Secretário-geral sobre a situação no território.
Escreve Salem Mohamed no El Confidencial Saharaui: «A ONU, (...), publicou o relatório anual do Secretário-geral da ONU sobre o conflito, mas apesar da ruptura do cessar-fogo e do regresso às hostilidades, o relatório é omisso em quase tudo; não denuncia a violação marroquina do cessar-fogo apesar de o constatar, equipara a potência ocupante ao povo que submete, ignora os Acordos de Abraão que utilizaram o Sahara Ocidental como moeda de troca na normalização israelo-marroquina, (...). A ONU torna cada vez mais difícil levar a sério o seu trabalho e alarga assim o fosso em relação aos saharauis. (…). O relatório como um todo deixa muito a desejar, uma tentativa de minimizar a gravidade do conflito e a responsabilidade de Marrocos no romper do cessar-fogo. (…).
«O relatório de 21 páginas do Secretário-geral da ONU sobre a descolonização do Sahara Ocidental apenas menciona "a autodeterminação dos saharauis" uma vez no documento, no final do parágrafo 85. Os saharauis não precisam de inimigos se tiverem a ONU. Se António Guterres quer realmente que os saharauis levem a sério as suas palavras, é melhor começar a levar a sério as siglas e tarefas da MINURSO, as resoluções da sua organização e a pressionar a parte que descaradamente impede a conclusão pacífica do conflito, obrigando-a a cumprir as suas obrigações voluntariamente assinadas, caso contrário as suas palavras carecem de validade, tal como a atitude da ONU no Sahara Ocidental carece de exemplos que reflictam o compromisso que pede às outras partes. Por outras palavras, a impunidade marroquina e a passividade da ONU formaram um cocktail letal que não só hipotecou o futuro dos saharauis, mas também o desenvolvimento de toda a região do Norte de África, ajudando a inflamar uma das poucas regiões estabilizadas do mundo. (…).»
Dias depois, numa conferência de imprensa realizada nos acampamentos de refugiados, Brahim Ghali abordou a necessidade de uma renegociação do acordo de cessar-fogo assinado sob os auspícios da ONU em 1991 porque, na sua opinião, deve adaptar-se «às novas circunstâncias». Ghali advertiu, no entanto, que o referendo de autodeterminação aceite na altura continua a ser uma linha vermelha para o povo saharauí. «É preciso lembrar que a nomeação do novo Enviado Pessoal da ONU não é um fim em si mesmo. O objectivo é a descolonização do Sahara Ocidental», destacou.
«Mas, ao mesmo tempo, o Conselho de Segurança não conseguiu impor o respeito pelo direito internacional. De Mistura chega num momento especial, marcado pela quebra do cessar-fogo e o regresso à guerra», declarou. «É um novo cenário que exige um novo tratamento por parte do Conselho de Segurança para reparar os erros desses 30 anos. O Conselho de Segurança deve estar ciente do perigo que a região enfrenta. Pensar no regresso ao antigo cenário será um grave erro de cálculo», alertou.
Esta preocupação está presente na carta que Ghali enviou a António Guterres: «a Frente POLISARIO condenou veementemente o silêncio cúmplice do Secretariado-geral das Nações Unidas e a sua decisão injustificada de não chamar as coisas pelos seus nomes e de não identificar o Estado ocupante marroquino como directo e único responsável pela violação do cessar-fogo. (…). Ao contrário da versão selectiva e limitada dos acontecimentos de 13 de Novembro de 2020, conforme referido no relatório (S / 2021/843, parágrafo 13 em particular), é inegável que foi a potência ocupante marroquina que violou o cessar-fogo de 1991 e os acordos militares relacionados, incluindo o Acordo Militar No. 1, (…).»
Esta mesma posição foi assumida dias mais tarde por Amar Belani, embaixador argelino encarregado da Questão do Sahara Ocidental e do Magrebe no Ministério dos Negócios Estrangeiros da Argélia, que em declarações à imprensa considerou «A súbita violação do cessar-fogo por Marrocos e a anexação ilegal da zona tampão de Guerguerat é uma violação flagrante dos acordos militares», pelo que «O Conselho de Segurança deve abordar mais do que nunca a questão do Sahara Ocidental de uma maneira clara e responsável, porque a questão está relacionada com a segurança e estabilidade da região». O embaixador lembrou que «A Argélia nunca se comprometeu a fazer parte da chamada mesa-redonda sobre o Sahara Ocidental. (…). Reafirmamos a nossa rejeição oficial e irreversível da chamada fórmula da mesa-redonda.»
Dias mais tarde o embaixador teve a oportunidade de conversar telefonicamente com o Vice-ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Sergueï Vershinin, tendo o Sahara Ocidental sido um dos temas abordados. «Os dois países estão mais do que nunca sintonizados no mesmo comprimento de onda» retrata o redactor do sítio TSA.
«Os dois homens tiveram "uma troca de pontos de vista" sobre o conflito no Sahara Ocidental "à luz da discussão do projecto de resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas que visa prorrogar o mandato da MINURSO”, indica o Ministério das Relações Exteriores da Rússia, citado pela agência Tass. (…).
«Apesar das negativas marroquinas, vários acontecimentos que se sucederam nas últimas semanas sugerem que as relações entre o reino e a Rússia estão muito tensas precisamente devido às posições desta última sobre a questão do Sahara Ocidental.
«No início de Outubro, Marrocos suspendeu todas as ligações aéreas com a Rússia, oficialmente por causa do ressurgimento da pandemia COVID-19 neste país. No dia 11 do mesmo mês, Moscovo decidiu adiar indefinidamente o fórum económico russo-árabe marcado para 28 de Outubro em Marrocos.»
No dia 29 de Outubro foram concluídos os debates sobre a MINURSO e aprovada a resolução que prorroga o seu mandato por mais um ano, ao mesmo tempo que define, politicamente, o conteúdo da missão do novo Enviado Pessoal do Secretário-geral, Staffan de Mistura. Importa desde já identificar algumas questões essenciais que foram alvo de posicionamentos diferentes e de polémica:
  • a linguagem diplomática da resolução: reitera-se a fórmula «para chegar a uma solução política realista, exequível, duradoura e mutuamente aceite, baseada no compromisso», que «proporcione a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental no contexto das disposições consistentes com os princípios e objectivos da Carta das Nações Unidas», insistindo várias vezes na necessidade de realismo e espírito de compromisso;
  • a pré-determinação do formato negocial: num processo que se quer «sem condições prévias», propõe-se o sistema de mesas-redondas em que os dois poderes – ocupante e ocupado, Marrocos e a Frente POLISARIO – são colocados em pé de igualdade com os seus dois vizinhos, a Argélia e a Mauritânia;
  • mais uma vez, a não inclusão da monitorização dos direitos humanos no mandato da MINURSO, que continua a ser a única missão de paz da ONU que exclui esta vertente, por oposição clara de Marrocos e da França.
Lendo as cinco páginas da resolução fica patente o seu alinhamento com as acções e teses marroquinas, em detrimento da reafirmação dos princípios do Direito Internacional e da própria ONU.