sexta-feira, 5 de abril de 2024

A CAMINHO DA SENTENÇA DEFINITIVA

(Boletim nº 131, Abril 2024)

Fez agora precisamente 10 anos (Março de 2014) que a Frente POLISARIO apresentou ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) a sua segunda queixa relativa à exploração ilegal de recursos naturais do Sahara Ocidental por parte do poder ocupante, visando o Acordo sobre Pescas celebrado entre a União Europeia (UE) e Marrocos.

A opinião da Advogada-Geral sob escrutínio
Na altura, cinco países – Suécia, Dinamarca, Finlândia, Países Baixos e Reino Unido – votaram contra o Acordo, mas ele passou no crivo do Parlamento Europeu. A primeira queixa tinha sido entregue em 2012, a propósito do Acordo de comercialização de produtos agrícolas. Até agora, os Tribunais Europeus publicaram três sentenças muito claras (2016, 2018, 2021), mas de todas elas a parte europeia recorreu, prolongando os processos.
Espera-se que dentro de poucos meses o TJUE pronuncie a sentença definitiva, que já não é passível de recurso. Mas entretanto, neste final de Março, teve lugar um passo mais, o último, antes do veredicto final: a publicação de três Opiniões da Advogada-Geral do Tribunal Tamara Ćapeta.

O cravo e a ferradura

O TJUE tem 28 juízes e 11 Advogados-Gerais, sendo estes nomeados de comum acordo pelos Governos dos Estados-Membro para mandatos de 6 anos, com possibilidade de renovação. O Advogado-Geral «exerce, com imparcialidade e independência, uma função de apresentação pública de conclusões fundamentadas sobre as causas que, nos termos do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia (...), requeiram a sua intervenção. As conclusões do Advogado-Geral não vinculam o Tribunal de Justiça nem podem ser contraditadas pelas partes ou pelos interessados no processo em causa, pois consubstanciam a opinião individual de um perito que propõe uma solução para a resolução de um litígio concreto.»
Duas das Opiniões agora publicadas respondem aos processos existentes no TJUE, baseados nas queixas apresentadas pela FPOLISARIO sobre os dois Acordos comerciais UE-Marrocos relacionados, respectivamente, com as pescas e a produção agrícola. A terceira Opinião diz respeito a uma questão colocada pelo Conselho de Estado francês sobre a etiquetagem dos produtos com origem no Sahara Ocidental.
A questão de fundo em causa nestes processos é o estatuto do Sahara Ocidental. A assinatura de Acordos entre a UE e Marrocos, ao incluir o território do Sahara Ocidental, pressupõe que este se encontra sob soberania marroquina e a potência ocupante pode tomar decisões sobre os seus recursos. As três sentenças anteriores publicadas pelo TJUE, tomando como referência o Direito Internacional e a jurisprudência aplicável, afirmam que o Sahara Ocidental e Marrocos são territórios «distintos e separados». Nas três Opiniões publicadas no dia 21 de Março, a Advogada-Geral mantém esta visão, dizendo que por essa razão o Acordo sobre as Pescas deveria ser anulado e que os produtos provindos do Sahara Ocidental deveriam ser etiquetados reconhecendo esta origem, em vez de serem comercializados como bens marroquinos.
Uma outra questão fundamental, decorrente da primeira, é a de saber então como pode a UE negociar os bens produzidos no Sahara Ocidental — em que condições e com quem. Depois de ter esclarecido na sua sentença de 2018 que os recursos em causa são todos os que estão ligados ao território, às águas e ao espaço aéreo saharaui, em 2021 o TJUE explicitou que a utilização dos recursos do Sahara Ocidental carece do «consentimento do povo saharaui» e que este é representado pela Frente POLISARIO, à qual reconheceu personalidade jurídica.
É neste ponto que o posicionamento da Advogada-Geral difere, ao avançar com uma interpretação na qual introduz uma figura inexistente no Direito Internacional, a de «potência administrante de facto» do território saharaui, abrindo assim a possibilidade de Marrocos – a potência ocupante, segundo a ONU, enquanto a Espanha continua a ser a potência administrante – poder negociar com países terceiros em nome do povo saharaui. Para tentar compatibilizar as suas próprias incongruências jurídicas, a Advogada-Geral propõe que seja dado um tratamento separado ao Sahara Ocidental no quadro dos futuros Acordos.
Como nota o Prof. belga François Dubuisson numa análise publicada no final de Março, esta interpretação é muito pouco fundamentada juridicamente, antes recorrendo a um juízo político, na medida em que o principal argumento é o de que «No que diz respeito ao Sahara Ocidental, as instituições políticas da União [Europeia] não consideram Marrocos como uma potência ocupante ou soberana, mas antes como a potência administrante».
Uma parte das recomendações da Advogada-Geral coloca assim problemas de ordem jurídica, tanto ao nível da leitura do Direito Internacional e da respectiva jurisprudência (podem citar-se, por exemplo, os célebres casos da Opinião do Tribunal Internacional de Justiça relativa à reivindicação das Ilhas Maurício sobre o Arquipélago de Chagos e das pretensões da África do Sul sobre a Namíbia), como da sua coerência interna.
Em breve será lavrada e conhecida a sentença definitiva do Tribunal de Justiça da União Europeia, que deverá ter em conta as Opiniões da Advogada-Geral, sem, no entanto, estar obrigado a acolhê-las. Vê-se aliás com dificuldade que o mesmo Tribunal negue as suas próprias conclusões, sobre os mesmos assuntos, exaradas há pouco tempo.

Reacções, informação e campanha

A maior parte da imprensa internacional destacou em título que a Advogada-Geral tinha pedido a anulação do Tratado de Pesca UE-Marrocos.
Em comunicado publicado no mesmo dia em que foram conhecidas as Opiniões da Advogada-Geral, a Frente POLISARIO resumiu a sua posição afirmando que «tomou nota dos progressos realizados. É necessária uma certa cautela, já que se trata das conclusões da Advogada-Geral e não da sentença do Tribunal. Para isso é preciso esperar uns meses. No entanto, nesta batalha jurídica, que começou há dez anos, fizeram-se grandes progressos. Não se discute a admissibilidade das acções judiciais do povo saharaui e a Advogada-Geral retoma os argumentos da Frente POLISARIO sobre o direito à autodeterminação e o direito à soberania permanente sobre os recursos naturais. Tudo isto se inscreve numa jurisprudência favorável ao povo saharaui, que se vem confirmando passo a passo.»
No dia seguinte, 22 de Março, a Coordenadora das Organizações de Agricultores e Criadores de Gado (COAG) de Espanha pediu às autoridades comunitárias que sejam tomadas de imediato medidas para salvaguardar os direitos dos consumidores europeus, «especialmente quando se trata de produtos do Sahara Ocidental», em particular frutas e hortaliças, que devem ser devidamente etiquetados, de acordo com a sua verdadeira origem.
Para seguir este tema, vale a pena consultar a página na internet – com informação actualizada sobre a questão da apropriação ilegal dos recursos naturais do Sahara Ocidental – construída pela solidariedade internacional com o povo saharaui: Western Sahara Resource Watch.
A continuada exploração ilegal dos recursos naturais do Sahara Ocidental por parte de empresas estrangeiras, aliadas do governo marroquino, levou a sociedade civil saharaui a mobilizar-se, promovendo desde 2018 uma campanha internacional, dirigida a outras associações e colectivos, através do sítio Western Sahara Is Not For Sale.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

ONU: A DIFÍCIL TAREFA DE DE MISTURA

(Boletim nº 131 - Abril 2024)

Num quadro internacional em que os conflitos se multiplicam e agudizam, com o recurso crescente à força militar, o problema do Sahara Ocidental, a última colónia de África, parece inexistente. E, de facto, ele encontra-se quase ausente na comunicação social. Contudo, como diria Galileu, ele move-se.

De Mistura com Ahmad Tariq

Um dos sinais deste "movimento" é o empenhamento da diplomacia de Rabat em afastar Staffan De Mistura, o Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU para a questão, do mapa negocial. Para o regime marroquino todo o Enviado é um empecilho para a sua tentativa de impor a "solução autonomia".
Aquando da sua indigitação, em Outubro de 2021 por António Guterres, Marrocos ofereceu uma enorme resistência à sua nomeação, sendo opinião generalizada que foi a administração norte-americana que forçou as autoridades marroquinas à sua aceitação. A postura de De Mistura – a preocupação em preservar a sua independência e distanciamento face às partes em conflito, o cuidado no respeito pelos princípios do direito internacional — agravaram a hostilidade marroquina como foi visível por ocasião da sua deslocação, em finais de Janeiro, a Pretória para um encontro com a MNE da África do Sul Naledi Pandor para um ponto de situação sobre o processo negocial em curso. O embaixador Omar Hilale, representante permanente de Marrocos junto das Nações Unidas, queixou-se que «Marrocos nunca foi consultado ou sequer informado» antes desta visita. «Marrocos advertiu-o claramente das consequências da sua viagem para o processo político», declarou o embaixador, que pediu a Staffan De Mistura que «dedique mais esforços para convencer a Argélia a retomar o seu lugar na mesa de negociações (…).».
Não que esta postura marroquina seja original. Como comentou o jornalista Ignacio Cembrero, «Depois investir contra Staffan De Mistura, Rabat impôs-lhe tais condições para prosseguir o seu trabalho que, na prática, está a recusá-lo, tal como fez com dois dos seus antecessores. (…). Provavelmente está confiante de que acabará por se demitir do seu cargo. Tem experiência em livrar-se de mediadores. Foi o que fez em 2004 quando James Baker, antigo Secretário de Estado dos EUA, se demitiu. Ele tinha conseguido que o Conselho de Segurança da ONU aprovasse por unanimidade um Plano, com o seu nome, que incluía uma solução faseada para o conflito. Marrocos recusou-se a pô-lo em prática e ninguém o pressionou a fazê-lo.
«Christopher Ross, outro diplomata americano que também tentou mediar, acabou por não se demitir como Rabat esperava. Para se livrar dele, a diplomacia marroquina não teve outra alternativa senão declará-lo persona non grata, pondo assim fim, em 2017, à missão que lhe tinha sido confiada pelo então Secretário-geral Ban Ki-moon. Como Ross explicou numa carta publicada no mês passado num jornal digital marroquino, que o tinha criticado, «Marrocos parece aplicar o princípio de que se não estou com ele, estou contra ele.»
Apesar destas dificuldades — e da falta de apoio por parte do Conselho de Segurança — o Enviado Pessoal tem continuado a procurar construir uma via negocial entre a Frente POLISARIO e Marrocos. A viagem a Moscovo, em 11 de Março a convite das autoridades russas, inscreve-se nestes esforços. De Mistura encontrou-se com o MNE Serguéi Lavrov e com o seu Vice Serguéi Vershinin. Tal como em Pretória, «O seu principal objectivo era a troca de pontos de vista sobre a situação actual, a fim de fazer avançar as perspectivas de resolução do processo de descolonização do Sahara Ocidental.» Recorde-se que «Enquanto membro permanente do Conselho de Segurança e membro do chamado "Grupo dos Amigos do Sahara Ocidental" – constituído por Espanha, França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos – a Federação Russa se absteve na última votação do Conselho de Segurança sobre a renovação do mandato da MINURSO, adoptada com 13 votos a favor e duas abstenções (Rússia e Moçambique).»
De Mistura terminou as suas diligências no mês de Março deslocando-se a Londres onde se encontrou com o ministro britânico dos Negócios Estrangeiros para a Ásia do Sul e Central, Norte de África, ONU e Commonwealth, Lord Ahmad Tariq, onde este aproveitou, recorrendo à plataforma X, para reafirmar que «O Reino Unido continua a apoiar o seu trabalho e o da MINURSO, e continua a encorajar um envolvimento construtivo no processo político liderado pela ONU».
Oubbi Buchraya, representante da Frente POLISARIO na Suíça e junto da ONU e das organizações internacionais em Genebra, considerou que a visita a Moscovo foi «muito oportuna, tendo em conta as grandes pressões que Marrocos exerce contra De Mistura para frustrar a sua missão e levá-lo a demitir-se».
Também no início deste mês de Março, Alexander Ivanko, Chefe da Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO), visitou El Aaiún, a capital do Sahara Ocidental, tendo-se dirigido depois para Rabat onde manteve contactos diplomáticos «intensivos» com os embaixadores dos países que integram o "Grupo dos Amigos do Sahara Ocidental". Segundo uma fonte da MINURSO, Ivanko «manteve uma serie de contactos sobre a situação da questão do Sahara com os embaixadores em Rabat de França, Federação Russa, China e Reino Unido», tendo concluído a visita «com um prolongado encontro com o embaixador do Reino de Espanha», Enrique Ojeda Vila.
Estes encontros e troca de pontos de vista «Visa[m] enriquecer o debate sobre a questão do Sahara na perspectiva do relatório do chefe da MINURSO agendado para Abril, em conformidade com a resolução 2703 da ONU, que prevê sessões semestrais ao nível do Conselho de Segurança.»
A Frente POLISARIO mantém-se firme na defesa do direito internacional, do seu direito à autodeterminação. Aquando da 37.ª sessão da Cimeira da União Africana (UA) que decorreu em Addis Abeba, o seu Secretário-geral, Brahim Ghali, lembrou que «O Sahara Ocidental trava uma guerra assimétrica e desigual, mas travamos uma guerra de desgaste que afecta a situação sócio-económica e política de Marrocos e pesa sobre o moral do exército de ocupação». Ghali sublinhou que o enviado especial da ONU «tenta estabelecer contactos e desbloquear a situação aqui e ali, e esperamos que tenha um apoio real e efectivo do Conselho de Segurança para avançar e permitir que a MINURSO cumpra a sua missão, tal como estipulado nas resoluções 658 e 690, nomeadamente a organização de um referendo de autodeterminação ao povo saharaui».


 


«O ÚNICO MARROQUINO QUE SOUBE COMPREENDER A MINHA LUTA»

(Boletim nº 131 - Abril 2024)

O jornalista Francisco Carrión relata no El Independiente, em 15 de Março, a história de um jovem marroquino – «O jovem que nadou até Ceuta e que Marrocos persegue por "alta traição" depois de ter apoiado os saharauis» – que se refugiou em Espanha e aí descobriu a causa do povo saharaui.

Solidariedade anti-colonialista
No processo emancipatório dos povos colonizados por Portugal desempenharam um papel importante os movimentos da juventude portuguesa que foram, lentamente, descobrindo como a sua luta pela liberdade era alimentada - e alimentava – da prática daquele processo. Situação idêntica ocorreu na colonização de Timor-Leste pela Indonésia, onde nos últimos anos daquela ocupação a aliança entre as juventudes dos dois países concorreu para a ruptura que se viveu em finais da década de 1990 na região. O artigo de Carrión, aqui parcialmente traduzido, lembra-nos este passado recente.
«Foi um dos mais de 10.000 marroquinos que nadaram para Ceuta em Maio de 2021, quando o país vizinho abriu as suas fronteiras em represália pelo acolhimento de Brahim Ghali [Secretário-geral da Frente POLISARIO]. Desde então vive em Espanha onde apresentou um pedido de asilo político. Walid el Gharib, um activista marroquino de 28 anos, enfrenta agora um processo judicial no seu país de origem, (...).
"Não é a primeira vez que sou acusado e condenado por publicar casos de corrupção envolvendo personalidades em Marrocos, mas esta é a primeira vez que inclui acusações tão graves", reconhece Walid em conversa com El Independiente. A queixa contra ele, apresentada (...) por um advogado de Tetuão à Procuradoria-geral de Marrocos, acusa-o de "difundir calúnia, difamação e propaganda que prejudica a unidade do Reino de Marrocos e a sua segurança interna e externa". De acordo com o código penal marroquino, esta acusação pode custar-lhe até uma década de prisão no país vizinho.
O que desencadeou a perseguição judicial de que é alvo foi a sua participação na apresentação em Barcelona de Un viaje a la libertad, um livro do activista saharaui Taleb Alisalem. Na queixa, o facto é explicitamente mencionado e é recordado que Walid foi fotografado com Taleb exibindo uma bandeira do Sahara Ocidental. "O acusado aparece numa fotografia com membros da Frente POLISARIO carregando a bandeira e o emblema do bando", detalha o documento, que inclui como prova as publicações nas redes sociais que mostram as fotografias do evento.

A apresentação de um livro como detonador

A dedicatória assinada por Taleb num exemplar do livro é também apresentada como prova. "Ao meu amigo Walid, o único marroquino que soube compreender a minha mensagem e apoiar a minha luta", cita a delação. O jovem marroquino liga o processo judicial às suas anteriores denúncias de corrupção, entre outras, contra o presidente da câmara de uma cidade do norte de Marrocos. "Chegou ao meu conhecimento que todos os processos contra ele tinham sido retirados e publiquei recentemente um artigo denunciando esta situação. Em resposta, recebi agora uma intimação num processo por alegado apoio ao terrorismo e alta traição", sublinha.
Mais concretamente, Walid é acusado de difundir propaganda que "põe em causa a unidade, a soberania ou a independência do Reino de Marrocos ou a lealdade dos cidadãos para com o Estado marroquino e as suas instituições". "Sei que não poderei regressar a Marrocos. Fazer isso seria pôr a minha vida em risco", responde o homem que admite ter-se aproximado da causa do Sahara Ocidental, a antiga colónia espanhola ocupada desde 1976 pelo seu país e o último território africano ainda por descolonizar, depois de ter chegado a Espanha.
"Tinha sido activista em Marrocos, divulgando nas redes sociais os escândalos de corrupção que envolviam políticos marroquinos, e tinha apoiado a causa palestiniana, mas foi em Espanha que tomei conhecimento da causa saharaui e apoiei publicamente o seu direito à autodeterminação", explica o jovem. Walid entrou em Espanha durante a crise migratória que levou ao acolhimento humanitário do líder da Frente POLISARIO, Brahim Ghali, em Abril de 2021. Semanas depois, em apenas 24 horas, mais de 10.000 pessoas nadaram até Ceuta, numa utilização da migração pelo regime alauita que foi condenada pelo Parlamento Europeu na altura. (...).

Protagonista da entrada maciça em Ceuta

"Tenho de agradecer a Ghali por ter vindo para Espanha", brinca Walid. "Foi assim que Marrocos abriu as suas fronteiras e eu aproveitei a avalanche para sair. Eu sabia que, devido ao meu envolvimento político, ia ter problemas se não saísse de Marrocos", acrescenta. "O episódio de Maio foi completamente permitido pelas autoridades. Lembro-me que até as forças de segurança estavam a ajudar mulheres, crianças e adultos a atravessar a fronteira. Disseram-nos: "Vão, vão, vão. Que Deus esteja convosco". Estavam a convidar-nos a partir. Algumas mulheres caíram e foram ajudadas pelos agentes a continuar o caminho", recorda. Walid nadou apenas cerca de 20 metros para chegar à costa da cidade autónoma.
Walid, que trabalha como cozinheiro, denuncia que a sua família tem sofrido ameaças e agressões físicas em Marrocos por causa das publicações críticas ao regime que edita a partir de Espanha. "Depois da divulgação das imagens da apresentação do livro, comecei a receber ameaças de morte através de contas anónimas que me acusavam de traidor", conta Walid, que, quase três anos depois, continua a aguardar a resolução do seu processo de regularização em Espanha. Também documentou os problemas que teve durante as suas visitas ao consulado marroquino em Barcelona.

Risco de expulsão

"A ideia de ser deportado para Marrocos é um pesadelo constante. Ninguém pode imaginar o que estou a sentir", diz Walid. "Pelo menos em Barcelona sinto-me mais seguro do que em Ceuta, onde sempre tive a impressão de estar rodeado de pessoas que poderiam trabalhar para o Makhzen" (o círculo de Mohammed VI que governa de facto o país), confessa.
No meio do seu calvário judicial, Walid diz compreender o silêncio da comunidade marroquina em Espanha, cerca de um milhão de pessoas, sobre as questões políticas do seu país de origem. "É evidente. Marrocos forjou uma mentalidade entre o seu povo segundo a qual o Sahara é uma linha vermelha sagrada. Ninguém se atreve a falar ou a pôr em causa. É um verdadeiro trauma para um marroquino abordar questões como esta", defende.
"A minha opinião é que não haverá estabilidade na região enquanto os saharauis não puderem exercer o seu direito à autodeterminação e não forem livres", afirma, céptico quanto ao futuro do seu país. "Infelizmente, Marrocos continuará a assistir ao enriquecimento de um círculo muito restrito de pessoas e ao empobrecimento geral do resto da população", conclui.»


terça-feira, 5 de março de 2024

UM CAMINHO A PERCORRER, ESTÍMULOS NÃO FALTAM …

(Boletim nº 130 - Março 2024)

Quando a 27 de Fevereiro se celebraram 48 anos da proclamação da República Árabe Saharaui Democrática (RASD), ressurgiu a questão “e o que pode Portugal fazer para acelerar o processo de descolonização da última colónia de África?”. Estamos a caminho, mas o tempo urge.

AR: um avanço relativamente ao passado
 (foto noticiasyprotagonistas.com)

Propósitos eleitorais

Os Programas Eleitorais de quatro partidos políticos que concorrem ao escrutínio de 10 de Março próximo incluem uma referência explícita ao direito à autodeterminação do povo saharaui. Representa um avanço relativamente ao passado: em 2019, apenas o Bloco de Esquerda (BE) assumia esta posição, à qual se juntou em 2022 o Livre.
Agora, o Partido Comunista Português (PCP) aponta como uma das suas prioridades no campo de «uma política externa em prol da paz, da amizade e da cooperação no mundo (...) o desenvolvimento de iniciativas e de uma acção efectiva de solidariedade com os povos em luta em defesa da sua soberania e direitos, nomeadamente com vista ao fim do bloqueio dos EUA contra Cuba, ao cumprimento dos direitos nacionais do povo palestiniano, com a criação do Estado da Palestina, ou do direito de autodeterminação do povo sarauí, como determinam as resoluções da ONU».
Também o partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN), no âmbito de «uma política externa promotora da paz, dos direitos humanos e dos valores democráticos e empenhada na acção climática», propõe «Manter na agenda da ação externa portuguesa a defesa do direito à autodeterminação do povo do Sahara Ocidental e contribuir ativamente para que as negociações sob os auspícios da ONU reconheçam como imprescindível a realização de um referendo para que seja o povo saharaui a decidir sobre o seu próprio futuro e consigam construir uma solução credível e duradoura que acabe com a guerra em curso e favoreça a estabilidade da região.»
O Livre voltou a adoptar em 2024 a mesma fórmula de 2022, no quadro do capítulo sobre «Portugal na Europa e no mundo»: «Defender a auto-determinação do povo palestiniano e sarauí, instando o Estado Português na luta contra a ocupação da Autoridade Palestiniana e na defesa de um processo credível para um referendo no Saara Ocidental.»
O que ocorreu igualmente com o BE, já que em 2019, 2022 e 2024, entre as medidas relativas à promoção de «uma política externa pela paz e pelos direitos humanos», insere a «Defesa nos fóruns internacionais relevantes da organização do referendo de autodeterminação do Sahara Ocidental sob a égide das Nações Unidas».
O Partido Socialista (PS) não faz qualquer referência à questão do Sahara Ocidental no seu Programa Eleitoral, apesar de em 20 de Maio do ano passado ter publicado um comunicado conjunto com a Juventude Socialista (JS), «reafirmando o seu compromisso com uma solução política justa, duradoura e mutuamente aceitável que permita a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental, no quadro das negociações lideradas pela ONU, das resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas e dos princípios da Carta das Nações Unidas.» Depois de reconhecerem o empenho do Secretário-geral da ONU António Guterres, e de apelarem «a que todas as autoridades colaborem com as instâncias internacionais na observância dos direitos humanos e da paz», «recordam que durante o mandato dos governos socialistas Portugal tem mantido um diálogo aberto, equidistante e equilibrado sobre a questão do Sahara Ocidental com todas as partes, incluindo com o Reino de Marrocos, com representantes da Frente POLISARIO, bem como de outros Estados da região, reconhecendo o papel histórico e atual da União Africana na promoção de uma política para este conflito.» Terminam dizendo que «para os socialistas é importante que as partes se comprometam em apresentar soluções realistas, sérias e credíveis tendo em vista a realização de um referendo para a autodeterminação do povo saharaui e do território do Sahara Ocidental.»
Pelo lado da JS, a questão mantém-se no respectivo Manifesto Eleitoral de 2024, no âmbito da área «Relações Internacionais: Pacificar, Cooperar, Desenvolver»: «Apoiar os trabalhos da ONU para atenuar o conflito no Saara Ocidental e para retomar um caminho para o referendo à autodeterminação do povo saarauí.»

O papel de Portugal

O objectivo é que o próximo governo seja coerente e apoie os direitos do povo saharaui, a começar pela realização do referendo através do qual se definirá o seu futuro com justiça e transparência.
É esse o posicionamento que Portugal tem adoptado quando se trata da invasão russa da Ucrânia e, mais timidamente, da colonização israelita da Palestina. Contra a aquisição de território pela força, contra a violação dos direitos humanos, contra a transferência de colonos para territórios que não lhes pertencem, contra a usurpação dos recursos naturais de quem defende o seu direito à autodeterminação. Pelo Direito Internacional, pela paz.
Foi o que Portugal fez enquanto Potência Administrante de Timor-Leste, ocupado pela Indonésia, até à organização do referendo que viria a consagrar a independência da antiga colónia portuguesa.
E não poderia ser de outra maneira. A lição do 25 de Abril, ao fim de séculos de exploração colonial, de 48 anos de ditadura e de 13 anos de guerra em três frentes africanas, ficou clara no Artigo 7º da Constituição da República Portuguesa: «3. Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao desenvolvimento, bem como o direito à insurreição contra todas as formas de opressão.»
A recente visita do Secretário-geral da Frente POLISARIO e Presidente da República Árabe Saharaui Democrática (RASD), Brahim Ghali, à Irlanda, durante a qual foi oficialmente recebido pelo seu homólogo em Dublin (ver outro artigo neste boletim), é inspiradora. A Irlanda foi um dos aliados europeus mais importantes de Portugal na questão de Timor-Leste, juntar convicções e forças é um princípio básico da diplomacia.
Em breve será conhecido o sentido da sentença final do Tribunal de Justiça da União Europeia relativa aos acordos comerciais entre a UE e Marrocos. Se, como se espera, seguir os três veredictos anteriores (2016, 2018, 2021), não haverá como escapar ao reconhecimento de que Marrocos e o Sahara Ocidental são dois territórios «distintos e separados».
Falta encontrar a solução negocial que promova a criação de dois Estados vizinhos, colaborativos e dinâmicos no relançamento de uma região com cada vez maior bem-estar para as suas populações e com voz no panorama mundial.
«Sempre achei que Portugal, pelas suas características próprias, mas também pela qualidade da sua diplomacia, poderia apostar mais num papel activo na área da mediação de conflitos e de negociações no âmbito de processos de paz, reforçando assim a sua projecção internacional como contribuinte líquido para a paz.» (Jorge Sampaio, no Posfácio de «O Negociador: revelações diplomáticas sobre Timor-Leste (1997-1999)», de Bárbara Reis e Fernando d’Oliveira Neves).


 

SAHARA OCIDENTAL: «UM CONFLITO QUE DURA HÁ DEMASIADO TEMPO»

(Boletim nº 130 - Março 2024)

O processo de descolonização do Sahara Ocidental que as Nações Unidas têm a responsabilidade de conduzir – e concretizar – tem vindo a arrastar-se ao longo do tempo. Algumas movimentações recentes sublinham quão urgente é encontrar-se uma solução.

Mistura com Pandor: «conversações frutíferas»
O regime de Marrocos não abdica de desenvolver todos os esforços para obstruir este processo, como ficou bem visível no recente encontro que o Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU, Staffan de Mistura, teve com Naledi Pandor, Ministra dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação da República Sul-Africana, a convite do seu governo, em 31 de Janeiro.
A ministra classificou o encontro, em conferência de imprensa, de «conversações frutíferas», que «foram úteis e centraram-se na exploração de algumas abordagens relacionadas com o Sahara Ocidental».
Mas o regime marroquino não viu esta iniciativa como um contributo para a resolução do conflito, mas como uma ameaça. A sua imprensa classificou-a como um "coup d'épée dans l'eau" [espadeirada na água]. O facto de a mesma ter partido de um governo que muito recentemente se notabilizou pela «queixa apresentada ao Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas contra Israel», incomodou ainda mais Rabat.
Ao anunciar a deslocação a Pretória, o porta-voz do Secretário-geral, Stéphane Dujarric, salientou que fazia parte do mandato do Enviado Pessoal ter consultas com quem considerasse oportuno.
Como conta o jornalista Javier Otazu, «Marrocos esperou quatro dias para tornar pública a realização da viagem depois de Rabat, ao tomar conhecimento do projecto de deslocação, ter comunicado "directamente a De Mistura, bem como ao secretariado da ONU, a oposição categórica de Marrocos a essa viagem", segundo declarou Omar Hilale, embaixador de Marrocos na ONU, à agência MAP do seu país. Hilale foi mais longe nestas declarações e permitiu-se "advertir claramente (De Mistura) das consequências da sua viagem sobre o processo político", depois de recordar que espera "que não se trate de um caso de desafio de De Mistura a Marrocos, mas de um simples erro de apreciação".»
Quanto à Frente POLISARIO congratulou-se com o encontro de De Mistura com a MNE da África do Sul. O seu representante junto das Nações Unidas Sidi Mohamed Omar lembrou que foram já vários os países aonde o Enviado Pessoal do SGONU se deslocou na sua procura de um compromisso visando a realização de um referendo de autodeterminação e que a reunião estava «plenamente justificada "considerando o importante papel que a África do Sul tem desempenhado na promoção de soluções pacíficas e justas para os conflitos em África e não só".»
Otazu lembra ainda que «Não é a primeira vez que Marrocos entra em conflito com um enviado da ONU por discordar da sua missão: em 2012, declarou o Enviado da altura, o americano Christopher Ross, "persona non grata" e, embora o então Secretário-geral Ban Ki-moon o tenha mantido no cargo por mais cinco anos, desde então ficou praticamente "queimado" e sem qualquer interacção com Rabat.»
Uma opinião, aparentemente, diferente da de Marrocos tem Elizabeth Moore Aubin, embaixadora dos EUA em Argel. Em entrevista ao jornalista Mokrane Aït Ouarabi, este perguntou-lhe :
«A Argélia é membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU desde Janeiro. Afirmou claramente as suas prioridades, nomeadamente a causa saharauí e a questão palestiniana, cuja Faixa de Gaza está sob cerco e bombardeamento constante há quatro meses. A Argélia defende uma solução de dois Estados e um referendo de autodeterminação no Sahara Ocidental. Como é que os Estados Unidos podem colaborar com a Argélia para encontrar soluções definitivas para estes dois conflitos?»
Ao que a embaixadora respondeu:
«Como salientou, estas são duas questões muito importantes para a Argélia e para a sua política externa. A Argélia e os Estados Unidos concordam que deve ser dado a Staffan De Mistura o espaço e a oportunidade para trabalhar no sentido de uma solução política para o Sahara Ocidental.
«Este conflito já dura há demasiado tempo: 47 anos é muito tempo. E nós, a Argélia e os Estados Unidos, estamos totalmente de acordo quanto à necessidade de o resolver no quadro das Nações Unidas e através do trabalho do Enviado Pessoal do Secretário-geral António Guterres.»
Higgins com Ghali: muitas coisas em comum
Entretanto, a comunicação social divulgou a visita a Dublin, em 13 e 14 de Fevereiro, de uma numerosa delegação saharaui, chefiada pelo Secretário-geral da Frente POLISARIO e Presidente da República saharaui, oportunidade para um encontro entre o Presidente da República da Irlanda, Michael Daniel Higgins, e o seu homólogo, Brahim Ghali. Segundo a agencia noticiosa SPS, «Durante o encontro, os dois presidentes discutiram os últimos desenvolvimentos relacionados com o conflito do Sahara Ocidental, bem como as perspectivas de futuro das relações e da solidariedade com a luta do povo saharaui a nível europeu e mundial, incluindo a posição da Frente POLISARIO face às mudanças que se verificam no mundo, tendo em conta a situação de guerra no território.»
«A este respeito, o presidente irlandês exprimiu a posição de apoio do seu país à luta do povo saharaui pela liberdade, autodeterminação e independência, em conformidade com o direito internacional, o direito humanitário internacional e as resoluções da ONU sobre a questão saharaui.»
Segundo o Irish Times, Ghali disse que «a Irlanda poderia "atrair mais países europeus a juntarem-se ao esforço colectivo" para trazer "liberdade e independência" ao povo do Sahara Ocidental.»
«"Viemos à Irlanda para reforçar e aprofundar as relações que existem entre os nossos povos, porque temos muitas coisas em comum em termos da nossa história e dos nossos valores", afirmou Ghali.
«"Acreditamos que o povo irlandês compreende e sente a situação difícil do nosso povo, devido à história irlandesa e ao nosso apego comum aos valores humanos. É por isso que estamos aqui na Irlanda, porque as pessoas aqui compreendem o direito à autodeterminação".»
Como escreve o Algérie Patriotique, «Brahim Ghali e a delegação que o acompanhava foram recebidos no Ministério dos Negócios Estrangeiros e no Parlamento, onde tiveram oportunidade de se encontrar com personalidades políticas, deputados e senadores de praticamente todo o espectro político irlandês, tanto da coligação governamental como da oposição. O Presidente saharaui e os membros da sua delegação puderam avaliar a força e a sinceridade do empenhamento da Irlanda em relação aos legítimos direitos do povo saharaui. (…).
«Esta visita faz lembrar a realizada pelo falecido Mohamed Abdelaziz, então Secretário-geral da Frente POLISARIO, a Dublin, (...), em Outubro de 2012. Nessa altura, o governo irlandês era liderado por uma maioria diferente da actual coligação. Marrocos manifestou todas as formas de protesto, chegando ao ponto de retirar o seu embaixador em Dublin. Teve de o reenviar um mês mais tarde, sem que a posição irlandesa se tivesse alterado minimamente. Ao receber Brahim Ghali, o Presidente Higgins reflecte, de facto, um consenso entre a classe política irlandesa sobre a questão do Sahara Ocidental.»
Esta deslocação à Irlanda foi um significativo marco diplomático saharaui, no seguimento do alcançado em Agosto do ano passado quando Brahim Ghali participou e interveio na Cimeira dos BRICS em Joanesburgo.

 

PARCERIA ESPANHA-MARROCOS APROFUNDA-SE

(Boletim nº 130, Março de 2024)

Pedro Sánchez, Primeiro Ministro de Espanha, visitou Marrocos no passado dia 21 de Fevereiro e de acordo com o Palácio Real marroquino, foi ainda mais longe no seu apoio a Marrocos do que na sua declaração de Março de 2022, em que apoiou o seu plano de autonomia para o Sahara Ocidental.

«Cooperação exemplar» (Foto: @desdelamoncloa)

O comunicado da monarquia marroquina, emitido após a reunião, explicita que Sánchez reiterou o apoio à «iniciativa de autonomia marroquina como a base mais séria, realista e credível para resolver» o diferendo sobre o Sahara Ocidental e reafirmou o seu empenhamento «na solução proposta, numa base realista, pelo governo marroquino». Mohammed VI «agradeceu a Espanha esta nova posição construtiva e importante».
Para a Frente POLISARIO, «Sánchez perdeu a oportunidade de fazer regressar o governo espanhol a uma posição oficial alinhada com o que está estabelecido pela legalidade internacional em relação ao Sahara Ocidental e ao direito legítimo do povo saharaui à autodeterminação e independência».

A Espanha como arma de Marrocos

Para Marrocos, a França configura o último obstáculo na obtenção do reconhecimento internacional do controlo total do Sahara Ocidental.
Na sequência das últimas mudanças no governo francês, com a nomeação a 12 de Janeiro último de Stéphane Séjourné para novo ministro dos Negócios Estrangeiros, Rabat quer aproveitar para desbloquear as reticências de Emmanuel Macron, sendo que Séjourné já manifestou a sua intenção de abrir «um novo capítulo» nas relações com Marrocos. Segundo o ministro francês, «o Presidente da República pediu-me pessoalmente para me envolver nas relações franco-marroquinas e também para escrever um novo capítulo nas nossas relações». Tendo em conta a posição marroquina, esta nova relação só será possível se o Eliseu der um passo em frente no reconhecimento do estatuto marroquino do Sahara Ocidental. Séjourné explicou que fará «todo o possível para aproximar a França e Marrocos». Estas declarações incentivaram Rabat a activar rapidamente os mecanismos para confirmar a visita que Pedro Sánchez reclamava há meses, aproveitando a declaração pública do Primeiro Ministro espanhol para pressionar Macron.

Os pedidos de Sánchez a Marrocos

O comunicado da Moncloa após a visita referiu, exultante, «que as relações bilaterais com este país vizinho, amigo e parceiro estratégico estão a atravessar o melhor momento das últimas décadas» e Pedro Sánchez acrescentou que não tem «absolutamente nada a censurar» ao regime marroquino.
Admite-se sem pudor que este cerrar de fileiras com a política de Mohammed VI é feito em troca do controlo das fronteiras e do incremento das trocas comerciais entre os dois Estados.
No domínio da imigração, Sánchez declarou que «Espanha e Marrocos estabeleceram uma cooperação exemplar e os governos continuam a trabalhar com programas pioneiros a nível europeu». Uma cooperação "exemplar" que levou ao que é conhecido como a "Tragédia da cerca de Melilla", na qual várias dezenas de migrantes perderam a vida.
Porém, a viagem de Pedro Sánchez a Marrocos não teve o efeito propalado pela Moncloa. O jornal El Independiente confirma que os assuntos de interesse para Espanha, apesar da pressão desta, não foram mencionados no comunicado real, nomeadamente a reabertura das alfândegas nos enclaves de Ceuta e Melilla e a luta contra a imigração clandestina, num contexto em que as chegadas de migrantes a Espanha aumentaram em 2023, tal como o tráfico de droga.
Sem obter nada de Marrocos, o Governo espanhol arrisca fazer regressar as relações com a Argélia à estaca zero. Em Março de 2022, Argel reagiu à reviravolta histórica de Pedro Sánchez chamando de volta o seu embaixador em Madrid, suspendendo o tratado de amizade e boa vizinhança assinado com Espanha em 2002 e congelando as trocas comerciais entre os dois países, com excepção do fornecimento de hidrocarbonetos.

45 mil milhões de euros

Durante a conferência de imprensa que se seguiu ao encontro com o rei, Sánchez deu a entender que estão previstos investimentos em Marrocos de mais de 45 mil milhões de euros até 2050. «Marrocos está a fazer um esforço enorme para modernizar o país e a economia, no qual a Espanha participa muito activamente», sublinhou, sem fornecer mais pormenores. O Governo teve de esclarecer que o investimento de 45 mil milhões de euros em Marrocos, mencionado por Sánchez, se reporta a investimentos marroquinos envolvendo contratos em que são elegíveis empresas espanholas, não sendo um investimento directo de Espanha.
Um dos marcos que vai impulsionar o investimento vai ser a realização do Campeonato do Mundo de Futebol de 2030 que a Espanha acolherá juntamente com Portugal e Marrocos. Marrocos planeia investir 14,5 mil milhões de dirhams (cerca de 1,3 mil milhões de euros) na construção de um grande estádio perto de Casablanca e na renovação de outros seis, estando fortemente empenhado em acolher a final do Campeonato do Mundo em Casablanca. A federação marroquina nunca escondeu a sua ambição, em detrimento do Bernabeu ou do Camp Nou, os estádios mais adequados para um evento desta envergadura.
Rabat pretende investir 161,4 mil milhões de euros no seu sistema ferroviário, um concurso a que se candidatou a empresa espanhola Talgo. Para Sánchez, as infraestruturas projectadas por Marrocos representam uma «oportunidade para as empresas espanholas» e incentivou o país a apresentá-las numa próxima cimeira hispano-marroquina, a realizar em Espanha, ainda sem data marcada, para que «possam participar neste projecto apaixonante».
Sánchez orgulha-se da fase actual entre os dois países ser a melhor «em décadas», com trocas comerciais superiores a 20 mil milhões de euros em 2022 e uma evolução positiva de Espanha como «investidor de referência em Marrocos». No comunicado da Moncloa, Sánchez garante «ter discutido com o chefe do governo marroquino o estado dos diferentes projectos que estão em curso no domínio da educação e da cooperação cultural, que foram promovidos durante o ano passado».
O jornal El Independiente refere que, pela primeira vez, um documento do Ministério da Cultura publicado no Boletim Oficial de Espanha reconhece El Aaiún, a capital do Sahara Ocidental ocupado, como cidade marroquina, tendo os repetidos pedidos de informação enviados ao gabinete de imprensa do Ministério da Cultura, para esclarecimento desta situação, ficado sem resposta.
O concurso para a renovação da escola espanhola de El Aaiún, acompanhado de uma série de documentos que reconhecem a cidade como território marroquino, provocou uma contraditória troca de versões entre os ministérios da Educação e da Cultura, agora respectivamente nas mãos do PSOE e do Sumar, como reacção à consulta efectuada pelo mesmo jornal. Na sequência da publicação desta notícia a Frente POLISARIO instou Ernest Urtasun, Ministro da Cultura, a respeitar o direito internacional. Urtasun é também porta-voz do Sumar e colaborador próximo da segunda vice-presidente Yolanda Díaz. Até à data, os dirigentes desta frente política apoiaram o direito do povo saharauí à autodeterminação. Sumar incluiu esta exigência no seu programa eleitoral em Julho passado, embora tenha sacrificado qualquer menção à questão saharaui no pacto selado para o governo de coligação com um PSOE alinhado com as teses marroquinas.

”Apoio” a projectos no território ocupado

Nesta viagem Sánchez manifestou interesse em participar em projectos que envolvam o território ocupado do Sahara Ocidental. Segundo um comunicado da Casa Real marroquina, «o Presidente do Governo espanhol saudou e sublinhou o interesse de Espanha nas iniciativas estratégicas lançadas por Sua Majestade o Rei, que Deus o guarde, nomeadamente a iniciativa dos países africanos ribeirinhos do Atlântico, a iniciativa real para favorecer o acesso dos países do Sahel ao Oceano Atlântico, bem como o gasoduto afro-atlântico Nigéria-Marrocos». As três iniciativas passam pela antiga colónia espanhola, no qual Madrid tem uma responsabilidade histórica enquanto potência administrante. É a primeira vez que o Governo espanhol se pronuncia oficialmente sobre estes projectos, que têm a particularidade de obrigar os países africanos a reconhecerem a «soberania» de Marrocos sobre o território.


 


domingo, 4 de fevereiro de 2024

PEDIMOS À RAPOSA PARA TOMAR CONTA DO GALINHEIRO

(Boletim nº 129 - Fevereiro)

Marrocos é o único país africano que não ratificou a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e foi eleito, enquanto representante do continente, para presidir ao Conselho de Direitos Humanos da ONU. Os jogos de poder que minam a credibilidade das instituições internacionais são perigosos e demasiados governos estão a contribuir para isso.

A defender os "direitos" humanos
O sistema requer que, anualmente, os 47 membros do Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU votem num país para presidir ao Conselho. A votação recai, rotativamente, num país membro em representação de um dos cinco grupos regionais que continuam a vigorar no quadro das Nações Unidas: África (13 lugares), Ásia-Pacífico (13 lugares), América Latina e Caraíbas (8 lugares), Europa Ocidental e outros Estados (7 lugares), Europa de Leste (6 lugares). Cada um dos países cumpre mandatos de três anos, e não pode recandidatar-se depois de ter feito dois mandatos consecutivos. Portugal não é actualmente membro do CDH.
Ao contrário do que é costume, os 13 Estados que em 2023 faziam parte do grupo africano não conseguiram chegar a um consenso sobre qual deles se deveria apresentar à eleição para Presidente do CDH, no início de 2024. Acabaram por ir a votos Marrocos e a África do Sul, no passado dia 10 de Janeiro.
É importante lembrar que o Conselho de Direitos Humanos foi criado pela Assembleia Geral da ONU em 2006 (Resolução 60/251) para substituir a Comissão de Direitos Humanos (estabelecida no pós II Guerra Mundial, em 1946), desacreditada por demasiados interesses geoestratégicos e políticos se terem passado a sobrepor à defesa e promoção dos Direitos Humanos. Isso mesmo está diplomaticamente entre-dito na Resolução 60/251: «Reconhecendo o trabalho realizado pela Comissão de Direitos Humanos e a necessidade de preservar as suas conquistas e continuar a avançar com base nelas, e de remediar as suas deficiências». Estamos a ir pelo mesmo caminho?

O alarme da sociedade civil saharaui

Mais de 30 organizações da sociedade civil saharaui iniciaram em Dezembro de 2023 uma campanha de alerta e contestação, destinada a prevenir a eleição de Marrocos, apresentando como principais argumentos a ocupação e colonização ilegais do território não-autónomo do Sahara Ocidental, a falta de colaboração do governo de Rabat com os mecanismos da ONU e a perseguição a defensores dos Direitos Humanos, jornalistas e colaboradores das Nações Unidas.
A 22 de Dezembro, a partir de El Aiun, capital do Sahara Ocidental ocupado, a Fundação Nushatta para os Media e os Direitos Humanos, ao anunciar a sua adesão à campanha, explicitou estes quatro pontos:
«1. Condenamos as contínuas tentativas do regime de ocupação marroquino de utilizar os mecanismos internacionais de Direitos Humanos vinculados às Nações Unidas para melhorar a sua imagem.
2. Reiteramos a nossa categórica recusa e a nossa denúncia inequívoca relativamente à nomeação do reino marroquino para ocupar a presidência do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.
3. Lançamos um apelo aos grupos internacionais preocupados e defensores dos Direitos Humanos para que se oponham à nomeação do regime de ocupação marroquino para a presidência do Conselho de Direitos Humanos.
4. Sublinhamos a necessidade de que a Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO) veja ampliadas as suas responsabilidades para incluir a monitorização e a apresentação de relatórios sobre os Direitos Humanos.»
Dois dias antes da votação, o Representante da Frente POLISARIO na Suíça e junto da ONU e das Organizações Internacionais em Genebra, Oubi Boucharaya, emitiu um comunicado, no qual relembrava que «Marrocos é um país africano que viola sistematicamente a Carta fundadora da União Africana, em particular o Artigo 4, relativo à obrigação de respeitar as fronteiras herdadas ao tempo das independências.» O documento acrescenta que Marrocos é um dos Estados que menos tem cooperado com o Conselho dos Direitos Humanos, exemplificando: tem impedido repetidamente missões técnicas do CDH de visitar o Sahara Ocidental desde 2015; cometeu neste território terríveis crimes, como o atestam, entre outros, testemunhos e relatórios dos Comités da ONU contra a Tortura e contra a Discriminação Racial, assim como do Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias e da Relatora especial sobre os defensores dos Direitos Humanos. O comunicado recorda ainda que o regime marroquino continua a impedir o Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV) de exercer a sua missão no Sahara Ocidental e que, para esconder a realidade no território ocupado, já expulsou mais de 400 observadores externos que tentaram visitá-lo nos últimos anos.
«Marrocos comete todo o tipo de violações dos Direitos Humanos contra o seu próprio povo, reprimindo e prendendo manifestantes pacíficos e numerosos jornalistas. Marrocos é directamente responsável pela repressão de migrantes africanos, contra os quais tem cometido terríveis massacres, o mais recente dos quais em Melilla, em Junho de 2022.»
Finalmente, o Representante da Frente POLISARIO não esquece que Marrocos é um país cujos escândalos de corrupção enchem páginas dos jornais e estão sob investigação em vários tribunais, em particular na Bélgica, por causa do caso ocorrido no Parlamento Europeu conhecido como Marrocosgate. «O mesmo se aplica ao envolvimento de Rabat na espionagem ilegal pelo mundo fora, através da utilização da aplicação Pegasus

As exigências da sociedade civil marroquina

No dia 10 de Janeiro Marrocos foi eleito para a presidência do Conselho de Direitos Humanos para o ciclo de sessões de 2024, por 30 votos contra 17 obtidos pela África do Sul. Vários observadores chamaram a atenção para a possibilidade de a queixa que a África do Sul apresentou junto do Tribunal Internacional de Haia sobre os indícios de genocídio por parte de Israel ter determinado um desvio significativo de votos.
No seguimento da eleição, numa Carta Aberta dirigida ao Primeiro Ministro marroquino, a Coligação Marroquina de Instituições de Direitos Humanos, formada por 20 importantes organizações da sociedade civil, que subscrevem a Carta, afirma que esta situação coloca Marrocos perante novas responsabilidades, «especialmente à luz do pobre estado dos Direitos Humanos no nosso país, o que exige uma verdadeira vontade do governo em mudar a situação». Para que a comunidade internacional possa confiar no Estado marroquino, este tem de «mostrar ao mundo que não tolera violações dos Direitos Humanos sob nenhuma forma», dizem.
Neste contexto, apresentam seis reivindicações principais:
«1. Acabar com a prática de prisões motivadas por questões políticas ou de direitos humanos, ou devido à manifestação de opiniões e à livre expressão, libertar mediatamente todos os presos políticos, presos de consciência, jornalistas, defensores dos direitos humanos, bloggers, activistas nas redes sociais, activistas e líderes sociais (...).
2. Acabar com práticas ilegais contra as organizações, assegurar o direito à criação de associações, e impedir a disrupção das suas actividades, conferências, assim como com a recusa de autorizações [para actividades] quando apresentadas às autoridades locais.
3. Aplicar plenamente as disposições constitucionais, como o direito à vida, à segurança física e pessoal, incluindo a abolição da pena de morte, e assegurar a protecção contra todas as formas de tortura, proteger as mulheres da violência, da discriminação e da exploração, e acabar com políticas de privilégio e de impunidade.
4. Implementar o plano nacional contra a corrupção e o suborno, tornar a denúncia destas práticas uma obrigação para todos os cidadãos, acabar com as ameaças contra aqueles que o fazem, combater os conflitos de interesses e a promiscuidade do poder com actividades financeiras, económicas e comerciais, combater o contrabando [que utiliza] fundos públicos e opor-se ao enriquecimento ilícito.
5. Garantir o direito ao trabalho, à saúde e a um ambiente saudável, à igualdade de género e territorial, e à justa distribuição da riqueza nacional.
6. Declarar a rejeição absoluta e a condenação oficial do genocídio e da limpeza étnica que estão a ser cometidos pela entidade sionista contra o povo da Palestina (…) e anunciar o corte de todas as formas de normalização de Marrocos com o regime de apartheid incorporado na entidade sionista que ocupa o território da Palestina.»
Dirigindo-se por fim ao Primeiro Ministro: «Exortamo-lo a tornar pública uma agenda política e de Direitos Humanos alinhada com os compromissos internacionais de Marrocos na área dos Direitos Humanos, que Marrocos deve adoptar enquanto assume a presidência do Conselho durante este ano, como um novo ponto de partida, sem possibilidade de recuo.»

Os Direitos Humanos subordinados a outros interesses

O primeiro parágrafo na Resolução 60/251, que cria o Conselho de Direitos Humanos diz: «A Assembleia Geral, reafirmando os objectivos e os princípios da Carta das Nações Unidas, em particular os de promover entre as nações relações de amizade baseadas no respeito pelo princípio da igualdade de direitos e pelo da autodeterminação dos povos, e de alcançar a cooperação internacional na solução de problemas internacionais de carácter económico, social, cultural, ou humanitário, e o desenvolvimento e promoção do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais para todos.»
Stephen Zunes, professor de Política e Estudos Internacionais na Universidade de S. Francisco, nos EUA, respondeu assim, referindo-se ao Sahara Ocidental, numa entrevista recente, à pergunta «Afirmou que já visitou 87 países e que nunca viu um regime policial tão duro como o de Marrocos. Pode explicar este facto?»: «O rácio entre as forças de ocupação, incluindo a polícia secreta, e a população autóctone é um dos mais elevados do mundo. A Freedom House, um organismo de controlo dos Direitos Humanos sediado nos Estados Unidos, estima que o Sahara Ocidental ocupado é o segundo pior país do mundo em termos de liberdade política, a seguir à Síria. Qualquer expressão de desacordo com o regime marroquino, mesmo o simples acto de agitar uma bandeira do Sahara Ocidental, resulta em ataques violentos e prisões imediatas.»
«Se vier a acontecer, a eleição de Marrocos para a presidência do Conselho dos Direitos Humanos será mais uma prova da profunda disfunção estrutural das instituições internacionais e um insulto a África. Marrocos é o país menos capaz de repor os valores africanos no actual ciclo da presidência do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas.» (Comunicado acima citado do Representante da Frente POLISARIO na Suíça e junto da ONU e das Organizações Internacionais em Genebra).