terça-feira, 4 de junho de 2024

NAÂMA ASFARI: «A LIBERDADE TEM DE SER CONQUISTADA»

(Boletim nº 133 - Junho)

Naâma Asfari é um combatente pela causa da liberdade do povo saharaui, condenado a 30 anos de cadeia por esse empenhamento. Em Março conseguiu fazer sair da prisão marroquina de Kenitra uma reflexão sobre a dinâmica do processo emancipatório do povo saharaui, que aqui publicamos na íntegra.

Naâma Asfari em Gdeim Izik

«A Liberdade tem de ser conquistada

Gdeim Izik é, e continuará a ser, um momento luminoso na história e no processo da libertação do povo saharaui, uma aventura consciente neste caminho de luta, um momento dialéctico de conflito com a ocupação, uma consciência dotada de pensamento capaz de um retorno reflexivo sobre si mesma que pode afirmar "eu existo".
É uma verdade sobre a auto-confiança de um povo que luta pela sua independência e liberdade.
Este momento, este movimento da consciência, diz também respeito ao outro.
Este confronto entre duas consciências deste momento conflituoso e problemático é uma descrição chave do sistema de Hegel, o do funcionamento da dialéctica.
Gdeim Izik é este movimento da consciência activa, como toda a consciência em acção, mas não é uniforme e não se assemelha a uma aventura linear vitoriosa do princípio ao fim. Como um herói romântico, a consciência passa por provações, desgostos, momentos de dúvida e até de depressão. Na "Fenomenologia do Espírito", Hegel dedica páginas a este momento de "consciência infeliz, dividida em si mesma".
Para ter a certeza da sua existência, uma consciência não pode contentar-se com a simples certeza do que está na sua percepção; precisa de uma mediação que a leve um pouco mais longe. Gdeim Izik conta a história deste confronto entre duas consciências num campo de batalha político.
Hegel descreve a luta mortal de duas consciências pelo reconhecimento: "a relação das duas consciências de si é assim determinada pelo facto de elas se provarem a si próprias e de cada uma provar à outra, por uma luta mortal; elas têm de ir a esta luta, porque têm de fornecer a prova e a verdade da outra e de si próprias, da certeza que têm de si próprias, de serem para si". Neste momento dialéctico, "o indivíduo que não pôs a sua vida em jogo pode, evidentemente, ser reconhecido como pessoa, mas não alcançou a verdade deste reconhecimento, como sendo a de uma consciência de si autónoma".
No entanto, Hegel não termina a história aí e prevê uma saída para a consciência subjugada: o trabalho, que equivale a transformar o mundo.
A luta nacional contra a ocupação está imbuída desta noção de consciência, mas também do conceito hegeliano de liberdade, ou seja, a ideia de que a liberdade não é simplesmente dada, mas tem de ser conquistada no decurso de um longo processo histórico. Esta dialéctica do "senhor" e do "escravo" é central para o conceito de liberdade de Hegel. Para ele, a subordinação é uma fase necessária no processo de libertação.
Pensadores como Frantz Fanon, Martin Luther King e Angela Davis, por exemplo, puderam utilizar esta ideia para teorizar as lutas sociais dos negros e a luta nacional contra o colonialismo. Sublinharam o papel da luta na libertação.
Neste sentido, a luta no território ocupado desempenha um papel central na luta nacional saharaui e a revolta popular em Gdeim Izik é um passo importante e necessário no processo de libertação. Para nós, não foi um acaso. A intifada de Zemla em 1970 foi precisamente o exemplo histórico de uma revolta saharaui contra o colonialismo espanhol. Esta intifada nasceu da opressão colonial contra os saharauis. Na sequência deste acontecimento exemplar de Gdeim Izik, outros povos do mundo árabe e mesmo da Europa e da América retomaram e radicalizaram a ideia da luta pela liberdade e pela dignidade.
"À noção de dignidade humana substitui-se a de dignidade da terra".
Frantz Fanon, ao mesmo tempo que reflecte sobre as condições de alienação dos colonizados, subscreve a ideia de Sartre de que o ser humano está, de alguma forma, condenado a ser livre. Mas como articular a alienação estrutural e a liberdade individual, sabendo que Sartre era um crítico fervoroso da psicanálise e da noção de inconsciente? Fanon tenta considerar a liberdade sartreana do ponto de vista do poder de agir, do poder de transformar, dificultado num contexto patogénico como o do colonialismo.
Para além das categorias sartreanas do "para si" (o modo de existência dos seres humanos) e do "em si" (o modo de existência dos objectos), Fanon assinala em "Pele Negra, Máscaras Brancas" um outro modo de existência, o do "para o outro" específico do negro e também do colonizado, que vive num mundo onde a sua percepção pelo outro como um violador, um monstro, um criminoso, tem valor objectivo e tudo se passa como se ele o fosse.
A sua tentativa de individualmente se comportar como livre, de sair destas representações, é insuficiente para quebrar, para romper esta maldição. Fanon adverte: "Explodi e eis os pedaços da minha explosão, um outro eu reconstruido"; isto significa que não é ele quem interpreta a sua própria explosão, a sua revolta, o seu protesto contra o mundo; ele está numa situação de impotência em relação a estas realidades.
É isto que é o "para o outro": uma existência privada da sua autonomia, fundamentalmente heterónoma e logo privada da sua capacidade de significar, porque voltada para a aprovação do outro. Para Fanon, o problema é saber o que verdadeiramente desejamos através do desejo do outro.
Foi durante a sua experiência terapêutica na Argélia que se apercebeu de que o colonialismo produz sujeitos doentes; as pessoas adoecem porque o seu ambiente é doente. A procura de reconhecimento é um comportamento que observou várias vezes em muitos pacientes. Por isso, acabou por se debruçar sobre as estruturas em que os indivíduos estavam imersos. Nessas circunstâncias de violência estrutural, o cuidado individual não é suficiente. Isso levou Fanon a empenhar-se na descolonização da Argélia, depois de África e de todo o Terceiro Mundo.
As observações de Fanon levaram-no a procurar um método diferente: o sistema colonial produz patologias e neuroses muito específicas. Em "Pele Negra, Máscaras Brancas", no entanto, não está ainda explícita a questão da luta insurreccional. O ensaio termina com um apelo na primeira pessoa à dignidade humana, e é em "Os Condenados da Terra" que explora a questão da luta armada. "No período da descolonização, apela-se à razão dos colonizados. Oferece-se-lhes valores seguros, explica-se-lhes abundantemente que a descolonização não deve significar regressão [....] a violência com que se afirmou a supremacia dos valores brancos, a agressividade que impregnou a confrontação vitoriosa desses valores com os modos de vida ou de pensamento dos colonizados, fazem com que, por um justo retorno das coisas, o colonizado escarneça desses valores quando são evocados perante ele".
É sobre esta chacota que se apoiarão os movimentos de luta armada. A luta do povo saharaui encontra-se numa situação semelhante. Depois de ler Fanon, apercebi-me de que a pretensa universalidade da noção de dignidade não funciona: a história é sistematicamente esquecida quando se fala de dignidade.
A filosofia da ONU sobre os direitos humanos considera que estes são inseparáveis dos seres humanos, sejam eles quem forem, e não vê que, pelo contrário, devem ser conquistados pelas populações após uma dura luta. Os colonizados devem alcançar a sua dignidade estabelecendo-a numa realidade social, política e histórica concreta. Se se considerar que a ética não faz parte da história, mas de uma análise fria e distante das expectativas morais que podemos ter em relação uns aos outros, corremos o risco de não ver a situação específica de certas categorias de população, como os colonizados. A dignidade é algo que se experimenta e se realiza na história, é um esforço para os colonizados.
Para Fanon, a pessoa humana concebida universalmente é uma ficção: pode estar no centro da tradição filosófica, mas nunca ninguém a viu! Esta ficção implica que o portador de dignidade não é um indivíduo de carne e osso, não é você nem eu, mas a pessoa humana abstracção racional. Esta abstracção compreende a lei moral e sabe que não deve fazer mal aos outros, que as consequências dos seus actos devem obedecer a certos princípios. É uma figura abstracta que se sobrepõe ao ser humano empírico, o indivíduo mortal. Mas o indivíduo mortal, sobretudo se for colonizado, não tem dignidade. Tudo na sua experiência e na imagem que lhe é devolvida o coloca muito longe da dignidade.
É preciso um esforço considerável para limpar a lama e chegar a este famoso ser humano. Os saharauis viveram esta experiência desde a época colonial e após 1975 com a ocupação marroquina. É por isso que preferem falar, como fez Fanon, e teorizar sobre a dignidade da terra. Fanon sublinha que este conceito nada tem de abstracto mas que pertence à nossa carne, ao nosso sangue, e é uma forma de realçar a terra que foi destruída, roubada e espoliada pelo colonialismo e pela ocupação, e que, apesar de tudo, faz parte da dignidade do colonizado.
Não é uma personalidade fictícia sobreposta ao nosso corpo e à nossa existência empírica que nos dá dignidade; pelo contrário, é a nossa incarnação, a nossa existência mais concreta, mais carnal, que a define.
Num artigo publicado em 2014, o sociólogo americano Stuart Hall, nascido na Jamaica, recorda-nos o significado teórico da obra de Fanon.
A análise psiquiátrica, um pouco esquecida pelos leitores contemporâneos, não deve, na sua opinião, ser deixada de lado: "O cerne do seu texto leva-nos à constatação irrefutável de que uma explicação do racismo que negligencie a paisagem interior e os seus mecanismos inconscientes conta apenas metade da história, na melhor das hipóteses".
Achille Mbembe, filósofo e autor de "Critique de la Raison Nègre", confessa: "Devo a Fanon a ideia de que há alguma coisa em cada ser humano que é indomável, que é profundamente indomesticável, que a dominação - quaisquer que sejam as suas formas - não pode eliminar nem conter, nem reprimir, pelo menos totalmente. Fanon esforça-se por compreender as formas como essa coisa emerge num contexto colonial…".
Esta importância da luta no processo de libertação em Fanon encontra-se também em Angela Davis, no seu "Readings in Liberation" [1971], ao trabalhar sobre "The life and times of Frederick Douglass" [1884].
Douglass nasceu escravo antes de escapar desta condição e de se tornar uma das principais vozes do movimento abolicionista, expondo, através da sua própria experiência, os horrores da escravatura e a necessidade da sua abolição imediata. Na sua leitura de Douglass, Davis dá especial ênfase à história da sua luta física contra o seu senhor e à importância particular que esta teve na sua libertação. Nesta interpretação, apenas a liberdade conquistada desempenha um papel e não a função supostamente libertadora da disciplina servil.
Acho que esta visão é a mais importante, a mais concreta, num processo de libertação como o nosso.
E é à luz desta visão, desta dialéctica entre dominador e dominado, que qualifico o longo caminho da luta de libertação do povo saharaui.
"A liberdade tem de ser conquistada" - "Freedom Is a Constant Struggle" [2015], é o título da última colectânea de entrevistas de Davis.
A liberdade dos Saharauis deve ser conquistada através da luta e de um esforço colectivo permanente, que se deve opor a todas as formas de opressão.
O sentido concreto de liberdade defendido por Fanon e Davis, encontrei-o num filósofo antigo, Séneca:
"Não suportar nada não é liberdade, enganamo-nos a nós próprios, a liberdade consiste em colocar a nossa alma acima das injúrias, em fazer com que os motivos de alegria venham apenas de nós próprios, em afastar de nós as coisas exteriores, quem não nos insultaria se pudesse? [....] Os insultos, as palavras ultrajantes, as infâmias e outras baixezas devem ser considerados como gritos de inimigos, ou dardos lançados de longe, ou pedras batendo contra os escudos sem ferir. Quanto às injustiças, que sejam suportadas como feridas infligidas com armas ou no peito, sem que se seja vencido ou se recue um passo sequer.
Mesmo que estejas cercado, que sejas derrubado pela violência dos teus inimigos. É vergonhoso ceder: manter o posto que a natureza te deu. Qual é esse posto, perguntam? O de um homem. Em acção. Para ele a vitória é um dado adquirido. Não resistam ao bem que vos pertence e alimentem dele a experiência nas vossas almas até atingirem a verdade; tenham a vontade de aceitar o melhor, ajudem-no com as vossas opiniões e os vossos votos. Não ser derrotado, ser alguém contra quem a sorte nada pode fazer, é pertencer à República dos homens". »

Sem comentários:

Enviar um comentário