sábado, 4 de maio de 2024

A FRANÇA ÀS VOLTAS NO LABIRINTO AFRICANO

(Boletim nº 132 - Maio 2024)

Nas últimas semanas surgiu na comunicação social informação relevante espelhando a situação político-diplomática que a França enfrenta no relacionamento com as suas antigas colónias de África. Uma luta entre a preservação dos antigos privilégios coloniais e a construção de uma independência sempre ameaçada.

Séjourné e Bourita em Rabat (foto Fader Senna/AFP)

Franco CFA: em vias de desaparecer?

De acordo com o professor Kai Koddenbrock do Bard College (Berlim), nunca o franco CFA esteve tão ameaçado de extinção. Esta moeda, criada pela França após a Segunda Guerra Mundial, tem sido a moeda oficial dos países da África Ocidental e Central, pertencentes à zona de influência do franco. O seu objectivo era assegurar um fluxo contínuo e acessível de recursos para a ex-potência colonial.
Após a recente vitória de Bassirou Diomaye Faye, candidato da esquerda senegalesa à Presidência do país, voltou a ganhar força a possibilidade de, também aí, se abolir a moeda, juntando-se às intenções manifestadas pelos governos em exercício no Mali, Burkina Faso e Níger.
A mobilização popular contra a moeda tem sido forte nos últimos anos na África Ocidental, tendo conduzido a "alterações cosméticas" de alguns acordos monetários. Em 2019, por exemplo, o presidente francês Emmanuel Macron e o presidente em exercício da Costa do Marfim, Alassane Ouattara, anunciaram a retirada de pessoal francês de certos órgãos de decisão do Banco Central dos Estados da África Ocidental (BCEAO). Também renunciaram à obrigação (criticada em África) de armazenar 50% das reservas em Paris. No entanto, de um modo geral, o franco CFA foi-se mantendo e a França recusou sair do acordo por iniciativa própria.
Agora, porém, parecem estar reunidas condições para uma mudança efectiva. A Aliança dos Estados do Sahel, que reúne os governos do Mali, do Burkina Faso e do Níger, liderados por juntas militares, anunciou a sua intenção de introduzir o "Sahel" como a nova moeda regional.
Historicamente, como mostram Fanny Pigeaud e Ndongo Sylla no seu livro L'Arme Invisible de la Françafrique, as tentativas de abandonar o franco CFA desde a sua criação em 1948, foram sendo sabotadas pela França. A Guiné-Equatorial, por exemplo, foi inundada por notas falsas quando abandonou o franco CFA na década de 1960 e o Mali foi pressionado a aderir ao franco CFA depois de o ter abandonado em 1967. Regressou ao sistema em 1984. Em 2011, o Presidente da Costa do Marfim Laurent Gbagbo considerou sair da moeda. A França, nesse mesmo ano, utilizou o seu lugar nos órgãos de decisão do BCEAO para impedir que o país fosse refinanciado pelo banco e levou igualmente as filiais do BNP Paribas e do Société Générale a encerrar as suas sucursais. Gbagbo foi forçado a demitir-se, com a ajuda de uma intervenção militar, e após eleições controversas.
A relação de forças tem vindo a alterar-se e, desta vez, os governos da África Ocidental podem estar mais preparados. Se a Costa do Marfim votar num presidente menos dependente da França nas eleições presidenciais de 2025, o fim do franco CFA da África Ocidental pode estar próximo.
Uma moeda nacional por parte do Senegal pode criar condições para uma viragem na direcção do bem-estar do povo senegalês, focando-se na economia nacional e no seu povo. As importações e a facilidade de repatriamento dos lucros das empresas estrangeiras, que são alguns dos principais efeitos do franco CFA, frequentemente sobrevalorizado, tornar-se-iam mais difíceis.
A reacção do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e de outros doadores e credores ao programa do Presidente Faye será crucial. Resta saber até que ponto o novo governo senegalês estará em condições de prescindir das somas consideráveis em ajudas e créditos. Recentemente, o Níger fê-lo e foi obrigado a reduzir o seu orçamento em 40%, em consequência do congelamento da ajuda.
Globalmente, os governos da região do Sahel estão numa posição favorável. O continente africano é visto como essencial para a transição energética da Europa e para a diversificação dos seus abastecimentos de petróleo e gás. A hegemonia militar, diplomática e comercial do Ocidente no continente está a ser desafiada pela China e pela Rússia, bem como pelos Emiratos Árabes Unidos, pelo Catar e pela Turquia.
Não será o fim do longo caminho para a soberania alimentar, energética e económica em benefício dos povos. Mas será um importante passo contra a interferência neocolonial.

Investimentos franceses no Sahara Ocidental: que consequências?

A França deu um passo sem precedentes ao declarar-se disposta a investir no Sahara Ocidental, afirma o cronista Malick Hamid. Após um período de tensão, estes dois países renovam os seus laços, selando um pacto económico à revelia do Direito Internacional. Franck Riester, ministro francês do Comércio Externo, declarou que a França está pronta a investir ao lado de Marrocos, alegando «interesses comuns» e a necessidade de «trabalhar em conjunto», usando a Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD) para este efeito. Esta colaboração poderá resultar, por exemplo, no financiamento de uma linha de alta tensão entre Dakhla (no Sahara Ocidental ocupado) e Casablanca.
A dinâmica do lucro sobrepõe-se aos valores do respeito pelo Direito Internacional que a França afirma defender, sendo que esta mudança de posição de Paris é o resultado de uma série de acontecimentos recentes, entre os quais se destaca precisamente a crise do franco CFA que empurra o governo francês para os braços do regime marroquino para não ficar politicamente isolado na região. 
A visita a Marrocos do ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Stéphane Séjourné, a 25 de Fevereiro passado, preparara o caminho para esta aproximação, tendo tido o cuidado de informar que havia sido mandatado por Emmanuel Macron para «abrir um novo capítulo» nas relações entre os dois países. Para Rabat, a França, um aliado incondicional e apoiante constante, deveria seguir o exemplo de Washington que reconheceu a soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental. No entanto, até agora, esse alinhamento não se verificou.
Este aparente desanuviamento de relações entre Rabat e Paris poderá conduzir proximamente a uma visita de Macron a Marrocos. Ele surge numa altura em que as relações franco-argelinas se encontram num impasse e em que várias forças políticas francesas da oposição defendem uma aproximação nas relações com Marrocos.
«O anúncio feito pela França da sua intenção de investir e financiar projectos (através da AFD), nas regiões ocupadas do Sahara é um acto provocatório», declarou a Frente POLISÁRIO num comunicado de imprensa, no qual exprimiu o seu mais categórico repúdio. Também o governo saharaui denunciou esta intenção «que representa um apoio explícito à ocupação ilegal marroquina de partes do nosso território nacional e uma violação flagrante do direito internacional, das obrigações internacionais da França como membro permanente do Conselho de Segurança e dos ideais sobre os quais a República Francesa foi fundada».
Entretanto, o embaixador francês em Marrocos, Christophe Lecourtier, reconheceu em 22 de Março passado, a participação do seu país como cúmplice na guerra, no êxodo e no genocídio do povo saharaui no período 1975-1991. Informou ainda que «o exército francês bombardeou com aviões de combate e interveio militarmente contra o exército saharaui».
«Desde o início da questão, a França esteve ao lado de Marrocos (...) na ONU quando este estava isolado internacionalmente. (…). Utilizámos o nosso estatuto de membro permanente do Conselho de Segurança em seu proveito (...). Quando Marrocos propôs a iniciativa de autonomia, fomos dos primeiros a dizer que se tratava de uma boa solução», acrescentou o embaixador francês.

Um passado conturbado

Recorde-se que as relações entre a França e Marrocos se tornaram mais tensas em Setembro de 2021, quando Paris decidiu reduzir para metade o número de vistos concedidos a marroquinos, coincidindo com a aproximação de Emmanuel Macron à Argélia.
A França ainda tem actualmente motivos para se afastar de Marrocos, face ao escândalo de diversas personalidades francesas (por exemplo, o Chefe de Estado) terem sido objecto de espionagem através do software israelita Pegasus, adquirido pelo governo marroquino, o que Rabat negou. Em Janeiro de 2023 as hostilidades aumentaram quando o Parlamento Europeu (PE) aprovou uma resolução condenando a deterioração da liberdade de imprensa em Marrocos e a utilização abusiva de alegações de agressão sexual como forma de dissuadir os jornalistas. A resolução também afirmava a preocupação do PE com o alegado envolvimento de Marrocos no escândalo de corrupção na UE.
Apesar da grande tensão criada, o chefe de Estado francês não deixou de manifestar, ao longo de 2023, a sua determinação em ultrapassar este clima de crise, já que considera que a política da França em relação ao Magrebe não pode permitir diferendos prolongados com qualquer Estado magrebino, devido à proximidade geográfica, aos laços históricos e à existência de uma grande comunidade de norte-africanos em França, para além da manutenção de trocas económicas, comerciais e estratégicas, o que aparenta ser a principal preocupação.
Macron sabe que Rabat espera que a França reconheça claramente a "marroquinidade" do Sahara Ocidental e que esse reconhecimento é condição prévia para o restabelecimento pleno das relações entre os dois países. A missão confiada a Stéphane Séjourné não era considerada fácil. Tratou-se de restabelecer os laços entre os dois países e, sobretudo, de dar garantias ao regime marroquino sobre o Sahara Ocidental. Marrocos aguardava a tomada de posição de Séjourné sobre esta questão e este tomou a iniciativa de afirmar que «esta é uma questão existencial para Marrocos e para os marroquinos, e a França sabe-o». Reafirmou ainda que «a França deseja uma solução política justa, duradoura e mutuamente aceite, em conformidade com as resoluções do Conselho de Segurança».
Paris, que foi o primeiro a apoiar o plano de autonomia de 2007, «deseja avançar para uma solução pragmática, realista e duradoura, baseada num compromisso». Com estas palavras, o chefe do Quai d'Orsay mostra que, ao mesmo tempo que quer avançar, o seu país tenta poupar as relações com a Argélia, sem no entanto apoiar a autodeterminação proposta pela Frente POLISARIO e apoiada por Argel.


 


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