quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

OS DILEMAS NORTE-AMERICANOS PERANTE A QUESTÃO SAHARAUI

(Boletim nº 128 - Janeiro 2024)

As profundas mudanças em curso no xadrez internacional recolocaram o caso do Sahara Ocidental na mira dos Estados Unidos. No fim do ano apareceram vários artigos em publicações internacionais com análises sobre o tema. O que se seguirá ainda é uma incógnita.

À procura de um outro equilíbrio
A evidência de que processos "congelados" durante muito tempo são candidatos a erupções inesperadas tornou-se demasiado presente — trata-se não só de Gaza, mas também de alguns países da África ocidental, que instalaram regimes militares e recusaram o neo-colonialismo francês (Mali, Guiné-Conacri, Burquina Faso, Níger).
2023 foi o ano em que ficou demonstrada a duplicidade de critérios nas relações internacionais: o Direito Internacional vale para alguns países (Rússia…), é sumariamente dispensado em relação a outros (Marrocos, Israel…).
Na diplomacia ocidental o Médio Oriente e o Norte de África fazem parte de uma mesma região, conhecida pela sigla anglófona MENA. Se a parte oriental está à beira de um conflito militar generalizado, o Magrebe (Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia, Sahara Ocidental, Mauritânia), intranquilo por diversas razões, também é palco da guerra no Sahara Ocidental, entre a Frente POLISARIO e Marrocos, que recomeçou em 13 de Novembro de 2020, no seguimento da quebra do cessar-fogo por parte do exército marroquino. Desde 29 de Outubro deste ano que ocorreram explosões em cidades saharauis ocupadas por Marrocos nunca antes atingidas desde o reacender da guerra: Smara e Mahbes. Uma possível escalada dos combates passou a estar realisticamente sobre a mesa.
O jogo de alianças internacional está em ebulição. A hegemonia norte-americana enfraquece e vão-se construindo alternativas à sua substituição. É o caso do grupo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Na sua cimeira de Agosto de 2023 escolheram novos membros, a integrar em Janeiro: Argentina, Arábia Saudita, Emiratos Árabes Unidos, Egipto, Etiópia, Irão. Incluindo vários candidatos a potências regionais e mundiais, este conjunto ecléctico de países, com contradições visíveis entre si, procura formas de ocupar e ganhar poder em espaços antes alinhados com o centro do mundo industrializado. Os Estados Unidos estão na corrida para não perder zonas que por ora, directamente ou através de aliados, dominam. O Norte de África é um desses lugares.
Marrocos sempre foi o aliado preferido dos EUA no Magrebe. No entanto, o seu principal rival, a Argélia, tem vindo a ganhar proeminência a nível regional e mesmo mundial, sobretudo enquanto país produtor de gás, mas também como criador de uma diplomacia segura, atenta e activa, discretamente interveniente em conflitos intrincados como as rivalidades entre facções palestinianas, ou o Níger. Para Washington Argel tem uma outra atractividade: a possibilidade de vendas significativas de armamento, antes quase só providenciado pela Rússia.
Pelo seu lado, o reino alauíta está em graves apuros, temendo-se pelo seu futuro a curto/médio prazo. O terramoto de Marraquexe, em Setembro de 2023, foi um momento de visibilidade do que costuma estar habilmente escondido. À pobreza generalizada, a uma economia baseada numa dívida gigante e numa notória desigualdade em crescendo, a sociedade responde com desejos de emigração em grande escala e efervescência dissimulada por causa da repressão sistemática. O rei, que concentra todo o poder, antes referência consensual, começou a cair em desgraça pela sua ausência prolongada da governação e pelo seu estilo de vida faustoso e despreocupado, deixando as mãos livres às polícias do regime. Uma política externa agressiva, totalmente indexada ao apoio requerido à ocupação do Sahara Ocidental, tem sido erodida pelos escândalos da espionagem através do programa israelita Pegasus de altas figuras de outros Estados (o presidente Macron, o primeiro-ministro Pedro Sánchez, muitos dos respectivos ministros), assim como de intelectuais, jornalistas e activistas de vários países, e do pagamento de subornos a eleitos e funcionários do Parlamento Europeu e de outras administrações europeias. Ultimamente, a agressão israelita a Gaza expôs a estratégia de normalização das relações diplomáticas entre Rabat e Telavive, no quadro dos Acordos de Abraão, promovidos pelos EUA, a troco do reconhecimento por Washington, em Dezembro de 2020, da soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental: enormes manifestações populares em solidariedade com o povo palestiniano têm exigido o fim das relações formais entre os dois países.

Quando os interesses exigem artes de equilibrismo

Com tanto poder a defender, em tanto lado, como mexer nalgumas peças nos cenários menos exigentes de modo a mantê-los com a estabilidade que importa? O Sahara Ocidental faz parte desta equação.
A Administração Biden deu os primeiros passos. Não podia pôr em causa os Acordos de Abraão, por causa dos compromissos com Israel, e era até importante ampliá-los (incorporar a Arábia Saudita…), mas também não era boa ideia opor-se abertamente às resoluções da ONU, instituição que o Presidente cessante tinha atropelado conscientemente. A opção foi não reverter oficialmente o reconhecimento da "marroquinidade" do Sahara Ocidental, mas ao mesmo tempo não o pôr em prática: a retórica passou a enfatizar o papel das Nações Unidas na procura de uma solução negociada a contento de todas as partes; a abertura do consulado norte-americano na cidade ocupada de Dahkla foi posta de parte; a realização de exercícios militares conjuntos com Marrocos no território ocupado nunca aconteceu; ao fim de dois anos e meio de esforços infrutíferos do Secretário-geral António Guterres para encontrar um novo Representante Pessoal para o Sahara Ocidental, foi a pressão dos EUA sobre Marrocos que levou à nomeação do diplomata italo-sueco Staffan De Mistura para o cargo, que iniciou em Novembro de 2021.
O ano de 2022 foi dedicado a observar os desenvolvimentos da situação e a medir forças. Houve uma aproximação de Washington à Argélia. Pedro Sánchez sucumbiu à chantagem e o Palácio em Rabat divulgou uma carta em que o Presidente do governo de Espanha reconhecia que o plano de autonomia marroquino representava a proposta «mais séria, realista e credível» para a resolução do conflito saharaui — uma viragem na política da antiga potência colonial que gerou inúmeros protestos no próprio país, quer de instituições públicas, quer da sociedade civil. No fim do verão, Marrocos impôs tais condições ao Representante Pessoal do Secretário-geral da ONU para o Sahara Ocidental para a sua primeira visita ao território ocupado que ele se viu obrigado a recusar e ela ficou sem efeito.
Um ano mais tarde, em 2023, pouco antes das reuniões anuais, em Outubro, que o Conselho de Segurança dedica ao Sahara Ocidental, verificaram-se alguns acontecimentos que criaram a expectativa de um pequeno avanço no dossier: pela primeira vez, o Sub-secretário de Estado dos EUA para a região MENA, Joshua Harris, visitou, a 3 de Setembro, os Acampamentos de refugiados saharauis em Tindouf (Argélia) e encontrou-se com as autoridades saharauis, incluindo o Secretário-geral da Frente POLISARIO e Presidente da República Árabe Saharaui Democrática (RASD), Brahim Ghali; quase em simultâneo, Staffan de Mistura conseguiu, novamente por pressão de Washington, visitar finalmente o Sahara Ocidental ocupado, tendo tido duas reuniões com representantes da sociedade civil saharaui, que colocaram claramente em cima da mesa as questões do direito à autodeterminação e da sistemática violação dos Direitos Humanos de que a população saharaui é vítima; e a 12 de Setembro Brahim Ghali foi a Nova Iorque para um encontro com o Secretário-geral António Guterres.
Mas o ataque do Hamas em Israel a 7 de Outubro estancou qualquer dinâmica que pudesse haver. As discussões à porta fechada no Conselho de Segurança, no fim desse mês, produziram uma Resolução sobre o Sahara Ocidental praticamente idêntica à do ano anterior.
No entanto, o processo não parou. Durante o mês de Novembro, a Embaixadora dos Estados Unidos na Argélia, Elizabeth Moore Aubin, visitou por duas vezes (nos dias 16 e 29) os Acampamentos de refugiados saharauis em Tindouf, no quadro da missão de doadores das Nações Unidas aos campos de refugiados saharauis, numa iniciativa do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR). E em Dezembro o mesmo Sub-secretário de Estado dos EUA para a região MENA voltou a deslocar-se à Argélia (dias 8 e 9) e a Marrocos (dias 17 e 18), tendo assumido que a questão saharaui estava no centro das discussões políticas com ambos os países.

O que revela e o que esconde a linguagem diplomática?

Como lembra a Redacção do sítio Algérie Focus, «no mundo complexo da diplomacia internacional, cada gesto, cada palavra, cada deslocação de um embaixador pode ter implicações profundas e repercussões inesperadas».
O parágrafo destina-se a enquadrar e a tentar interpretar as visitas da senhora Aubin a Tindouf. Durante a primeira deslocação, a Embaixadora exprimiu o apoio dos EUA «ao processo político das Nações Unidas sobre o Sahara Ocidental», sem nomear a proposta de autonomia avançada por Marrocos em 2007 e que continua a ser o cavalo de batalha de Rabat. No termo da segunda, foi uma fotografia, no meio de outras publicadas pela diplomata, que chamou a atenção: ela está ao lado de uma mulher saharaui, reconhecida pelo seu traje tradicional, vendo-se atrás de ambas a bandeira saharaui e uma grande foto de Brahim Ghali, Secretário-geral da Frente POLISARIO e Presidente da RASD.
Consultas com a Argélia
Na véspera da chegada de Joshua Harris a Argel, o comunicado oficial do Departamento de Estado que anuncia a visita introduz alguma novidade na linguagem: o objectivo será proceder a «consultas com a Argélia e Marrocos sobre a promoção da paz regional e a intensificação do processo político das Nações Unidas no Sahara Ocidental, a fim de conseguir, sem mais demora, chegar a uma solução duradoura e digna». Alguns dias mais tarde (17 de Dezembro), o Departamento de Estado publica um novo comunicado antecedendo a visita de Harris a Rabat: Washington continua «a considerar a proposta marroquina de autonomia como séria, credível, realista e como um dos possíveis enfoques para satisfazer as aspirações do povo do Sahara Ocidental»; «os Estados Unidos acreditam que se deve alcançar uma solução política através de negociações, sem mais demora».
A ambiguidade da expressão «uma solução digna para o povo saharaui», que a diplomacia norte-americana vem utilizando desde há algum tempo, pode prestar-se à construção de vários cenários. Pela segunda vez os EUA assumem publicamente que o plano de autonomia de Marrocos é apenas uma das possibilidades de resolução do conflito. E pela primeira vez há uma dupla menção à necessidade de uma solução rápida – «sem mais demora».
Significativa foi a entrevista que o Sub-secretário de Estado dos EUA para a região MENA deu na embaixada norte-americana em Argel (9 de Dezembro), oficialmente publicada pela própria embaixada. Numa declaração preliminar, Joshua Harris esclarece: «(…) Em particular, os Estados Unidos estão muito concentrados sobre o sucesso do processo da ONU no Sahara Ocidental. Consideramos que é muito urgente permitir ao Enviado Pessoal [do Secretário-geral] De Mistura progredir sem mais demora. A escalada no terreno e a intensificação do conflito militar são demasiado alarmantes e afastar-nos-ão ainda mais da solução política da qual precisamos desesperadamente. (…). Ao mesmo tempo, não existe um atalho e a paz não pode ser imposta do exterior. A única solução durável é um processo das Nações Unidas que permita às pessoas que vivem no Sahara Ocidental reflectir numa contribuição relativamente ao seu futuro.» A entrevista desenvolve, sempre com base na mesma linguagem, estes pontos de vista.
A ideia de que serão as «pessoas que vivem no Sahara Ocidental» a contribuir para uma solução acentua a ambiguidade. Pode ser uma aproximação cautelosa à necessidade de um referendo, como pode também ser uma forma de incluir os milhares de colonos marroquinos na definição do futuro do território.
Recordamos o que afirmou Christopher Ross, diplomata norte-americano, Representante Pessoal do Secretário-geral da ONU para o Sahara Ocidental (2009-2017). «Entre 2007 e 2019, o meu antecessor, o meu sucessor e eu patrocinámos 15 sessões entre estas duas partes, com a Argélia e a Mauritânia presentes como Estados vizinhos. Infelizmente, nunca houve nada a que se pudesse chamar negociações, e a comunidade internacional tem todo o direito de saber porquê. A POLISARIO apresentou-se em cada sessão disposta a discutir as duas propostas, mas Marrocos apresentou uma condição prévia importante: discutiria apenas a sua própria proposta. Escusado será dizer que a POLISARIO se recusou a aceitar o que considerava ser um diktat, e as negociações ficaram condenadas desde o início.»
Referindo-se aos «saharauis que vivem sob o controlo marroquino»: «qualquer solução que não tenha em conta os pontos de vista desta população seria inerentemente desestabilizadora»; e ao mencionar a «população refugiada»: «qualquer acordo que não tenha em conta as opiniões desta última população seria igualmente inerentemente desestabilizador.» (Mensagem enviada à I Jornada Europeia de Amizade com o Povo Saharaui, Florença, Itália, 2 de Julho de 2022).
Washington parece querer assumir o papel de mediador, tacteando o caminho a pouco e pouco, verificando reacções, ajustando posições, para ir progredindo. Não se percebe muito bem em direcção a quê. Neste contexto, os posicionamentos de todos os actores têm um elevado valor, na medida em que podem contribuir para balizar o percurso. Que o povo saharaui sabe onde deve chegar: a um referendo justo e livre.

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