quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

GUERRA NO MÉDIO-ORIENTE ALTERA GEOPOLÍTICA AFRICANA

(Boletim nº 128 - Janeiro 2024)

Obiora Ikoku, um jornalista e activista nigeriano, escreveu um bem documentado artigo sobre as repercussões que o conflito israelo-palestiniano está a ter em África, tanto nos países de herança colonial britânica como francófona. É desse artigo que transcrevemos aqui excertos.

Israel à conquista de África
«A África teve sempre uma importância estratégica para Israel e a Palestina. Os 55 Estados membros da União Africana (UA) representam um bloco de votos vital nas Nações Unidas [dos 55 Estados da UA só 54 têm representação na ONU visto a República Árabe Saharaui Democrática ainda ser considerada à luz do direito internacional um território não-autónomo] e noutros organismos internacionais. E tanto Israel como a Palestina têm dado prioridade à política externa com os Estados africanos ao longo da sua história.
Ao longo de dois meses de guerra em Gaza, o bloco africano dividiu-se em três grandes grupos, separados por posições opostas face ao conflito. De um lado, o Zimbabué e a África do Sul, juntamente com os países da Liga Árabe, Tunísia, Argélia, Sudão e Chade, manifestaram o seu apoio à Palestina. Do outro, o Quénia, o Gana, a Zâmbia, os Camarões e a República Democrática do Congo apoiaram abertamente Israel. Numa posição intermédia, a Nigéria e o Uganda, cuja neutralidade consiste (…) em apelar a um desanuviamento.
Nos últimos anos Israel tem desenvolvido iniciativas diplomáticas no continente, depois de um continuado declínio a seguir à guerra israelo-árabe de 1973. (…). No entanto, a escalada em Gaza ameaça estes ganhos diplomáticos. No final de Outubro de 2023, cerca de 35 países africanos votaram na Assembleia Geral da ONU a favor da resolução proposta pela Jordânia que apelava à "protecção dos civis e ao cumprimento das obrigações legais e humanitárias". Marrocos e o Sudão, dois países que normalizaram as relações diplomáticas com Israel como parte dos Acordos de Abraão em 2020, estavam entre os países que votaram a favor. Entretanto o Chade, outro país de maioria muçulmana que restaurou recentemente os laços diplomáticos com Israel, chamou o seu Encarregado de Negócios, invocando a "morte de numerosos civis inocentes" e a necessidade de um "cessar-fogo para uma solução duradoura" para a questão palestiniana. De igual modo o Quénia, o maior aliado de Israel no Corno de África, recuou na sua declaração inicial de solidariedade com Israel, e o Ruanda, outro aliado de Israel, enviou ajuda humanitária para Gaza.»

Uma resposta polifónica

«(…). A UA adoptou agora uma posição mais dura contra a guerra de Israel. Numa declaração divulgada no dia do ataque do Hamas, a União atribuiu a responsabilidade pelo conflito a Israel, afirmando que "a negação dos direitos fundamentais do povo palestiniano, em particular o da existência a um Estado independente e soberano, é a principal causa da permanente tensão israelo-palestiniana". (…).
Para Irit Back, professora e especialista em estudos sobre África e o Médio Oriente no Centro Moshe Dayan (Universidade de Telavive), a "divisão reflecte as diversas circunstâncias geoestratégicas, históricas e políticas dos países africanos, por exemplo a aliança tradicional entre o ANC [Congresso Nacional Africano] da África do Sul e a OLP [Organização para a Libertação da Palestina].
O que os une é o passado comum de luta contra o colonialismo e a opressão, bem como a crítica ao apoio dado por Israel ao regime do apartheid sul-africano na década de 1970. De acordo com o que Sascha Polakow-Suransky revelou no seu livro The Unspoken Alliance, Israel ofereceu várias formas de apoio ao regime racista, incluindo o treino das unidades militares de elite sul-africanas, o fornecimento de tanques, espingardas Galil e tecnologia de aviação, bem como uma tentativa conjunta de produzir armas nucleares. Pouco depois da sua libertação da prisão, em 1990, Nelson Mandela declarou que "o povo da África do Sul nunca esquecerá o apoio de Israel ao regime do apartheid". (…).
A Argélia, também membro da Liga Árabe, há muito que apoia os palestinianos na sua luta contra a ocupação israelita. Enviou apoio militar aos exércitos árabes que lutaram contra Israel nas guerras de 1967 e 1973, e apoiou a Palestina na frente diplomática. Em 1975 votou a favor de uma resolução da Assembleia Geral da ONU que equiparou o sionismo ao racismo e, depois da OLP ter proclamado o Estado palestiniano em 1988, a Argélia foi o primeiro país a reconhecê-lo.
Mesmo após alguns países do Norte de África se terem aproximado de Telavive, a Argélia manteve-se firme na sua recusa em reconhecer o Estado de Israel. Em 2020, quando os Acordos de Abraão começaram a aproximar Israel e alguns países árabes, o Presidente argelino Abdelmadjid Tebboune insistiu que o seu país "nunca participaria" na "corrida para a normalização".
O Egipto tornou-se o primeiro país árabe a assinar um tratado de paz com Israel em 1979, seguido pela Jordânia em 1994. Desde 2020, mais quatro países da Liga Árabe – Emiratos Árabes Unidos, Bahrein, Sudão e Marrocos – assinaram os Acordos de Abraão de normalização das relações com Israel.
O acordo assinado por Cartum permitiu-lhe ser retirado da lista negra do terrorismo dos EUA. Mas, ao contrário de Marrocos, o processo de normalização tem avançado lentamente, em parte devido à guerra civil sudanesa. (…). Mas quando o Sudão decidiu, dois dias após o início da guerra em Gaza, restabelecer os laços com o Irão (…), ficou a dúvida sobre a efectividade deste acordo.
Por seu lado Marrocos absteve-se de condenar publicamente Israel, limitando-se a expressar a sua "profunda preocupação com a deterioração da situação e o início das operações militares na Faixa de Gaza". No entanto, o país tem assistido a alguns dos maiores protestos pró-Palestina do continente, envolvendo dezenas de milhares de manifestantes. A matizada posição de Rabat demonstra a sua hesitação em pôr em causa as relações com Israel. O que está em causa para Marrocos é o reconhecimento israelita da sua soberania face ao disputado Sahara Ocidental, que o opõe à Frente POLISARIO, apoiada pela Argélia, entre outros.
Na mesma linha, a posição pró-Israel do Quénia reflecte a importância estratégica do país no Corno de África, especialmente o seu papel como primeira linha de defesa numa região assolada pelo crescimento de grupos islâmicos de linha dura. (...).
Desde o estabelecimento de laços diplomáticos entre o Quénia e Israel há seis décadas, estes países têm colaborado no desenvolvimento económico e na segurança. (…). Após 1976, quando Nairobi deu apoio operacional a uma força militar israelita durante a crise dos reféns de Entebbe, no Uganda, o Quénia tem sofrido uma série de ataques no seu território. (…). Entre eles, contam-se o atentado bombista de 1980 contra o Hotel Norfolk, de propriedade judaica, (...), o atentado bombista em 2002 contra o Hotel Paradise em Mombaça, de propriedade israelita, e o atentado de 2013 contra o centro comercial Westgate, também de propriedade israelita, em Nairobi.
O caso da Nigéria ilustra bem os altos e baixos dos laços entre África e Israel ao longo da história. Embora a Nigéria tenha assumido uma posição neutral na actual guerra em Gaza, o gigante da África Ocidental tem alternado entre o apoio aos palestinianos e o apoio a Israel. (…).
Após a guerra israelo-árabe de 1973, a Nigéria cortou relações com Telavive, que só foram restabelecidas duas décadas mais tarde, em Setembro de 1992, levando ao florescimento do comércio entre os dois países. Em 2013, o antigo presidente Goodluck Jonathan tornou-se o primeiro chefe de Estado nigeriano a visitar Israel.»

Ofensiva diplomática

«A reacção de África à guerra israelo-palestiniana mostra também o resultado da ofensiva diplomática de Israel para restabelecer os laços com África. Nos últimos anos, Netanyahu liderou o esforço israelita de entrar em África. Fez escala na Etiópia, no Quénia, no Ruanda e no Uganda durante uma visita de Estado em 2016. No ano seguinte, Netanyahu discursou na Libéria na Cimeira de Chefes de Estado e de Governo da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), tornando-se o primeiro dirigente fora de África a fazê-lo. Até agora, Israel tem reforçado as relações com uma série de países africanos, em especial com vários Estados importantes do Norte de África e da África Subsariana e pelo menos 46 países da UA já reconhecem Israel.
"Nos últimos 10 anos, Israel tem feito esforços significativos para construir relações com África, mas estas são sobretudo transaccionais, uma forma de ganhar apoio na ONU e noutros fóruns internacionais", disse à Inkstick o jornalista Antony Loewenstein, que esteve em Jerusalém entre 2016 e 2020.
No livro The Palestine Laboratory, Loewenstein investigou a tecnologia militar israelita, a recolha de dados e a guerra cibernética desenvolvidas e testadas no combate aos palestinianos na Cisjordânia ocupada e em Gaza. Segundo ele, essa tecnologia tornou-se moeda de troca nos negócios de Israel, quer com ditaduras quer com democracias, incluindo as africanos. (…).
De acordo com o Ministério da Defesa de Israel, as exportações de defesa do país para África aumentaram para 6,5 mil milhões de dólares em 2016 – um aumento impressionante de 800 milhões de dólares em relação ao ano anterior. Estas exportações significam lucros elevados para as empresas israelitas, mas Loewenstein argumenta que os negócios lucrativos não são o único objectivo. Israel espera que os países-cliente, que beneficiam do seu armamento e da sua tecnologia de espionagem, mudem a sua posição em votações importantes na ONU. (…).
A 30 de Dezembro de 2014, o enviado nigeriano ao Conselho de Segurança da ONU, Joy Ogwu, absteve-se numa votação que exigia que Israel pusesse fim à sua ocupação de Gaza e da Cisjordânia. Em Abril de 2013, a Nigéria tinha pago 40 milhões de dólares a uma empresa israelita, a Elbit Systems, por um sistema de telecomunicações e vigilância que poderia ajudar os esforços do regime a controlar as actividades dos cidadãos na Internet.
O programa de espionagem Pegasus, criado pela empresa israelita NSO Group, também se generalizou em África. Descrito como "a arma cibernética mais poderosa do mundo", o Pegasus foi associado a vários abusos cometidos por regimes africanos, nomeadamente no Ruanda, no Gana, em Marrocos e no Togo.
"Há muitas provas de que Israel apoia regimes repressivos em África e alguns desses Estados têm vindo a apoiar Israel nas últimas semanas", acrescentou Loewenstein. "Não creio que seja uma coincidência". (…).»

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