domingo, 3 de dezembro de 2023

TESH SIDI: «NÃO DESISTIREMOS!»

(Boletim nº 127 - Dezembro 2023)

Tesh Sidi, a nova deputada de origem saharaui no Parlamento de Espanha, fez uma reflexão sobre o acordo de governação agora celebrado no qual não consta o problema da descolonização do Sahara Ocidental. Mas, como ela nos lembra, esta derrota não nos deve levar à desistência. É essa reflexão que aqui partilhamos.

«Não nos perdoariam sermos cobardes»
«Há poucas semanas foi assinado o acordo entre o Partido Socialista [PSOE] e o Sumar, e a alegria de muitos reflectiu-se nas redes sociais. Finalmente há um acordo entre formações progressistas! Mas, ao mesmo tempo, também foram tecidas duras críticas a todas as ausências temáticas do documento, por muitas e muitos que tinham o texto já pronto para ser anunciado. E depois muitas pessoas escreveram-me nas redes sociais.
Como sempre, e como é meu hábito, respondo a todas as mensagens e tento ser pedagógica, porque é a minha forma de fazer política; mas não podia negar a dor que sentia, a impotência e a raiva que muitas e muitos outros sentiram nesse dia. No meu caso, porém, o processo de incerteza de mais de três meses chegava ao fim. As cartas estavam na mesa e, por mais que as minhas cartas fossem importantes para mim, não eram uma linha vermelha para os outros 349 membros da Câmara de Deputados.
Isto pode parecer lógico para muitos e muitas que estão profundamente envolvidos na política nacional, para os quais esta é uma agenda prioritária; mas foi complexo para uma nova deputada, com pouca experiência parlamentar e muitas representatividades que são transversais à sua pessoa. No acordo não havia uma única menção ao Sahara Ocidental, nem uma única menção a medidas tão importantes como a iniciativa RegularizaciónYa.
Costuma dizer-se que um acordo é uma série de pontos sobre os quais as partes chegam a um consenso e que tudo o que não está incluído se deve ao facto de o não ter conseguido alcançar. É assim que os especialistas políticos o consideram, mas é algo muito complexo para transmitir a um eleitorado que te vê como uma referência na sua própria luta. É complexo para uma saharaui integrar um governo em que uma das suas partes nega a existência do seu povo e procura agradar ao ocupante. É complexo para uma saharaui não se sentir impotente quando o seu povo resiste há mais de 50 anos. É complexo para uma saharaui que criticou tão duramente Pedro Sánchez fora da instituição. É complexo para uma migrante que sofreu tanto racismo institucional e tanta violência burocrática: 24 anos para obter a cidadania, viver num limbo jurídico desde que nasci porque Espanha não reconhece a minha origem...É complexo sentir que se carregam tantas lutas às costas e que não se consegue alcançar o que nos é exigido do exterior.
É então que surge a segunda voz dentro de nós, a que é pragmática, de cabeça fria, capaz de contar até dez e procurar uma solução; a que é capaz de aguentar a pressão, mesmo que por vezes seja injusta. Esta foi talvez a melhor coisa que aprendi enquanto engenheira, até há poucos meses. Como diz sempre o meu irmão, "Roma e Pavia não se fizeram num dia". Talvez os episódios stressantes - como o encerramento de bancos – passem a ocupar o meu dia a dia e ser activista e política seja mais complexo do que pensava.
Talvez quando aceitei fazer parte de uma lista eleitoral não soubesse quantas contradições e sacrifícios temos de fazer quando institucionalizamos o nosso activismo, mas agora pergunto-me se tinha escolha em não ser política. A verdade é que continuo a pensar que não, que não tinha escolha. Que nós, que acreditamos firmemente na transformação da instituição através da ocupação de espaços como única forma de mudar as coisas, temos de assumir o desafio de entrar e resistir; que, como mulheres e migrantes, este espaço também é nosso e ocupá-lo é um acto de responsabilidade e um exemplo para as gerações futuras, que não nos perdoariam por começarmos sempre de novo; não nos perdoariam por sermos cobardes e não ousarmos.
Nesse dia recebi mensagens de vários compatriotas - na sua maioria homens - e uma delas levou-me a uma reflexão profunda sobre a complexidade de fazer política. A mensagem dizia: "Vota NÃO a Sánchez e terás o respeito do teu povo e estarás na capa dos livros de história", ao que respondi: "As mulheres não estão habituadas a estar na capa dos livros de história". Mesmo que doa, sabemos que é verdade. Entendemos o feminismo como um movimento político transformador, capaz de construir políticas de paz e de respeito pela existência. Depois, cada uma de nós tentou dar-lhe um nome, mas, no fim de contas, o mais importante para mim é poder dizer que a minha luta, acima de tudo, é feminista. Porque o que nós mulheres sofremos na política, no activismo e nos espaços de poder é apenas uma demonstração clara de como é necessário ocuparmos espaços para educar as nossas filhas e filhos para um futuro mais justo e coerente.
Outras mensagens que recebi tinham a frase típica: "Foste usada, apesar de saber que és uma pessoa fantástica". Reduzir todo o meu trabalho a essa frase sempre me pareceu desrespeitoso, com um certo tom colonial - para não falar da condescendência patriarcal para com uma jovem mulher que é tratada como uma criança inocente. Compreendo que esta leitura vitimizadora é uma forma de me perdoar e justificar a minha presença na instituição, porque é mais complexo compreender que sou capaz de conduzir processos de negociação interna para mudar a vida dos cidadãos, porque muitos ainda não aceitam que nós, migrantes, também damos um murro na mesa quando é necessário. Estamos perfeitamente conscientes da facilidade com que as nossas vozes são abafadas; é por isso que sabemos que precisamos de mais pessoas como nós no interior para fazer da nossa agenda uma linha vermelha.
A verdade é que as negociações de um acordo de governo entre formações como Sumar e PSOE, com algumas linhas ideológicas semelhantes e outras totalmente diferentes, são um processo complexo. A referência ao Sahara Ocidental ou a muitas medidas migratórias estiveram no documento desde o início, mas não conseguimos que fossem incluídas no acordo final. No entanto, devo deixar claro que não desistimos da questão do Sahara ou das questões migratórias.
Hoje, dias após a apresentação desse acordo que nos deixou com um "amargo de boca", acordámos um conjunto de medidas que facilitarão a vida da população saharauí, dando-nos um impulso para reforçar aquela sociedade civil e o movimento de solidariedade em prol do Sahara Ocidental, tendo sempre como objectivo a descolonização do território. Isto pode parecer letra morta para um povo que o Estado espanhol abandonou nos últimos 50 anos e a quem já foram feitas tantas promessas; é por isso que não me atrevo a fazê-las. Porque sei que, tal como eu, todo o povo saharauí construiu uma carapaça para continuar a resistir e é por isso que temos de interiorizar que estar na instituição pode também tornar-se uma outra forma de resistência.
Estou certa de que, durante esta legislatura, seremos capazes de realizar grandes mudanças sociais para a nossa cidadania. Não só teremos travado a direita e a extrema-direita, com as suas políticas neoliberais, como estou certa de que este barco, que zarpou a 23 de Julho, pode fazer uma legislatura longa e estável. É isso o que devemos à cidadania e, por conseguinte, não podemos permitir-nos a irresponsabilidade de repetir as eleições.
Orgulho-me do trabalho invisível que constrói a confiança e, hoje, entro pela porta do Congresso dos Deputados com a intenção de votar Sim à investidura, consciente do que isso significa. Mas, neste imenso palácio repleto de história, o empenho de muitos e muitas na causa dos migrantes e dos saharauis faz-me sentir que não estou sozinha. O que hoje parece ser um ponto final parágrafo, garanto-vos que é apenas um ponto e vírgula: um passo intermédio até à autodeterminação do povo saharaui.
Chego ao hemiciclo. Sento-me no meu lugar. Respiro fundo. Já estou cá dentro. E, em breve, seremos muitas mais.»


 

Sem comentários:

Enviar um comentário