segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

POLÍTICA EXTERNA DE ESPANHA: «A DUALIDADE DE CRITÉRIOS»

(Boletim nº 127 - Dezembro 2023)

O governo de Espanha tem assumido posições antagónicas face aos conflitos no Sahel e no Médio Oriente, num bom exemplo da chamada política de “dois pesos, duas medidas”. O jornalista Ignacio Cembrero publicou a sua reflexão sobre esta ambivalência, cuja tradução aqui divulgamos.

A explicação para a dualidade de critérios

«OS DOIS PESOS E AS DUAS MEDIDAS DE SÁNCHEZ: DIREITO INTERNACIONAL PARA GAZA, MAS NÃO PARA O SAHARA [OCIDENTAL]

 Marrocos é a explicação para a duplicidade de critérios do Presidente do governo, que sabe que Rabat pode utilizar instrumentos como a imigração irregular para colocar a Espanha em apuros.

"Israel deve também respeitar o direito internacional, incluindo o direito internacional humanitário". O Presidente do governo Pedro Sánchez repetiu esta frase em todas as etapas da sua mini-viagem pelo Médio Oriente na semana passada.
Chegou mesmo a dizê-lo na cara do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanhayu, na quinta-feira, 23 de Novembro. Referia-se aos "ataques indiscriminados", segundo ele, do exército israelita contra civis na Faixa de Gaza. "O número de palestinianos mortos é verdadeiramente insuportável", sublinhou. Esta frase tornou-se a manchete de muitos jornais do mundo islâmico. O número de palestinianos mortos até segunda-feira, 27, ronda os 15.000, segundo as autoridades da Faixa de Gaza, a que se juntam milhares de pessoas soterradas nos escombros e cujos corpos ainda não foram recuperados.
A invocação do direito internacional também esteve presente em todos os discursos de Sánchez desde que a Rússia invadiu a Ucrânia em Fevereiro de 2022. Sánchez deslocou-se por três vezes a Kiev para manifestar a sua solidariedade para com o Presidente Volodomir Zelenski. Em Fevereiro deslocou-se mesmo à cidade de Bucha e ao bairro de Irpin, em Kiev, onde se suspeita que o exército russo tenha cometido crimes de guerra.
Esta preocupação com o direito internacional em locais situados a mais de 3.500 Kms das fronteiras espanholas contrasta com o desinteresse por outro território situado a menos de 200 Km do extremo oriental das Canárias e que foi colónia espanhola até 1975: o Sahara Ocidental.
Até Março de 2022, a diplomacia espanhola escondeu-se atrás das resoluções da ONU sobre o Sahara [Ocidental] para manter uma posição aparentemente equidistante entre Marrocos, que controla 80% do território, e a Frente POLISARIO, que controla os restantes 20%. O Sahara Ocidental tem 266.000 Kms quadrados, uma área equivalente a metade do território espanhol.
A equidistância era mais aparente do que real, porque no tempo de José Luis Rodríguez Zapatero como primeiro-ministro, Luis Planas, então embaixador de Espanha em Marrocos, já tinha oferecido apoio jurídico aos marroquinos para melhorar o seu plano de autonomia para o Sahara [Ocidental]. Foi apresentado em 2007 para contornar o referendo sobre a autodeterminação da população autóctone. Os contributos de Planas foram registados nos telegramas do Departamento de Estado revelados em 2010 pela WikiLeaks.
A equidistância desapareceu por completo quando, a 18 de Março de 2022, Mohammed VI de Marrocos revelou num comunicado que tinha recebido uma carta de Sánchez. Nela, o Presidente do governo considerava o plano de autonomia como "a base mais séria, realista e credível" para a resolução do diferendo do Sahara [Ocidental]. Outros países europeus apoiam a proposta marroquina mas em termos menos exuberantes.
O apoio à autonomia não faz parte das resoluções do Conselho de Segurança da ONU. A última, aprovada a 30 de Outubro, apelou pela enésima vez a "uma solução política justa, duradoura e mutuamente aceitável, que preveja a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental".
Embora Sánchez aplique dois pesos e duas medidas nas suas declarações, existe um ligeiro paralelismo entre o Sahara [Ocidental] e a Palestina. "O conflito saharaui é como o conflito palestiniano, só será resolvido quando for atacado pela raiz", declarou, por exemplo, Arancha González Laya, antiga ministra dos Negócios Estrangeiros, ao diário El Independiente. "O acordo israelo-marroquino [de 10 de Dezembro de 2020] é uma ocupação em troca de outra ocupação", escreveu a jornalista Noa Landau no diário israelita Haaretz.
É verdade que a situação nesta antiga colónia espanhola não é tão grave como na Ucrânia ou em Gaza. No entanto, desde Novembro de 2020, Marrocos e a POLISARIO têm vindo a travar uma guerra de baixa intensidade, na qual se registaram baixas militares e civis de ambos os lados. Em três anos de hostilidades, Rabat só reconheceu uma, um civil morto a 29 de Outubro em Smara, enquanto a POLISARIO reconheceu oficial ou oficiosamente algumas, a última das quais a 19 de Novembro. Nesse dia, um drone marroquino matou cinco dos seus milicianos. A Argélia também denunciou em 2021 a morte de três camionistas argelinos.
O conflito do Sahara é menos grave, mas a Espanha tem uma responsabilidade que não tem na Ucrânia ou na Palestina. É a potência administrante de jure, mesmo que, na prática, não desempenhe esse papel. Só o faz actualmente no espaço aéreo do Sahara [Ocidental] que, 47 anos após a sua saída do território, continua sob o seu controlo, através da empresa pública Enaire. Apenas os voos militares marroquinos estão isentos deste controlo.
Esta responsabilidade espanhola foi, por exemplo, estabelecida no relatório de Hans Corell, Subsecretário-geral das Nações Unidas para os Assuntos Jurídicos, em Janeiro de 2002. Nele recordou que, em 1975, a Espanha não transferiu a soberania sobre o território nem conferiu o estatuto de potência administrante a Marrocos e à Mauritânia porque não o podia fazer unilateralmente.
Além disso, a Assembleia Geral da ONU aprova todos os anos uma resolução que estipula que as potências administrantes, entre as quais a Espanha, continuam a manter as suas obrigações até que a própria instituição mude de opinião. "Mesmo que a Espanha não queira ter nada que ver com o território", como afirma o ministro José Manuel Albares, "um Estado só pode renunciar aos seus direitos, mas não às suas obrigações", recordou Juan Soroeta, professor de Direito Internacional Público na Universidade do País Basco, ao jornal El Independiente.
As afirmações de Soroeta não são um acaso. Os sucessivos responsáveis pelo departamento jurídico do Ministério dos Negócios Estrangeiros, com algumas excepções, consideraram nos seus relatórios, que não são públicos, que a Espanha continuava a ser a potência administrante de jure do Sahara. Os sucessivos ministros ignoraram com a mesma teimosia estas declarações.
À porta fechada, em Espanha, o plenário da divisão criminal da Audiência Nacional também sublinhou, em 2014, que a potência administrante da antiga colónia não tinha mudado. Essa sessão plenária foi presidida por Fernando Grande-Marlaska, que era então um dos seus juízes e que é actualmente Ministro do Interior e um dos membros do governo mais complacente com Marrocos, a julgar pelas suas declarações.
A mentalidade fechada de Sánchez foi tão longe que na negociação do acordo de governo com Sumar não há qualquer referência ao Sahara [Ocidental]. Nem sequer são incluídos alguns parágrafos das resoluções do Conselho de Segurança enquanto a Ucrânia e a Palestina são mencionadas em alguns. Além disso, o documento acordado apela ao reconhecimento do Estado da Palestina.
A rendição a Marrocos não se limita ao Sahara [Ocidental]. Há muitos outros exemplos. Talvez um dos mais chocantes tenha sido o voto dos eurodeputados socialistas espanhóis contra uma resolução do Parlamento Europeu que instava as autoridades marroquinas a libertar três jornalistas influentes. Apenas os socialistas espanhóis e a extrema-direita francesa se opuseram à resolução, que foi aprovada, a 19 de Janeiro, por maioria esmagadora.
A explicação para esta dualidade de critérios é Marrocos; é a determinação de manter a todo o custo uma relação cordial com um vizinho que pode sufocar ainda mais Ceuta e Melilla – as alfândegas comerciais anunciadas por Sánchez há quase 20 meses não foram ainda abertas – e que recorre à imigração e à cooperação antiterrorista como instrumentos de pressão sobre Espanha.
Quando, há alguns meses, José Manuel Albares elogiou a diminuição da imigração graças aos acordos com Rabat, estava, na realidade, a reconhecer que só quando o Governo espanhol agrada ao seu vizinho é que este faz um esforço para travar a chegada de imigrantes sem documentos.
Há anos que os ”thinks-tanks” e os especialistas em imigração de toda a Europa apontam o dedo a Marrocos como um país que recorre à arma da migração. O último a analisar em profundidade as acções de Marrocos é o investigador italiano Costantino Pistilli, que acaba de publicar um livro intitulado El gran chantaje. La apertura de fronteras como instrumento de presión política. El caso Marruecos-España (Paesi Edizioni, Roma 2023). Nele, demonstra que a imigração irregular não é apenas um problema humanitário, mas responde também a estratégias políticas dos países de origem.»


 


Sem comentários:

Enviar um comentário