sábado, 4 de novembro de 2023

SAHARA OCIDENTAL, PALESTINA: «RESISTIR A UM EXÉRCITO DE OCUPAÇÃO É UM DIREITO RECONHECIDO ...»

 (Boletim nº 126, Novembro 2023)


Do rio que tudo arrasta se diz que é violento.
Mas ninguém diz violentas
As margens que o comprimem.

Bertolt Brecht (1)

Não nos parece que seja hoje possível falar do processo de descolonização do Sahara Ocidental sem incluir o papel que o Estado de Israel tem vindo a desempenhar nele. Não é de agora, mas os EUA, com a administração Trump, tornaram isso claro. E este papel abarca preferencialmente o campo militar e da segurança. Isto é, Israel é um agente activo na guerra entre o regime colonial marroquino e o movimento de libertação saharaui.
Suleiman M. Pema, membro do Movimento Nigeriano para a Libertação do Sahara Ocidental (NMLWS), num artigo publicado em The Guardian, estabeleceu um paralelo entre as situações vividas nos dois territórios:
«Tanto a ocupação da Palestina por Israel como a ocupação do Sahara Ocidental por Marrocos partilham algumas características comuns.
«Ambas estão enraizadas no colonialismo e no nacionalismo, uma vez que Israel e Marrocos reivindicam laços históricos e religiosos com as terras que ocupam.
«Ambas são sustentadas pela força militar e pela violência, uma vez que Israel e Marrocos usam os seus poderosos exércitos para suprimir qualquer resistência ou dissidência das populações ocupadas.
«Ambas são desafiadas por movimentos populares de libertação e independência, uma vez que palestinianos e saharauis formaram organizações políticas e grupos armados para lutar pelos seus direitos.
«Ambas enfrentam a oposição do direito e da legitimidade internacionais, uma vez que Israel e Marrocos violaram numerosas resoluções e tratados da ONU que afirmam o direito à autodeterminação de palestinianos e saharauis.
«Ambas são apoiadas por aliados externos, especialmente os Estados Unidos, que lhes têm fornecido apoio diplomático, ajuda económica e assistência militar.»
E conclui:
«A ocupação da Palestina por Israel e a ocupação do Sahara Ocidental por Marrocos são dois exemplos de conflitos em curso que têm causado imenso sofrimento e injustiça a milhões de pessoas. Ambos os casos exigem uma acção urgente e eficaz por parte da comunidade internacional para defender o Estado de direito e os direitos humanos, e para apoiar as legítimas aspirações dos palestinianos e saharauis à liberdade e à dignidade.
«Israel e Marrocos violaram consistentemente as leis internacionais sem qualquer receio de sanções, uma vez que têm o apoio dos EUA, França e Reino Unido no Conselho de Segurança da ONU.»
Carmen Parejo Rendón, directora da revista digital La Comuna, chama a atenção para o papel desempenhado pelos EUA e seus aliados europeus na situação que se vive no norte de África e Médio Oriente, nomeadamente aquando da invasão do Sahara Ocidental por Marrocos:
«Henry Kissinger, secretário de Estado dos EUA (1973-1977), observou mais tarde: "Percebendo que os nossos interesses seriam mais bem servidos por uma divisão marroquino-mauritana do Sahara do que pela sua independência sob influência argelina, a posição dos EUA foi de neutralidade pública e de apoio privado, ainda que limitado, a Marrocos". (…).
«A verdade é que as lutas, quer do povo palestiniano, quer do povo saharauí, se inserem em processos de descolonização frustrados pelos interesses de potências estrangeiras, e ainda hoje vemos como este cenário continua a servir o propósito de desestabilizar regiões inteiras, num contexto em que os EUA declararam uma guerra total ao mundo pela sua crescente perda de hegemonia.
«As potências ocidentais, antigas potências coloniais em muitos casos, como a França, a Grã-Bretanha e mesmo a Espanha, que partilham interesses com os Estados Unidos, querem manter o actual estado de coisas, pois foi isso que lhes permitiu a sua posição hegemónica. Acumulação à custa da espoliação económica, cultural e política do resto dos povos do mundo.»

CONSTRUIR PONTES

Mas apesar da partilha desta base histórica e social, as relações entre os movimentos de libertação dos dois povos não têm sido fáceis. A dependência política e financeira dos movimentos palestinianos face aos regimes árabes autoritários, aliados de Marrocos, condiciona-os a não pôr em causa o regime de Rabat, como nos recorda Mah Iahdih Nan:
«O povo saharaui nunca sentiu essa empatia e solidariedade por parte dos dirigentes palestinianos, salvo em casos excepcionais como o da organização Frente Popular de Libertação da Palestina do dirigente histórico George Habach, falecido em 2008.
«Na melhor das hipóteses, fazem um jogo de diversão para não se molharem e, na pior, defendem claramente a ocupação, os abusos e os assassínios cometidos pela autocracia marroquina, como fazem alguns representantes da Autoridade Palestiniana. (…).»
Isto não impediu a Frente POLISARIO de lançar «o seu apelo aos povos livres do mundo para que se solidarizem com o povo palestiniano e apelem à comunidade internacional e à consciência mundial para que ponham termo à terrível violação dos direitos humanos na Palestina ocupada.»
Marrocos, Outubro 2023
A aliança Marrocos-Israel e a guerra no médio-oriente provocaram um claro abalo na sociedade marroquina, bem visível nas manifestações que atravessaram o país.
Segundo Ignacio Cembrero:
«Aos olhos de Israel, o reino alauita não é um país árabe qualquer. Pouco mais de 10% da população de Israel é de origem marroquina. (…).
«Estes laços estreitos com Israel colocam actualmente as autoridades marroquinas numa posição difícil. (…).
«Alguns partidos políticos marroquinos saíram da sua letargia em defesa dos palestinianos. O Partido do Progresso e do Socialismo, herdeiro diluído do partido comunista, fê-lo, responsabilizando a "entidade sionista" pela escalada militar. O mesmo aconteceu, em termos mais ponderados, com a União das Forças Populares Socialistas, membro da Internacional Socialista.
«Os mais contundentes foram os islamistas do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (PJD), um partido enfraquecido eleitoralmente em 2021, mas ainda com apoio popular. O seu dirigente, Abdelillah Benkiran, exprimiu a 7 de Outubro o seu "grande orgulho pela evolução da situação na Palestina", ou seja, pelo ataque do Hamas. O seu partido descreveu-o como "uma operação heróica".
«David Govrin, que dirige a missão diplomática israelita em Rabat – que ainda não tem o estatuto de embaixada – emitiu uma longa declaração explicando aos marroquinos que "o Hamas é totalmente responsável pelo ataque criminoso". Em 48 horas, a direcção do PJD reagiu de novo e, desta vez, exigiu que as autoridades marroquinas o "declarassem persona non grata". (…).
«Um membro da família real, Moulay Hicham, descrito como o "príncipe rebelde" e residente nos EUA, demarcou-se da posição oficial marroquina. "Resistir a um exército de ocupação é um direito reconhecido, mas matar e raptar pessoas inocentes, independentemente da sua nacionalidade, é (...) moralmente condenável", escreveu em várias redes sociais. As suas palavras, que recordam o "direito de resistência", tiveram grande eco em Marrocos.»
A France-Presse descreve assim a manifestação de 15 de Outubro em Rabat:
«Multidões que se estendiam por dois quilómetros percorreram a capital Rabat na manifestação de massas convocada por uma aliança de partidos islamistas e uma coligação de esquerda. (…).
«"Abaixo o sionismo", diziam alguns cartazes, enquanto outros declaravam que "o Hamas é a Palestina".
«Alguns manifestantes pisaram bandeiras israelitas e americanas, denunciando o apoio de Washington a Israel. Outros cartazes denunciavam "o terrorismo independentemente dos seus autores".
«O protesto, que foi pontuado por orações contra "a tirania e a opressão", foi o maior em Marrocos desde que foram normalizadas as relações com Israel em Dezembro de 2020, num acordo patrocinado pelos EUA.»

 (1) «Da violência», in Poemas, tradução Arnaldo Saraiva, Editorial Presença, p. 71.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário