quarta-feira, 4 de outubro de 2023

ONU: A DIPLOMACIA EM ACÇÃO

(Boletim nº 125 - Outubro 2023)

Numa visita mantida em segredo pelas Nações Unidas (imposição marroquina!), o Enviado Pessoal do Secretário-geral da ONU, Staffan de Mistura, conseguiu finalmente visitar no dia 4 de Setembro passado o território ocupado do Sahara Ocidental, no âmbito de um périplo regional de conversações.

Encontro em Nova Iorque
Nos últimos dois anos De Mistura efectuou várias visitas à região para consulta às partes interessadas, não tendo sido nunca autorizado por Marrocos a visitar o território ocupado. Antes de ir ao Sahara Ocidental, De Mistura esteve em Rabat e reuniu-se somente com o embaixador marroquino junto da ONU, Omar Hilale, sinal da frieza que reina entre as partes.
No dia 4, visitou El Aauin tendo as forças ocupantes de Marrocos reprimido uma manifestação pacífica organizada por associações saharauis de Direitos Humanos que exigiam o direito à autodeterminação e à independência. Um forte contingente militar foi mobilizado para isolar a cidade, tornando-a «literalmente sitiada para impedir qualquer manifestação», tendo os manifestantes sido espancados e insultados e perseguidos pelas artérias da cidade. Ficaram feridas 11 pessoas e não se apurou o número exacto de detidos. Estas ocorrências, certamente, não terão sido ignoradas por De Mistura e terão ajudado a tomar conhecimento in loco da repressão que se vive no território, bem como da situação respeitante aos presos políticos saharauis e aos militantes de Direitos Humanos.
O factor de mudança para a concretização desta visita foi certamente a pressão americana. Marrocos «foi obrigado e não teve outra escolha senão deixar De Mistura prosseguir a sua missão para fazer sair o conflito do impasse em que se encontra», segundo a agência EFE. Após, em 2020, Donald Trump ter reconhecido a soberania de Marrocos sobre o Sahara Ocidental em troca da normalização das relações israelo-marroquinas, a administração Biden voltou à posição tradicional americana, reiterada pelo Secretário de Estado Antony Blinken, de apoiar os esforços da ONU na procura de uma solução para o conflito.

Apoio americano a De Mistura

O apoio dos Estados Unidos a De Mistura visará criar um ambiente favorável ao relançamento do processo negocial pela ONU, a fim de retirá-lo do imobilismo em que se encontra. As Nações Unidas declararam que estão empenhadas em «fazer avançar de forma construtiva o processo político sobre o Sahara Ocidental», sublinhando que o Enviado Pessoal iria ter «reuniões com todas as partes interessadas antes da publicação do relatório do SG para o Conselho de Segurança (CS) em Outubro».
Neste sentido, Joshua Harris, Sub-secretário de Estado adjunto para o Norte de África, visitou, a 2 de Setembro, os acampamentos de refugiados saharauis em Tindouf (Argélia) onde manteve conversações com as autoridades saharauis, culminando com um encontro com o Secretário-geral da Frente POLISARIO, Brahim Ghali. Segundo o já citado jornal El Watan de 4 de Setembro, Harris afirmou que foi uma «oportunidade para ver em primeira mão a situação muito grave com que se confronta o povo do Sahara Ocidental», assegurando que o objectivo da sua visita era «transmitir a sinceridade do governo [dos EUA] no seu apoio ao processo político das Nações Unidas, visando uma solução digna para o Sahara Ocidental». De igual forma, Harris declarou o «apoio total» dos Estados Unidos aos esforços de De Mistura, sublinhando ao mesmo tempo a «necessidade urgente de acção».
Brahim Ghali transmitiu ao interlocutor norte-americano que o apoio real e prático aos esforços do Enviado Pessoal se materializaria através da criação de «condições necessárias para que a Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO) possa implementar a missão que lhe foi atribuída pelo CS, de acordo com o Plano de Resolução da ONU e da OUA [agora União Africana] de 1991». O dirigente saharaui afirmou ainda que o seu povo não é a favor da guerra, mas que permanece firmemente comprometido com os seus direitos inalienáveis e com as suas aspirações nacionais inegociáveis de liberdade e independência. Defendê-las-à a qualquer preço, utilizando todos os meios legítimos garantidos pela Carta das Nações Unidas e pela Lei Constitutiva da União Africana (UA).
No dia seguinte, Harris reuniu-se em Argel com o seu homólogo do Ministério dos Negócios Estrangeiros argelino, sem que se tenha tornado pública informação deste encontro.
Após passar por Tindouf e Argel, o Sub-secretário de Estado viajou até Rabat, onde se encontrou com as autoridades locais. A embaixada americana em Rabat emitiu então um comunicado afirmando que Washington considera o plano de autonomia «como uma via possível para satisfazer as aspirações do povo do Sahara Ocidental». Por outras palavras, tornou público que é um plano possível mas não a única opção em cima da mesa.

Brahim Ghali em Nova Iorque

Posteriormente, a 11 de Setembro, nas Nações Unidas, ocorreram conversações envolvendo António Guterres, De Mistura e Brahim Ghali. Neste encontro, Ghali aproveitou para recordar as circunstâncias que levaram à aprovação pelas duas partes no conflito (a Frente POLISARIO e Marrocos) do Plano de Resolução da ONU e da OUA de 1991, que o CS aprovou por unanimidade, com o objectivo de permitir ao povo saharaui exercer o seu direito à autodeterminação e independência, à semelhança de todos os povos e países colonizados.
Depois de se referir aos obstáculos criados pelo Estado ocupante para impedir a realização de um referendo de autodeterminação, o Secretário-geral da FPOLISARIO relevou a rejeição saharaui relativamente ao silêncio da ONU sobre as práticas desenvolvidas por Marrocos no território ocupado, sob o olhar da MINURSO. Também apelou ao SG da ONU e ao CS para que responsabilizem Marrocos pela violação do cessar-fogo de 13 de Novembro de 2020, numa escalada perigosa que mina os esforços das Nações Unidas, ameaçando a segurança e a estabilidade da região.
Ghali sublinhou ainda que o povo saharaui tem feito múltiplas concessões para que o processo de paz possa avançar de forma a alcançar o seu direito inalienável, inegociável e imprescritível ao exercício da autodeterminação e independência, recordando neste contexto o compromisso da parte saharaui de cooperar com os esforços do SG e do seu Enviado Pessoal para o Sahara Ocidental.
Este encontro afectou visivelmente o regime de Rabat, como foi visível no comportamento da sua diplomacia. Para mostrar a sua “desvalorização” da função das Nações Unidas, Marrocos fez-se representar na sua 78ª Assembleia Geral ao nível mais baixo, entregando essa responsabilidade ao seu embaixador junto da ONU, Omar Hilale. Que se inscreveu como o último da lista de oradores que subiram à tribuna para proferir o discurso oficial do seu país.

A Argélia também intervém

Entretanto a 9 de Agosto passado, em Washington, Blinken, em reunião com o Ministro dos Negócios Estrangeiros argelino, Ahmed Attaf, assegurou o apoio dos Estados Unidos aos esforços da ONU para o Sahara Ocidental, declaração que releva a importância que os EUA conferem à posição argelina neste dossier, bem como à grande importância geo-estratégica da Argélia no Norte de África, tão afectado por eventos de instabilidade.
A 13 de Setembro, Ahmed Attaf recebeu De Mistura em Argel, para mais uma visita de trabalho, no âmbito do périplo que o Enviado Pessoal do SG efectuou na região. De Mistura deslocou-se depois à Mauritânia onde se reuniu com o Presidente Mohamed Ghazouani, país observador neste processo conduzido pela ONU.
Após esta ronda de conversações, espera-se que os esforços dos vários intervenientes conduzam finalmente a uma solução justa e duradoura para este conflito, a qual, em conformidade com o Direito Internacional, responda às aspirações do povo saharaui.

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