terça-feira, 3 de outubro de 2023

MARROCOS: «A TERRA TREME»

(Boletim nº 125 - Outubro 2023)

A África ocidental está a passar por uma onda de tensões e conflitos que penalizam as suas populações. Crispações internas agravadas pela crise sistémica que estamos a viver. Marrocos, numa situação particular - enfrenta uma guerra e a luta diplomática contra a ocupação do Sahara Ocidental - também não escapa a este desafio.

Tempos que já lá vão (Jun. 2017) ...
A começar pelos abalos por que estão a passar os países herdeiros do colonialismo francês que tem vindo a ser posto em causa pela vaga de golpes de Estado militar que varreram nos últimos tempos as antigas colónias francesas em África : «71% dos países africanos onde ocorreram os 67 golpes militares das últimas décadas são antigas colónias francesas.».
O Presidente Macron reconheceu que o colonialismo foi um erro profundo. Na conferência de imprensa, ao lado do Presidente da Costa do Marfim, «o chefe de Estado francês disse que "demasiadas vezes", a França é percebida como tendo "um olhar de hegemonia" e de "colonialismo ridículo", que foi um erro profundo, uma "falta da República" francesa.»
Como salientou Jorge Saponaro,
«O golpe de Estado de finais de Agosto de 2023 [no Gabão] deixou claro que a sociedade exige uma mudança, tendo em conta a corrupção que atingiu níveis extremos. Possivelmente, os interesses ligados à França e, sobretudo, às empresas que operam em sectores-chave ligados à exploração mineira, fecharam os olhos e viram o golpe como um mal menor, para evitar que o Gabão seguisse o caminho de outros países que decidiram abandonar os seus laços com o Ocidente.»
Estas disrupções militares estão a ter repercussões em toda a região da África ocidental e Marrocos não lhes escapa, sinal de uma crescente interdependência dos países que a constituem. Como nota Ignacio Cembrero,
«O derrube de Ali Bongo [presidente do Gabão] é também um revés para Marrocos, cujo rei Mohammed VI mantinha uma relação estreita com o presidente gabonês. Este último sofreu um acidente cardiovascular e optou por passar grande parte da sua convalescença em Rabat, em 2018. "O rei é meu irmão, nosso irmão, porque era muito dedicado a mim", recordou Bongo em Abril. Foi a única personalidade estrangeira que conseguiu encontrar-se com o monarca alauíta nos últimos 32 meses. O soberano tem também uma residência em Pointe-Denis, muito perto de Libreville, onde passa frequentemente longas férias. Em Rabat, especula-se que o antigo presidente poderá exilar-se em Marrocos.
No entanto, o novo homem forte do Gabão não parece constituir uma ameaça para os investimentos marroquinos no país, estimados em pelo menos 600 milhões de euros, sobretudo no sector bancário, que se aproximam dos investimentos franceses (750 milhões de euros), centrados no sector petrolífero. O general Oligui Nguema [que preside ao governo de transição] estudou na Academia Militar Real de Méknes [Marrocos] e anos mais tarde regressou a Marrocos como adido militar na embaixada do seu país.»
Frédéric Lejeal, no semanário Le Point, escreve : a França «paga as consequências de 70 anos de intervencionismo em África, de ingerência política, por vezes para instalar ou preservar regimes autocráticos de acordo com os seus interesses.»

Férias estragadas

As férias de Mohamed VI têm sido passadas sobretudo em França e no Gabão. Mas segundo alguns jornalistas, a relação do general Oligui Nguema com o rei marroquino não é tão amistosa como a do deposto Ali Bongo. Lembram ainda que no ano passado, durante os seus quatro meses de estada em França, ele nunca foi recebido por Macron, o que é interpretado como resultado do mal-estar entre os dois governos devido à espionagem pelos serviços secretos de Rabat dos telemóveis do Presidente francês e dos seus ministros pelo programa israelita Pegasus. Lembram também que desde Janeiro que Marrocos não tem embaixador acreditado em Paris.
Estava, pois, o rei de férias em França quando no dia 8 de Setembro Marrocos foi abalado por um terramoto com epicentro em Ighil, a cerca de 60 kms a sudoeste de Marraquexe, com uma amplitude de 6,8 e que provocou milhares de mortos e de feridos e avultados prejuízos materiais.
O regime marroquino mostrou-se muito selectivo na ajuda e apoio internacional, só a tendo aceitado inicialmente de quatro Estados: Reino Unido, Espanha, Catar e Emiratos Árabes Unidos. O que levantou um coro de suposições sobre as razões de tal atitude.
Mas apesar das equipas de Espanha terem sido autorizadas a entregar ajuda e a prestar auxílio, a recepção que tiveram da parte das autoridades não foi aquela que esperavam. Segundo conta a jornalista Triana Abad,
«A ONGD [Organização Não-Governamental de Desenvolvimento] Equipos de Respuesta Inmediata en Catástrofes de Andalucía, que se deslocou a Marrocos nestes dias para colaborar com a ajuda humanitária que foi solicitada ao país após as consequências do terramoto, destaca o tratamento vexatório sofrido na fronteira de Tânger para passar com os veículos e poder descarregar as roupas e materiais que estão a ser doados à população.
De acordo com um dos membros da ONG, depois do trabalho efectuado e dos procedimentos burocráticos que foram levados a cabo para poder colaborar, tudo feito e gerido em conjunto com uma associação marroquina que solicitou a ajuda, a situação na fronteira não só foi caótica em termos de informação, como também, o tratamento demonstrado de forma depreciativa para com todos aqueles que estavam ali à espera de uma resposta para entrar no país, foi contínuo.
Mais de 2.000 quilos de roupa e tendas, para servir de tecto às famílias afectadas, acabaram por ser rejeitados após mais de sete horas de espera em Tânger por uma resposta que permitisse a passagem da fronteira, acabando com a consequente recusa dos responsáveis. Uma recusa que terminou com a devolução dos bens ao seu destino e com a frustração e indignação dos trabalhadores humanitários, que viram falhar a sua tentativa de ajudar as famílias. (…).
E não foram apenas os membros [desta associação] que deram o alerta para esta situação. (…). A recusa de introduzir os donativos no país é justificada com o facto de "se tratar de roupa usada". Aparentemente, as instruções dos funcionários fronteiriços para a deixar passar na fronteira são claras: a roupa deve ser nova e até ter etiquetas que o comprovem.»
Escreve Intissar Fakir, directora do Programa sobre o Norte de África e o Sahel no Middle East Institute:
«O terramoto (...) pôs em evidência dois dos problemas persistentes do país: a disparidade de desenvolvimento entre as zonas rurais e urbanas e o estrangulamento inerente a um poderoso e pesado processo de tomada de decisões. (…).
A subalternização das zonas empobrecidas e negligenciadas resulta de uma opção política mantida ao longo de décadas. Com ou sem razão, o governo marroquino optou por colocar a maior parte dos seus recursos em zonas e comunidades consideradas como as de maior retorno económico – nomeadamente, as zonas costeiras com grande concentração populacional. Assim, o desenvolvimento das infra-estruturas centrou-se na ligação dos núcleos de produção elevada a zonas que facilitam o acesso ao transporte marítimo e rodoviário, permitindo uma maior integração da indústria marroquina nas cadeias de valor globais ou regionais. O Alto Atlas está a um mundo de distância desta estratégia económica. (…).
Outra questão importante que já suscitou a ira local e uma crescente preocupação internacional foi o silêncio e a lentidão do governo na resposta ao terramoto. Para uma crise que exige uma acção rápida e decisiva, o governo foi apanhado de surpresa – uma consequência das características estruturais do sistema político marroquino. (...). Todos têm de se submeter ao rei e aguardar as suas directivas. Esta estrutura de poder fortemente centralizada não só está a criar um estrangulamento nos esforços de socorro e salvamento, como também é agravada pela tradição de um controlo apertado da imagem do rei e da família real. (…).»
Face às críticas de que foi alvo o comportamento das autoridades marroquinas — e particularmente do rei – o regime deu instruções ao seu corpo diplomático para que desenvolvesse acções no sentido de respaldar a sua imagem. Foi o caso de Espanha onde a embaixadora Karima Benyaich apareceu na comunicação social a garantir:
«apesar de estar fora do país, Mohamed VI esteve presente desde o primeiro momento e criou um fundo de solidariedade. "Foi o primeiro a oferecer 100 milhões de euros dos seus próprios fundos", acrescenta, ao mesmo tempo que é categórica perante as críticas ao monarca pela sua demora em chegar ao "ponto zero".
"Nestas circunstâncias, o mais importante é a acção, não a fotografia", defende Benyaich, que lamenta a informação que pode ter posto em causa a credibilidade da Coroa e a convivência dos marroquinos que vivem em Espanha.»
A embaixadora é filha de mãe espanhola, tendo renunciado provisoriamente a essa nacionalidade para poder assumir em 2018 as funções em Madrid.
E o embaixador de Marrocos em Lisboa seguiu-lhe as pisadas no dia seguinte, com uma entrevista ao Diário de Notícias, onde procurou enaltecer o papel do rei.
«No plano delineado com a ajuda de Mohamed VI, prosseguiu, tem de se ter em conta também as "especificidades locais", os "hábitos da cultura", e, acima de tudo os muitos órfãos deixados pela catástrofe.
"Há também o impulso de solidariedade, que vai continuar, porque há um sentimento que tem sido precisamente o de atender a todos e cuidar de órfãos. Sua Majestade Mohamed VI está atento a esses órfãos e este é um gesto simbólico muito forte", acrescentou.»
Atitude idêntica teve também o Sindicato Nacional da Imprensa de Marrocos, uma organização serventuária do regime, que «ficou particularmente irritada com a primeira página do semanário satírico Charlie Hebdo, que sublinhou a incoerência de enviar donativos para o reino presidido por uma das maiores fortunas do mundo. "Enviem os vossos donativos a Mohammed VI, um dos monarcas mais ricos do planeta, com 6 mil milhões de dólares", titulava o semanário, com uma ilustração da figura inflacionada do rei, coberto de notas e esmagando os seus súbditos.»
O "boneco" que irritou o Palácio
No Sahara Ocidental, igualmente atingido pelo sismo de forma moderada, o Governo saharaui, em comunicado emitido pelo Ministério da Informação da República Saharaui, exprimiu no dia 10 «ao fraterno povo marroquino, nestas difíceis circunstâncias, o seu apoio e as suas orações pelos milhares de vítimas do devastador terramoto.»
Mas nem os golpes militares nem o terramoto levaram o regime marroquino a rever a sua práxis. Segundo testemunho de Stéphane Aubouard, chefe de redacção da revista Marianne, no dia 20 de Setembro, «De manhã cedo, uma dúzia de agentes da polícia marroquina veio prender os nossos correspondentes especiais Quentin Müller e Thérèse Di Campo no seu hotel em Casablanca, antes de os enviar manu militari no primeiro avião para Paris.» Os jornalistas tinham ido a Marrocos para «informar sobre a forma como o povo marroquino encara o rei Mohammed VI, que tem sido particularmente discreto desde o terramoto (…). No momento em que escrevemos, Marianne continua a aguardar explicações das autoridades marroquinas sobre as razões que levaram à expulsão do nosso pessoal.»
Quentin Muller partilhou nas redes sociais «que será publicada em breve uma longa investigação sobre Mohammed VI, a respectiva Corte e serviços de segurança com base nas "informações exclusivas" que recolheu e que "retratam um regime cada vez mais duro, assustado com qualquer impulso de contestação local".»
Ficamos a aguardar.

 

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