sexta-feira, 4 de agosto de 2023

MARROCOS-ISRAEL: «O FACTO CONSUMADO NÃO DETERMINA A HISTÓRIA»

(Boletim nº 123 - Agosto 2023)

O Estado de Israel tem vindo ter um papel crescentemente interventivo na região do Sahel graças à sua aliança com o regime marroquino promovida pela ex-administração Trump e mantida pela administração Biden. O reconhecimento da ocupação marroquina do Sahara Ocidental é mais um passo.

A força contra o direito internacional

Esta aliança abrange um largo leque de áreas, desde a segurança às actividades económico-financeiras. Um exemplo desta última é a exploração dos recursos naturais do Sahara Ocidental por empresas israelitas. Em 3 de Junho a Frente POLISARIO denunciou a assinatura de um contrato entre a empresa israelita NewMed Energy e as autoridades marroquinas de ocupação «para a exploração e produção de gás natural» nas águas territoriais do Sahara Ocidental, frente à localidade de Bojador, violando as decisões dos tribunais da União Europeia (UE), nomeadamente a sentença de 29 de Setembro de 2021 que «confirmou os direitos de soberania do povo saharaui sobre as águas do Sahara Ocidental e os seus recursos naturais».
O jornalista Saïd Boucetta cita a MintPress News (MPN) que além da NewMed Energy, refere a Ratio Petroleum, o Selina Group e a Halman-Aldubi Technologies, como agentes activos no saque das riquezas do Sahara Ocidental. Além disso, segundo Boucetta, a MPN «confirmou a compra, em 2014, de drones pelo exército de ocupação marroquino à entidade sionista. Estas armas sofisticadas, entregues em 2020, são utilizadas nos bombardeamentos do exército marroquino contra o Exército de Libertação do Sahara Ocidental. (…) afirmando que, em 2021 e 2022, Marrocos terá comprado um verdadeiro arsenal a Israel. (…). O sítio noticioso identificou "drones utilizados para a vigilância e a recolha de informações no Sahara Ocidental, drones kamikaze e o sistema de intercepção de mísseis e anti-aéreos Barak MX", acrescentando que a aliança militar já não é secreta.»
Não surpreende assim que as forças militares israelitas tenham participado, pela primeira vez, na African Lion, as maiores manobras militares no continente africano, cuja 19ª edição teve lugar na região de Tan Tan no sul de Marrocos. Organizada pelos EUA através da OTAN e para a qual foram convidados 18 países não-membros da aliança.
Neste quadro, o reconhecimento pelo Estado de Israel da soberania de Rabat sobre o Sahara Ocidental anunciado a 17 de Julho surge como “natural”. Por todo o trabalho de preparação desenvolvido pelas administrações dos EUA, de que os acordos de Abraham são a expressão diplomática e mediática, e pelas ilegalidades governativas que os dois regimes desenvolveram e praticam há longo tempo: as ocupações da Palestina e do Sahara Ocidental, a violação do direito internacional que tais ocupações representam, e as violações dos direitos humanos com que o fazem.
Como relata DemocracyNow: «Em declarações ao Middle East Eye, o activista Mohammed Elbaikam, baseado no Sahara Ocidental, afirmou que "Marrocos utiliza os mesmos instrumentos e métodos que Israel para reprimir os palestinianos, ocupando-lhes as suas terras e expulsando-os, roubando-lhes as suas riquezas e controlando-os".»
Esta relação tem contribuído para envenenar ainda mais a unidade africana como, aliás, ficou bem patente na 36ª Cimeira da União Africana (UA). Em causa estava a resolução, em Julho de 2021, do Presidente da Comissão da UA, o chadiano Moussa Faki Mahamat, que concedeu a Israel o estatuto de observador na organização pan-africana sem consultar os outros Estados, o que provocou um clima de tensão e mal-estar entre os Estados-membro, obrigando a adiar a decisão final para a Cimeira seguinte, em 2022. Mas aqui voltou a manifestar-se uma forte oposição, em que «24 países manifestaram publicamente a sua recusa em ver Israel aderir à organização como observador», entre os quais «o Senegal, os Camarões, o Congo, a Nigéria, o Ruanda».
As Nações Unidas reagiram prudentemente a este reconhecimento israelita. «A nossa posição sobre a questão do Sahara Ocidental mantém-se inalterada» comentou Stephen Dujarric, o porta-voz do Secretário-geral, em conferência de imprensa.
Os EUA solidarizaram-se com a iniciativa: «"O restabelecimento das relações entre Marrocos e Israel foi inequivocamente positivo para a região. E estamos ansiosos por trabalhar com estes parceiros próximos para expandir a paz", disse o porta-voz do Departamento de Estado, Matthew Miller, numa conferência de imprensa.»
«Miller evitou comentar a mudança de Israel no Sahara Ocidental e limitou-se a lembrar que os Estados Unidos reconhecem a soberania de Marrocos sobre o território desde 2020, quando Donald Trump ocupava a presidência. "Os Estados Unidos deram esse passo em Dezembro de 2020 e isso não mudou", observou.»
Como comentou Santiago González Vallejo, membro do Comité de Solidaridad con la Causa Árabe, sobre as relações entre a questão saharaui e a questão palestiniana:
«(...). Os Estados árabes do Médio Oriente apoiaram, em geral, Marrocos na sua anexação do Sahara ou, pelo menos, não quiseram envolver-se na disputa argelino-marroquina, o que facilitou a política marroquina. Além disso, Marrocos e os seus vários reis apoiaram a OLP e afirmaram ser defensores da Jerusalém palestiniana, com dádivas regulares.»
«A deriva do apoio formal de Marrocos à causa palestiniana era justificado pelo facto de muitas organizações civis pró-palestinianas não serem muito activas, se é que o eram, com a causa saharaui, e por as próprias organizações palestinianas não quererem reconhecer o paralelo entre a ocupação israelita e a ocupação marroquina.»
«Agora, a OLP e a própria Autoridade Palestiniana, institucionalmente débil, estão confrontadas com o dilema entre aceitar a retórica e as dádivas marroquinas – e aceitar um facto consumado, conformar-se que outros sofram o mesmo que eles próprios têm sofrido – ou defender o direito internacional em toda a parte. O mesmo se aplicando à frágil sociedade civil marroquina que defende os direitos humanos e a democratização de Marrocos.»
«A sociedade civil europeia já decidiu isto antes. Há alguns meses, foi lançada uma Iniciativa Cidadã Europeia que recolheu 277.000 assinaturas, das quais cerca de 24.000 de cidadãs e cidadãos de Espanha, apelando à proibição do comércio entre a UE e os colonatos nos Territórios Ocupados. Em abstracto. Não se referia a palestinianos ou saharauis. Se a ocupação é ilegal, como diz o direito internacional, então o comércio com os territórios sob ocupação deveria ser ilegal. (…).»
«Os surtos de violência armada e de resistência civil continuarão. O sofrimento será longo. A lei está com uns, a força, por enquanto, com outros. O mundo colonial e pós-colonial está repleto de múltiplos exemplos. Não há dilema. Temos de apoiar o direito e a coerência, o lado bom da justiça e da história, face ao cinismo e aos dois pesos e duas medidas. O facto consumado não determina a história. É essa a grandeza da resistência.»


 


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