terça-feira, 4 de julho de 2023

ESPANHA: «A PRESTAR UM MAU SERVIÇO AO POVO MARROQUINO»

(Boletim nº 122 - Julho 2023)

O processo de descolonização do Sahara Ocidental está a ocupar um lugar de destaque no debate eleitoral que precede as legislativas do próximo dia 23 de Julho em Espanha. Particularmente no Movimiento Sumar.

A "marroquinidade" da ditadura(Victor Lerena/EFE)

Desde que em Março do ano passado o presidente do governo do PSOE, Pedro Sánchez, alterou a sua posição relativamente à sua antiga colónia, passando a promover a "solução marroquina" da autonomia, a questão ganhou uma maior relevância na luta política e social no país.
Para estas eleições Yolanda Díaz, uma das vice-presidente do governo de Sánchez e sua Ministra do Trabalho, empenhou-se na construção de uma plataforma que reunisse o maior número de sensibilidades políticas, apostadas na modernização da sociedade espanhola. Que adoptou, precisamente, a designação de Movimiento Sumar: «O objectivo fundamental do movimento Sumar é ser a casa grande da democracia. Somos um movimento europeísta, pluralista, com uma vontade firme de enfrentar o desafio da emergência climática e de avançar para uma sociedade mais livre, mais feminista e mais igualitária», explicam fontes da plataforma. Que acrescentam: «O nosso objectivo é claro: fazer de Yolanda Díaz a primeira mulher presidente do governo espanhol e garantir uma maioria progressista que nos permita defender os direitos que conquistámos e continuar a avançar».
Esta procura de alargamento da base social de apoio levou ao convite, por parte de Díaz, a Agustín Santos Maraver, até agora embaixador de Espanha junto das Nações Unidas, para figurar em segundo lugar na lista por Madrid. Personalidade controversa, esta escolha causou mal-estar no movimento de solidariedade com o povo saharaui, recordado que estava do seu comportamento no caso da greve de fome de Aminatou Haidar em 2009. No âmbito da campanha deu uma entrevista à agência EFE que foi "óleo sobre as chamas". Aí recusou utilizar a palavra "ditadura" para qualificar o regime marroquino — o que Yolanda Díaz fez — considerando-o uma «co-soberania entre rei e povo» e um «sócio estratégico» com o qual a Espanha tem «de desenvolver um espaço de co-prosperidade».
Quanto à realização de uma consulta ao povo saharauí para este decidir do seu futuro considerou-a pouco realista, invocando para tal que o censo de 1974 – realizado pelas autoridades coloniais espanholas – está desactualizado, esquecendo que a ONU elaborou na década de 1990 um caderno eleitoral rigoroso com vista à realização do referendo acordado entre as partes (Frente POLISARIO e Marrocos) em 1991, passível de ser actualizado.
Em número 3 da candidatura em Madrid aparece a jovem engenheira informática saharaui Tesh Sidi, de que já tivemos aqui a oportunidade de apresentar uma entrevista por ela dada em Dezembro de 2022. Agora voltou a ser entrevistada pelo jornal El Independiente.
Candidata a deputada (foto El Independiente)
«P - A sua chegada à Câmara dos Deputados fará de si a primeira representante saharaui desde os tempos das Cortes franquistas …
«R - Exacto. O povo saharauí não tem representantes desde a ditadura de Francisco Franco, durante estes 50 anos de ocupação por Marrocos e de ausência de descolonização por parte de Espanha. Seria um marco histórico. Um dos marcos é o facto de Yolanda Díaz ser a primeira mulher presidente em Espanha, mas também o facto de eu ser a primeira deputada saharaui a regressar ao Congresso dos Deputados para exigir responsabilidade e memória, o que é extremamente necessário.
«P - Porque se juntou a Sumar?
«R - Por muitas razões. Uma delas é o apoio inalienável à causa saharaui. Também por essa visão de futuro, essa visão verde. Penso que uma política baseada na visão de futuro, verde e feminista de Más Madrid, o partido que represento, deve estar muito presente. Posso contribuir não só com o meu lado técnico, mas também com as experiências que tive como saharaui, como migrante e como lutadora pelos direitos humanos.
«P - Uma legislatura marcada pela histórica mudança de posição sobre o Sahara Ocidental, assinada por um governo de esquerda, chega ao fim de forma precipitada. São muitos os saharauis desiludidos …
«R - É legítimo e normal que o estejam. O povo saharauí foi muito enganado, está frustrado. Nunca houve uma vontade política; há uma vontade de solidariedade, mas a solidariedade, mesmo a solidariedade política, é inútil. No conflito saharaui, temos de assumir a nossa responsabilidade, temos de o abordar com coragem, a partir desta visão obviamente cosmopolita dos direitos humanos. No fim de contas, se aceitarmos os direitos humanos para alguns povos e não para outros, caímos na mesma dinâmica.
«Só peço um voto de confiança. Sou uma pessoa que vê a política e os desafios como uma corrida de fundo. Pela primeira vez na história vamos estar dentro de um governo numa democracia e isso pode abrir um precedente. Podemos aprender muito com esta fase. Os meus compatriotas dizem-me para não esquecer o meu povo. Nasci a fazer política para o povo saharauí e continuarei a fazê-lo.
«P - O que vimos no último ano e meio é que a Unidas Podemos rejeitou publicamente esta mudança, mas manteve-se no Executivo. Não tem medo de ser desiludida pela política?
«R - Não lhe chamaria medo. Encaro-o como um desafio. Tal como acontece com um engenheiro informático. Para mim, é um acto de responsabilidade. Estarei sempre ao lado das bases, do povo saharauí. Escutá-los-ei, estarei muito próximo deles, deixarei que me guiem e me ajudem. Sem eles no exterior, também não posso fazer muito no interior. É possível mudar a agenda de um país graças aos movimentos de base. Não tenho medo porque sei o que é a frustração. Nunca pensei estar na política institucional e pensei que seria o trabalho dos meus filhos, mas é um desafio.
«P – Com estes antecedentes, porque é que a posição de Sumar seria diferente num hipotético executivo de coligação?
«R - O Sumar é uma coligação de muitos partidos progressistas e poderá fazer uma forte pressão. Para além disso, há muitas pessoas em Sumar que acreditam e são fortes aliados do povo saharaui e apoiam a sua justa causa.
«P - Yolanda Díaz é sensível à causa saharaui?
«R - É uma mulher muito inteligente e muito empenhada na defesa dos direitos humanos. Vi como fala do seu pai e da sua filha. É aquilo a que chamo enraizamento geracional, a necessidade de transmitir valores. Ela deixou bem claro: Marrocos é uma ditadura. O povo saharauí tem o legítimo direito de recuperar a sua terra e tenho a certeza de que ela estará de acordo com isso. É verdade que um governo de coligação é complexo, as instituições são complexas e eu estou a falar de fora, mas sei que o seu compromisso com o povo saharauí é inalienável e o de Sumar também. Sei que a diplomacia é complexa.
«P - O que deve a Espanha fazer no conflito saharaui?
«R - Dirigir o processo de descolonização e não ser um actor do lado de Marrocos, mas um actor do lado dos direitos fundamentais e do direito internacional. Este é o único caminho a seguir. Regressar às posições e às negociações da ONU.
«P - Mas a percepção que se tem é que Marrocos consegue sempre torcer o braço aos políticos espanhóis …
«R - Marrocos, graças também à pilhagem dos recursos naturais do povo saharauí, tem muito dinheiro e influência na Europa e, nos últimos anos, sempre teve o apoio dos governos e políticos franceses. Tem muitos tentáculos, mas espero que, graças à digitalização, tenhamos cada vez mais transparência e consigamos atar as pontas soltas mais rapidamente. Para mim, o lobby marroquino tem os dias contados graças a esta digitalização. Mas é verdade que é inexplicável porque é que a Espanha é tão refém de Marrocos e quando é que deixámos que isso acontecesse. Todos os presidentes de governo socialistas se curvaram perante Marrocos. Não tenho qualquer explicação para este facto. Estou à espera do Pegasus para ver o que nos dizem estes dados. É um mistério porque é que a Espanha, um país de referência em direitos humanos e feminismo, se verga desta forma. Vimos Pedro Sánchez desenterrar um ditador em Espanha e visitar o túmulo do ditador Hassan II. Para mim, que venho logicamente de uma formação de esquerda progressista, não o compreendo. Muitos socialistas também se colocarão a mesma questão. Daí a importância de separar Sánchez da militância, que tem os seus valores e a sua solidariedade. Foram anos de concessões a Marrocos que precisam de ser reduzidas à sua dimensão.
«P - Como avalia a relação de Espanha com Marrocos?
«R - Penso que ultrapassámos todos os limites das concessões. Sobretudo na política externa, a Espanha está refém de Marrocos. É verdade que a Espanha também se complica porque precisa do apoio dos Estados Unidos para certas decisões, e Marrocos usa os seus próprios cidadãos e o povo africano para nos chantagear. A migração é uma questão muito sensível. O povo saharaui e a POLISARIO não dizem não às relações de boa vizinhança com Marrocos. É óbvio que devemos ter uma boa relação com Marrocos, mas o massacre de Melilla e os massacres contínuos ultrapassaram as concessões. No fundo, somos reféns de Marrocos. Não o compreendo e espero que possamos inverter esta situação. Penso que os direitos humanos devem ser promovidos acima de tudo. Em Marrocos, ao promovermos uma ditadura, estamos a prestar um mau serviço ao povo marroquino. (…).
«P - A escolha de Agustín Santos como número dois de Sumar ofendeu muitos saharauis, que recordaram a sua intervenção como diplomata no caso Aminetou Haidar …
«R - Ainda não tive oportunidade de falar com ele, mas é legítimo que o povo saharauí sinta desconfiança. As pessoas não imaginam a dimensão dos danos que a decisão de Pedro Sánchez causou ao povo saharauí e a todas as famílias socialistas que acolhem crianças saharauís. O Agustín é um diplomata e todas as decisões que teve de tomar foram obviamente em nome do seu país. O Sumar tem a sua posição sobre a questão do Sahara. Mesmo os documentos publicados há alguns meses sobre questões internacionais mostram o apoio à autodeterminação e à posição da legalidade internacional. No que acredito é o que podemos fazer a partir de agora através do debate interno, falando com ele e aprendendo também com ele.
«P - Deverá Marrocos estar preocupado com a sua chegada ao Congresso?
«R - Penso que sim. É algo de novo para Marrocos, embora seja necessário fazer uma distinção entre a sociedade civil e o governo. Muitos migrantes marroquinos identificam-se comigo, independentemente do conflito. Todos aqueles que não respeitam os direitos humanos deveriam estar preocupados. (…).
«P – Em Agosto, quando o Congresso estiver constituído, o que vai mudar na Câmara com a Tesh lá dentro?
«R - Espero trazer humor, muito pensamento técnico, ágil e decisivo para os problemas, porque ser migrante e saharaui significa nascer a sobreviver, nascer a ser decisivo, nascer a pensar no futuro, no próximo desafio. E isso complementa-se muito bem com o meu lado técnico. Todos os dias sou uma solucionadora de problemas. (…).»
A entrevista de Santos Maraver à agência EFE obrigou a um esclarecimento por parte do porta-voz do Sumar, Ernest Urtasun, ao assegurar que o programa eleitoral daquela plataforma incluirá a proposta de realização de um referendo de autodeterminação para o Sahara Ocidental, «em conformidade com o mandato das Nações Unidas». No dia seguinte, questionado no programa Onda Cero sobre as contradições existentes entre as declarações de Maraver e as de Tesh Sidi, Urtasun reconheceu que «Marrocos não é obviamente uma democracia» porque não existe a separação de poderes. E insistiu que a posição de Sumar é a defesa da livre autodeterminação do Sahara Ocidental, no pleno respeito das resoluções da ONU, e uma política em relação a Marrocos de defesa dos direitos humanos, como em qualquer parte do mundo.


 


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