terça-feira, 4 de julho de 2023

COOPERAÇÃO SECURITÁRIA PORTUGAL – MARROCOS: O QUE ESPERAR?

(Boletim nº 122 - Julho 2023)

No passado dia 22 de Junho o sítio leDesk anunciava a presença em Portugal de Abdellatif Hammouchi, director-geral dos serviços de informação e segurança marroquinos (DGSN-DGST), «para analisar formas de cooperação».

Cooperar, em quê?

Conta o leDesk: «O Director-Geral da Segurança Nacional e da Vigilância Territorial, Abdellatif Hammouchi, chefiou uma importante delegação de segurança numa visita de trabalho a Portugal, na quarta e quinta-feira [dias 21 e 22], durante a qual manteve conversações com responsáveis portugueses sobre as formas de promover a cooperação em vários domínios da segurança, nomeadamente a luta contra o terrorismo e a criminalidade organizada transfronteiriça.
«Durante a sua visita, Hammouchi encontrou-se com a Embaixadora e Secretária-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP), Mira Graça Gomes [Graça Mira-Gomes], e com o Director-geral do Serviço Nacional de Informações (SIS), Adélio Neiva da Cruz, bem como com o Director-geral do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED), Carlos López Pérez [Carlos Pires], segundo um comunicado da Direcção-geral de Vigilância do Território (DGST).»
A notícia foi reproduzida em diversos órgãos de comunicação social marroquinos como o La Vie ECO e o H24Info, que acrescenta:
«As conversações entre as duas partes centraram-se na avaliação da situação de segurança regional e internacional e nos vários perigos e ameaças que ameaçam ambas as margens do Mediterrâneo devido ao aumento das actividades terroristas, bem como nas formas de aprofundar a cooperação bilateral em matéria de segurança, acrescentou a mesma fonte.
«Esta visita confirma o desejo de ambas as partes de reforçar a cooperação em matéria de segurança e de consolidar a coordenação dos serviços de informações na luta contra as ameaças à segurança dos dois países, conclui o comunicado de imprensa da DGST.»
Em França a notícia foi também divulgada pelo Libération.
Abdellatif Hammouchi tem sido objecto de acusações pelas práticas de violação dos direitos humanos por parte dos serviços de que é responsável, como nos relata o Trial International:
«Abdellatif Hammouchi nasceu em 1966 em Taza, uma cidade do nordeste de Marrocos. Em 1991 licenciou-se em Direito na Universidade de Sidi Mohammed Ben Abdallah em Fez (Marrocos) e tornou-se agente da polícia em 1993. Em 2007, foi nomeado Chefe da Direcção-geral de Vigilância Territorial (DGST) pelo Rei de Marrocos Mohammed VI e, em 15 de Maio de 2015, tornou-se Director da Direcção-geral de Segurança Nacional (DGSN).
«Enquanto chefe dos serviços secretos marroquinos, Hammouchi está a ser investigado sob a acusação de ter torturado cidadãos franco-marroquinos entre 2008 e 2010: Adil Lamtalsi, Zakaria Moumni e Naâma Asfari. As duas primeiras vítimas alegaram ter sofrido tratamentos degradantes no centro de detenção secreto de Temara. Asfari denunciou ter sido torturado no acampamento de protesto de Gdeim Izik, situado em Laayoune, uma cidade do Sahara Ocidental.
«O centro de detenção secreto de Temara é um centro de detenção extrajudicial e uma prisão secreta situada a alguns quilómetros a sul de Rabat, em Marrocos. O centro é alegadamente gerido pela DGST e esteve implicado no passado em violações dos direitos humanos. Este centro de detenção foi inicialmente criado como um local secreto para a CIA realizar interrogatórios reforçados de suspeitos de terrorismo.
«A primeira vítima, Adil Lamtalsi, foi detido em Tânger em 30 de Setembro de 2008 e levado para Temara, onde terá sido torturado durante três dias. Foi depois transferido para outro centro em Larache, onde foi violentamente espancado, humilhado e obrigado a assinar um documento em árabe, língua que Lamtalsi não compreendia. Com base neste documento e na confissão forçada obtida sob tortura, Lamtalsi foi condenado a dez anos de prisão por tráfico de droga. Foi transferido para França em Maio de 2013.
«A segunda vítima de tortura é Zakaria Moumni, um antigo kickboxer famoso. Moumni foi detido em Setembro de 2010, vendado e levado para o centro de detenção de Temara, onde foi espancado e violado. Moumni, como relatou, foi torturado durante quatro dias, durante os quais foi privado de comida e água. Mais tarde, foi julgado por várias acusações e condenado por fraude na imigração com base no testemunho de duas pessoas que nunca foram identificadas. Foi condenado a três anos de prisão. Moumni cumpriu 18 meses de prisão até Fevereiro de 2012, altura em que foi libertado por indulto real do Rei Mohammed VI.
«A terceira vítima é Naâma Asfari, que foi detido a 7 de Novembro de 2010 e alegadamente torturado durante vários dias pelos serviços de informação, liderados por Hammouchi. Assinou uma confissão forçada obtida sob tortura e foi posteriormente condenado pelo tribunal militar marroquino, a 16 de Fevereiro de 2013, a 30 anos de prisão.
«As três vítimas e a ONG francesa Action chrétienne pour l'abolition de la torture (ACAT) apresentaram várias queixas contra Hammouchi por tortura perante a unidade especializada para o julgamento de genocídios, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e tortura do Tribunal de Paris. Além disso, foi apresentada uma queixa à Comissão das Nações Unidas contra a tortura.»
Na sequência destas queixas, no dia 20 de Fevereiro de 2014, sabendo-se que Hammouchi estava em visita de trabalho em Paris, sete polícias dirigiram-se à residência do Embaixador de Marrocos, onde estava hospedado, para lhe entregarem a intimação de um juiz e o levarem para prestar declarações relativas aos casos de tortura de que seria responsável. O visado teve de sair de França precipitadamente e, como lembrou Ignacio Cembrero em 2021, «Rabat cortou a cooperação antiterrorista com Paris e a espionagem francesa vingou-se recorrendo ao Twitter para desvendar centenas de documentos confidenciais marroquinos»
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Os documentos divulgados por ‘Chris Coleman’ entre 2 de Outubro de 2014 e início de Janeiro de 2015, podem ser consultados no website da ARSO: https://www.arso.org/ColemanPaper.htm.
. A cooperação ao nível da segurança foi retomada depois de a Assembleia Nacional francesa ter aprovado, em Julho de 2015, uma alteração ao protocolo sobre cooperação judiciária em matéria penal entre os dois países, ficando os juízes franceses manietados se os alegados actos - a prática de tortura - fossem cometidos em Marrocos. Várias ONG de direitos humanos questionaram a constitucionalidade do novo protocolo, sem consequências.
O sítio de informação francês Mediapart, a propósito do escândalo Pegasus escreve:
«As revelações do caso "Pegasus" continuam a expor a natureza do regime marroquino. O maior escândalo de espionagem desde o caso Snowden está a lançar uma luz particularmente dura sobre o papel de um homem-chave que cultiva obsessivamente a discrição e o secretismo e que faz tremer muitas chancelarias ocidentais, a começar pela França, o "país amigo" tão complacente com os excessos do reino cherifiano: Abdellatif Hammouchi.»
Com este curriculum e com o silêncio da imprensa portuguesa sobre este encontro de dois dias, ficamos a recear as piores consequências da sua realização. Provavelmente a candidatura ibero-marroquina ao campeonato do mundo de futebol de 2030 esteve na agenda. E que mais?


 


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