domingo, 4 de junho de 2023

PORTUGAL-SAHARA OCIDENTAL: SOARAM OS ALARMES!

(Boletim nº 121 - Junho 2023)

A 10 e 20 de Maio celebraram-se os 50 anos da criação da Frente POLISARIO e da sua primeira acção armada contra o colonizador espanhol. Foi também um mês em que o Sahara Ocidental irrompeu na cena política portuguesa, deixando desafios fundamentais ao governo.

«O pior cego é aquele que não quer ver»
Aminatou Haidar, Prémio Right Livelihood 2019, deu uma entrevista por ocasião da Semana Internacional de Solidariedade com os Povos de Territórios Não Autónomos (25 a 31 de Maio de 2023). Respondendo, entre outras, a uma questão sobre como reflecte pessoalmente sobre o 50º aniversário da FPOLISARIO e do início da luta armada saharaui, disse: «Ao longo destas cinco décadas, assistimos à perda de muitos mártires, vítimas e desaparecidos. No entanto, [este tempo] também levou ao desenvolvimento de uma sociedade saharaui moderna que dá grande importância à humanidade, à tolerância e à participação das mulheres, que são respeitadas e ocupam posições de destaque em todos os campos. A nossa motivação nasce do desejo de liberdade e do desejo de gozar de todos os nossos direitos como cidadãs e cidadãos saharauis. Como activista de direitos humanos que defende a luta pacífica, tenho plena consciência de que posso enfrentar consequências significativas, mas também entendo que a condenação mais severa seria permanecer em silêncio e aceitar que o meu povo se resignasse à injustiça.»
«Como imagina um Sahara Ocidental livre e desocupado?», perguntaram-lhe. «É o nosso sonho. Acredito firmemente que o meu povo pode estabelecer e desenvolver uma nação moderna e democrática. Acredito que todos os membros do meu povo pertencem por direito à sua terra, sua pátria. Infelizmente, vivemos uma divisão, com alguns residindo em zonas ocupadas e outros em campos de refugiados. Esta separação causou imensa tristeza, pois perdemos entes queridos sem a oportunidade de vê-los ou de nos verem. Tais experiências de sofrimento, no entanto, servem como lições valiosas que acabarão por ajudar o povo saharaui na construção de um país democrático, unido e progressista. Esta nação imaginada priorizará os direitos humanos e os princípios e valores da democracia.»
Omar Mih, o Representante da Frente POLISARIO em Portugal desde há um ano, em declarações à agência Lusa, pronunciou-se no mesmo sentido:
«Não foram apenas 50 anos de luta e sofrimento. Foram também 50 anos de construção, vitórias e conquistas que resultaram hoje numa nova realidade saharaui, moderna, unificada, mais determinada do que nunca a lutar e mais capaz de vencer. O objectivo último e único é o de completar a soberania da República Saharaui sobre todo o seu território nacional. (…) Há que exercer pressão sobre a parte que rejeita [Marrocos], até à data, todas as ofertas feitas pela ONU e pelos enviados pessoais [do Secretário-geral]. Para isso, há que começar por romper com esta tendência crescente na ONU de querer sacrificar o Direito Internacional em nome de uma visão errónea, parcial e injusta da ‘realpolitik’ [prática política orientada para a obtenção de resultados e limitada apenas por exigências práticas]. (…) É doloroso que, em vez de ser pressionado a chegar a uma solução, Marrocos esteja constantemente a receber gestos de cumplicidade que levaram ao colapso do processo e que podem conduzir a cenários ainda mais perigosos para todos nós».
Na véspera da realização, em Lisboa, da XIV Reunião de Alto Nível (RAN) Portugal-Marrocos, Omar Mih acrescentou: Portugal «pode ser amigo de Marrocos, mas não cúmplice dos seus erros». «Esperamos que Portugal não caia na chantagem marroquina de violar a legalidade internacional e que seja o que sempre foi, um país respeitador do Direito Internacional e respeitador dos valores da República e dos ideais da ‘Revolução dos Cravos’ e que demonstre que a amizade com Marrocos não significa necessariamente cumplicidade com este país contra os seus vizinhos e contra o Direito Internacional».

A linguagem importa

A Declaração conjunta dos governos português e marroquino no final da RAN 2023 fez disparar os alarmes. Num ponto (dos 117 que compõem o documento) com três parágrafos, todas as palavras foram pesadas e escolhidas:
«No que respeita à questão do Saara, o Governo português reiterou o seu apoio ao processo gerido pelas Nações Unidas tendo em vista uma solução política, justa, duradoura e mutuamente aceitável pelas partes.
«Os dois Governos concordaram quanto à exclusividade da ONU no processo político e reafirmaram o seu apoio à resolução 2654 do Conselho de Segurança da Nações Unidas, que assinalou o papel e responsabilidade das partes na procura de uma solução política realista, pragmática, duradoura e fundada no compromisso.
«Neste contexto, Portugal reiterou o seu apoio à iniciativa marroquina de autonomia, apresentada em 2007, enquanto proposta realista, séria e credível, com vista a uma solução acordada no quadro das Nações Unidas.» (Ponto 11)
Desde «o Saara», que é o nome de um deserto, e não o nome do território reconhecido pelas Nações Unidas como “não autónomo” e pendente de descolonização, ao destaque dado apenas à última resolução do Conselho de Segurança, quando a mesma abre com a afirmação “recordando e reafirmando todas as suas [do Conselho de Segurança] resoluções anteriores sobre o Sahara Ocidental”, passando pela alusão à «exclusividade da ONU no processo político» para evitar reconhecer o papel da Organização de Unidade Africana (hoje União Africana) nas negociações de 1991 que levaram ambas as partes (a Frente POLISARIO e Marrocos) a acordar na realização de um referendo através do qual o povo saharaui pudesse escolher o seu futuro, até à supressão da menção ao direito à autodeterminação, todo este ponto está feito para apoiar a política marroquina. A questão central vem no fim: «Portugal reiterou o seu apoio à iniciativa marroquina de autonomia, apresentada em 2007, enquanto proposta realista, séria e credível, com vista a uma solução acordada no quadro das Nações Unidas.»
Afirmou o Ministro dos Negócios Estrangeiros, em audiência perante a Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas da Assembleia da República, que esta é a linguagem da ONU. O problema não é o que está escrito, mas o que não está escrito. A escolha é deliberada. Vejamos dois exemplos mais evidentes.
Na mencionada resolução do Conselho de Segurança (2654, de 17 Outubro 2022), há dois pontos com alguma semelhança, mas que politicamente ostentam uma enorme diferença: o ponto 2 «Sublinha a necessidade de alcançar uma solução política da questão do Sahara Ocidental que seja realista, viável, duradoura e aceitável para todas as partes e que esteja baseada no compromisso (…)»; o ponto 4 «Exorta as partes a que retomem as negociações sob os auspícios do Secretário-geral, sem condições prévias e de boa fé, (...) com vista a conseguir uma solução política justa, duradoura e mutuamente aceitável que permita a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental no quadro das disposições conformes aos princípios e propósitos enunciados na Carta das Nações Unidas, e nota o papel e as responsabilidades das partes a este respeito.»
Parece que a única proposta existente com vista às negociações é a que foi apresentada por Marrocos, mas um outro parágrafo da resolução 2654 esclarece: «Tomando nota da proposta marroquina apresentada ao Secretário-geral a 11 de Abril de 2007 e acolhendo os esforços sérios e credíveis de Marrocos para fazer avançar o processo com vista a uma resolução, e tomando nota também da proposta apresentada ao Secretário-geral pela Frente POLISARIO a 10 de Abril de 2007. Encorajando as partes, neste contexto, a que continuem a demonstrar a vontade política de alcançar uma solução, nomeadamente examinando de forma mais aprofundada as suas respectivas propostas (...)». De facto, para negociar é preciso haver, pelo menos, duas propostas – e há, tendo a da FPOLISARIO até sido apresentada antes da marroquina, mas é totalmente ignorada.
Se lermos o que na mesma Declaração conjunta Portugal e Marrocos expressam relativamente à Ucrânia, a diferença de linguagem é flagrante:
«Os dois países deploram a invasão da Ucrânia e apelam a uma solução que respeite os princípios do Direito Internacional e a Carta das Nações Unidas, nomeadamente o respeito pela soberania e pela integridade territorial de todos os Estados. Os dois Chefes de Governo manifestaram a sua preocupação com as violações dos direitos humanos e do direito humanitário e com os crimes contra a humanidade que têm sido denunciados no quadro do conflito.» (Ponto 98)
Da questão do Sahara Ocidental desapareceram as preocupações com o «Direito Internacional e a Carta das Nações Unidas, nomeadamente o respeito pela soberania e pela integridade territorial de todos os Estados», assim como com «as violações dos direitos humanos e do direito humanitário e com os crimes contra a humanidade», apesar de não faltarem denúncias bem fundamentadas e reiteradas há quase cinco décadas.
A linguagem em diplomacia importa porque é nessa base que se reafirmam ou se delapidam adquiridos do Direito Internacional. E também porque a palavra é matéria-prima essencial para a comunicação e a propaganda política. Com esta Declaração, Marrocos, a potência ocupante do Sahara Ocidental, inclui Portugal no rol dos seus apoiantes e o governo português, ao prestar-se a este jogo, enfraquece o Direito Internacional, põe em causa o seu prestígio pela forma como lidou com a questão de Timor-Leste e nega a Constituição da República: «Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao desenvolvimento, bem como o direito à insurreição contra todas as formas de opressão.» (Artigo 7º, § 3).

O desafio da coerência

A exposição pública da posição do governo português face à questão do Sahara Ocidental não passou incólume.
A Associação de Amizade Portugal-Sahara Ocidental (AAPSO) preparou e enviou aos grupos parlamentares, partidos políticos, Ministério dos Negócios Estrangeiros e Presidência da República, entre outros destinatários, uma análise de seis dos 127 pontos que constam da Declaração luso-marroquina. O objectivo foi fornecer informação relevante sobre a questão saharaui e, a essa luz, tornar claras as incongruências da posição adoptada.
O Partido Socialista e a Juventude Socialista emitiram, no dia 20 de Maio, um comunicado saudando «o povo saharaui por 50 anos de luta pela sua autodeterminação» e «reafirmando o seu compromisso com uma solução política justa, duradoura e mutuamente aceitável que permita a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental, no quadro das negociações lideradas pela ONU, das resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas e dos princípios da Carta das Nações Unidas». No quarto e último parágrafo reiteram: «Já tendo passado mais tempo desde que o plano de autonomia de Marrocos foi apresentado do que entre o cessar-fogo e a apresentação do plano, para os socialistas, é importante que as partes se comprometam em apresentar soluções realistas, sérias e credíveis tendo em vista a realização de um referendo para a autodeterminação do povo saharaui e do território do Sahara Ocidental».
Entre 23 e 24 de Maio o Presidente da Argélia, Abdelmadjid Tebboune, fez uma visita oficial a Portugal. Ocasião para o Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, ao recebê-lo no Palácio de Belém, de acordo com despacho da agência Lusa, esclarecer que «Naturalmente, temos uma posição que é a mesma, e que é a que respeita ao papel das Nações Unidas, ao respeito das resoluções das Nações Unidas, no domínio do Sahara Ocidental, da procura de uma solução política com mediação das Nações Unidas e acordo entre as partes interessadas. Para nós, isso tem sido a posição constante». Num tom menos formal, não foi feita nenhuma menção à proposta marroquina de autonomia e, implicitamente, ao exprimir «o respeito das resoluções das Nações Unidas, no domínio do Sahara Ocidental», foi apoiado o direito à autodeterminação do povo saharaui.
Uma semana depois (30 de Maio) o Ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, compareceu perante a Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas (CNECP) da AR. Sobre o Sahara Ocidental foi questionado, por duas vezes, pela deputada do Bloco de Esquerda Isabel Pires, no sentido de procurar saber se o governo português tinha mudado a sua posição, em particular relativamente ao direito à autodeterminação do povo saharaui, como o impõe a ONU e a Constituição portuguesa. Resposta negativa (mais bem preparada do que em anteriores situações) do MNE que, como se refere atrás, manteve que Portugal está alinhado com a ONU e que a elogiosa referência ao plano de autonomia apresentado por Marrocos em 2007 é só porque «processos negociais começam precisamente pela colocação de propostas de parte a parte, e não é habitual que a primeira proposta acolha de imediato entusiasmo do outro lado. Contudo, sem primeira proposta, não há nem segunda nem terceira e, portanto, é essa a situação em que estamos e é essa a situação que nos tem levado há muitos anos a sublinhar a importância que atribuímos a esse passo, não dizemos que essa é a solução». Muito bem, falta reconhecer (e valorizar) que a FPOLISARIO foi a parte que apresentou a primeira proposta e assumir que a solução está em inúmeros documentos das Nações Unidas: a realização de um referendo para que seja o povo saharaui a decidir sobre o seu futuro.
O governo português acaba de protagonizar um «caso de incoerência», tinha escrito na véspera (29 de Maio) José Manuel Pureza em artigo de opinião no Público.
«A maneira como Portugal se bateu pelo Direito Internacional em Timor-Leste foi fator maior da credibilização do país na arena mundial. Portugal soube escolher um valor e lutar por ele contra todos os interesses. Desgraçadamente, relativamente ao Sara Ocidental, o Governo português parece agora desdizer tudo isso e ceder ao cinismo das potências e dos negócios, desprezando o Direito Internacional e os direitos fundamentais dos povos. É uma escolha grave porque delapida o melhor capital diplomático de Portugal. E é também um desafio aos tantos opinadores que dividem a sociedade portuguesa entre bons e maus a propósito da autodeterminação da Ucrânia – o que dizem (ou será que não dizem…) sobre a autodeterminação do Sara Ocidental?»


 


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