(Boletim nº 120 - Maio 2023)
As relações do governo de Espanha com o regime marroquino continuam a gerar internamente um grande mal-estar e alguma crispação política, de que a comunicação social do país se tem feito eco. O detonador desta situação foi, não só o reconhecimento por parte do governo de Pedro Sánchez da “marroquinidade” do Sahara Ocidental, mas também as circunstâncias que rodearam esse reconhecimento.
Pacto de silêncio
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Como nos lembra Antonio R. Naranjo, jornalista no jornal El Debate, «Foi Mohammed VI quem anunciou que Marrocos tinha alcançado um objectivo histórico e que a Espanha cedia a sua posição de destaque na sua antiga colónia, provocando uma crise diplomática com a Argélia que ainda hoje perdura.
«E fê-lo revelando a alegada carta que, dias antes, lhe tinha sido enviada por Pedro Sánchez, o mesmo Presidente que, antes de chegar àquele momento, tinha recebido o líder da Frente POLISARIO em Espanha e sido espiado através do seu telemóvel pessoal.
«Mas dessa carta original, chave para a reviravolta internacional, nunca se conheceu o original, perdido num estranho labirinto de versões em duas línguas, fugas de informação em benefício próprio e difusões extravagantes pelo destinatário sem o conhecimento do autor.
«Até agora. Porque o Conselho de Transparência e Bom Governo protegeu o El Debate, com uma resolução de grande importância que obriga Pedro Sánchez a enviar, através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, até três documentos-chave para compreender a decisão mais relevante, unilateral e com efeitos secundários, adoptada pelo Presidente do Governo.
«Assim, este jornal deverá receber em breve o original da carta alegadamente redigida em francês pelo Governo, a cópia oficial da carta traduzida para espanhol e, numa decisão inédita que afecta terceiros, a "cópia do documento através do qual a carta foi enviada ao jornal El País e a data em que foi enviada". (…).
«Rabat vendeu a decisão de Sánchez de aceitar a posição de Marrocos sobre a questão em parágrafos que provocaram o entusiasmo de Mohamed VI: "Reconheço a importância da questão do Sahara Ocidental para Marrocos e os esforços sérios e credíveis de Marrocos, no quadro das Nações Unidas, para encontrar uma solução mutuamente aceitável. Neste sentido, a Espanha considera a proposta marroquina de autonomia apresentada em 2007 como a base mais séria, credível e realista para a resolução deste diferendo". (…).
«Cinco dias após o gesto de Marrocos, pouco usual nas relações internacionais, a carta em questão permaneceu em segredo para as forças parlamentares e, provavelmente, para a própria Casa Real, apesar de o Rei ter poderes constitucionais para representar a Espanha perante o mundo. Todos eles só tiveram conhecimento da tradução espanhola, com gralhas e erros gramaticais, através do El País.
«As tentativas infrutíferas da oposição para obter o original supostamente apresentado por Sánchez chegaram agora ao fim, após uma longa disputa entre o El Debate e o governo, que terminou com uma resolução do Conselho de Transparência muito crítica em relação aos atrasos de Sánchez: (…).
«A resolução arrasa igualmente as desculpas apresentadas pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros a este jornal para lhe negar o acesso à documentação oficial da viragem sobre o Sahara, com base na sensibilidade do seu conteúdo e nas consequências diplomáticas que a sua divulgação poderia ter: "Trata-se de um pedido de documentos deste Ministério (ou de outros Ministérios), relacionados com a tomada de decisões em matéria de política externa. O carácter confidencial destes documentos justifica-se pela necessidade de evitar prejuízos para as relações externas e pela confidencialidade das decisões políticas. Note-se que este tipo de documentos reflecte apreciações e posições políticas sobre a situação noutros países, cuja eventual publicidade provocaria reacções em países terceiros e poderia pôr em causa as relações bilaterais com governos estrangeiros. Por todas estas razões, considera-se que se justifica o carácter confidencial destes documentos", defendeu o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Agosto passado, numa tentativa de travar este jornal. (…).
«O procedimento pelo qual El Debate deve receber uma cópia de todas as cartas e o canal utilizado para as transmitir ao El País teve início a 15 de Junho de 2022 e impõe ao Governo a obrigação de enviar toda a documentação no prazo de dez dias úteis. Por outras palavras, rapidamente.
«Quando as ordens forem cumpridas, será possível saber onde foram escritas as cartas, quem foram os seus autores e como explicar o misterioso desencontro entre versões, línguas, prazos e canais de divulgação, que chegou a estimular o rumor infundado de que o verdadeiro autor original era Marrocos e que depois a Espanha o teria feito seu.»
Mas o silêncio não se rompeu nem quando o presidente do governo de Espanha compareceu perante o parlamento, como relatou Ana Martin no mesmo jornal:
«Na sua comparência no Congresso, nesta quarta-feira [19 de Abril], o chefe do Executivo voltou a dar uma resposta silenciosa a todas e cada uma das questões pendentes que lhe foram colocadas pelos porta-vozes parlamentares.
«É algo a que todos estão habituados, porque, nestes 13 meses, nem Sánchez nem o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, José Manuel Albares, explicaram publicamente o que está por detrás do reconhecimento do plano de autonomia marroquino para a antiga colónia espanhola, do qual nem Felipe VI tinha conhecimento, como este jornal revelou. Nem se tem alguma coisa a ver com as informações roubadas do telemóvel do Presidente através do sistema de espionagem Pegasus. (…).
«Tudo o que o Presidente fez na quarta-feira foi desafiar o PP, caso tenha um "programa alternativo" para Marrocos, a apresentá-lo em pormenor aos espanhóis. Isso e elogiar Marrocos por ser um "amigo" e "aliado essencial" de Espanha. Um país em cujas mãos está a torneira migratória. De facto, Sánchez vangloriou-se de que a rota atlântica é a única que está a diminuir, enquanto a migração ilegal está a crescer nas restantes. Segundo ele, no primeiro trimestre de 2023, a entrada de migrantes sem documentos através de Ceuta e Melilha diminuiu 78% em relação ao ano passado e 63% no caso das Ilhas Canárias.
«A Espanha está interessada na cooperação do reino de Mohammed VI não só em questões de imigração ilegal e terrorismo. Está também interessada nas oportunidades de negócio que se abrem num país que, até 2050, vai partilhar um bolo de 45 mil milhões de euros em investimentos em infra-estruturas, com empresas francesas e chinesas a apresentarem propostas muito sedutoras.
«E Marrocos está interessado noutras coisas para além da mudança de posição sobre o Sahara. Interessa-lhe que o dinheiro espanhol circule na sua economia. De facto, a cimeira de Fevereiro serviu, entre outras coisas, para que o Governo de Sánchez duplicasse a linha de crédito para as empresas espanholas que investem em Marrocos: de 400 milhões para 800 milhões. E também para que Espanha sirva de ponte entre o reino alauita e a União Europeia.
«Na sua intervenção, o Presidente sublinhou que Espanha não está sozinha, mas que a sua posição sobre o Sahara é a mesma que a de França, Alemanha, Países Baixos, Bélgica, Luxemburgo, Hungria, Roménia, Chipre, Áustria e Grécia. É precisamente com o presidente de um dos grandes aliados de Marrocos, os Estados Unidos, que Sánchez se reunirá no dia 12 de Maio na Casa Branca, segundo informou [o Palácio da] Moncloa na tarde de quarta-feira.
«Há apenas um mês, o secretário de Estado norte-americano Antony Blinken encontrou-se com o seu homólogo marroquino e reiterou publicamente o apoio dos EUA ao plano de autonomia de Mohamed VI para o Sahara Ocidental. Uma proposta "séria, credível e realista", como lhe chamou.»
Outros elementos da construção desta teia relacional têm, entretanto, vindo a subir à praça pública, como é o caso do processo que o governo de Madrid reconheceu, no passado dia 23 de Março, estar em curso para a transferência para Marrocos do controlo do espaço aéreo da antiga colónia espanhola, até agora gerido a partir das Ilhas Canárias «conforme estabelecido no mapa da Organização da Aviação Civil Internacional, uma agência da ONU que supervisiona a aviação civil internacional.» «Foram iniciadas conversações com Marrocos neste domínio». As conversações «limitam-se à gestão do espaço aéreo e à coordenação entre as duas partes no interesse de ligações mais seguras e da cooperação técnica».
Esta comunicação «surge poucos dias depois de fontes do Instituto Cervantes terem dito ao El Independiente que o Instituto estava prestes a desembarcar em El Aaiún, a capital dos territórios do Sahara Ocidental ocupados por Marrocos, em mais um passo para o reconhecimento da soberania marroquina sobre o último território do continente africano pendente de descolonização.»
Na ocasião a Frente POLISARIO «publicou um comunicado em que rejeita os contactos entre Rabat e Madrid para a transferência do espaço aéreo saharaui. (…), "sem ter em conta a legalidade internacional e contra todas as forças políticas e a sociedade civil espanhola".» E no qual «condena igualmente a ideia de abrir uma extensão do Instituto Cervantes na cidade ocupada de El Aaiún, "o que põe em causa a credibilidade desta instituição e a coloca ao serviço de Marrocos para branquear a ocupação militar do Sahara Ocidental".»
Em todo este processo transparece a clara fraqueza de Madrid perante o desafio que o regime marroquino lhe colocou, como, aliás, a de toda a União Europeia, que não tem sido capaz de ter uma política externa autónoma, assente nos princípios e valores com que os seus políticos e representantes enchem a boca. É uma mera “Maria vai com as outras”. Por maus caminhos.
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