terça-feira, 4 de abril de 2023

PEDRO SÁNCHEZ, A UCRÂNIA E O SAHARA OCIDENTAL

 (Boletim nº 119 - Abril 2023)

Em princípios de Março passado Lluís Capdevila escreveu um texto onde analisa o comportamento do Primeiro-ministro de Espanha Pedro Sánchez no conflito na Ucrânia e no Sahara Ocidental. Apresentamos aqui a sua tradução.

"A violação do direito internacional não pode ficar impune"

«Já passou mais de um ano desde que Putin lançou a "operação militar especial" sobre o Donbass que deu início à invasão russa da Ucrânia. No mesmo dia, 24 de Fevereiro de 2022, o Primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, apareceu em La Moncloa para fazer uma declaração institucional e transmitir aos cidadãos espanhóis uma "condenação retumbante" da Rússia por violar a legalidade internacional e invadir um país vizinho.
«Mas o mesmo Pedro Sánchez não deixou passar um mês após essa declaração em La Moncloa para posicionar a Espanha, em relação a outro conflito armado, do lado do país invasor, Marrocos, que viola a mesma legalidade internacional desde 1975, quando iniciou a sua própria ocupação militar de outro país vizinho: o Sahara Ocidental. Aparentemente, o que Sánchez quer para o povo ucraniano, não o quer para os saharauis.
«Nessa declaração em La Moncloa, o Primeiro-ministro espanhol descreveu a invasão russa do território ucraniano como "uma violação flagrante do direito internacional, da soberania nacional e da integridade territorial da Ucrânia", bem como um "ataque frontal" aos princípios e valores que, segundo Sánchez, "estão na base da nossa Constituição, da Constituição espanhola", tais como "os valores da paz, do respeito pela legalidade internacional, da solidariedade e também da cooperação humanitária com os povos afectados".
«"A Espanha defenderá a legalidade internacional, a Espanha esforçar-se-á por restabelecer a paz", prosseguiu o Primeiro-ministro, mostrando ao mesmo tempo solidariedade "com os povos afectados pela agressão". A que distância está o Sahara quando o mesmo compromisso com a legalidade internacional e a mesma solidariedade são exigidos por outro povo invadido, mesmo que o faça das suas tendas nos campos de refugiados de Tindouf ou das áreas ocupadas do Sahara Ocidental?
«Mas longe de mostrar uma coerência mínima entre os discursos sobre os dois conflitos, e apenas três semanas após a declaração institucional de Pedro Sánchez em La Moncloa para condenar a invasão russa da Ucrânia, a Casa Real Marroquina tornou pública, a 18 de Março de 2022, uma carta que o Primeiro-ministro espanhol tinha enviado ao rei Mohammed VI na qual o primeiro afirmava que a proposta de Marrocos de autonomia no Sahara Ocidental era "a base mais séria, credível e realista para a resolução" do conflito. Na mesma carta, Sánchez reiterava a sua "determinação em enfrentar juntos desafios comuns, especialmente a cooperação na gestão dos fluxos migratórios no Mediterrâneo e no Atlântico, num espírito de plena cooperação" e expressava que "todas estas acções serão levadas a cabo com o objectivo de garantir a estabilidade e integridade territorial dos dois países".
«Segundo a declaração do Gabinete Real marroquino, Pedro Sánchez disse também ao monarca alauita que a Espanha agiria "com a transparência absoluta que convém a um grande amigo e aliado" e que o seu país "honrará sempre os seus compromissos e a sua palavra".
«Nessa mesma noite, o Ministro dos Negócios Estrangeiros espanhol, José Manuel Albares, compareceu perante os meios de comunicação social onde, longe de criticar a forma como o Reino de Marrocos tornou pública a carta, confirmou o que nela foi expresso e afirmou tratar-se "do início de uma nova etapa" nas relações entre Espanha e Marrocos.
«- A Espanha reconhece os esforços sérios e credíveis de Marrocos no quadro das Nações Unidas - declarou Albares nessa mesma noite em relação ao conflito do Sahara Ocidental - para encontrar uma solução mutuamente aceitável, como tem vindo a fazer em reuniões de alto nível em 2008, 2012, 2015 e em conformidade com a Resolução 2602, para citar uma delas, do Conselho de Segurança das Nações Unidas, e, neste sentido, a Espanha considera que a iniciativa de autonomia apresentada em 2007 é a base mais séria, realista e credível para a resolução deste conflito.
«Por outras palavras, o governo espanhol posicionou-se do lado de Marrocos no conflito do Sahara Ocidental, legitimando assim a ocupação marroquina do território saharaui em plena guerra do Sahara, que colocou o reino alauita contra a Frente POLISARIO e a República Árabe Saharaui Democrática desde que as forças militares marroquinas quebraram o cessar-fogo a 13 de Novembro de 2020.
«Com a sua categórica posição sobre o conflito do Sahara demonstrada a partir de 18 de Março, Sánchez desvalorizou as palavras que proferiu três semanas antes na sua declaração em La Moncloa, onde declarou que a União Europeia e os seus "aliados" queriam mostrar ao governo de Putin "que as violações do direito internacional e da soberania e integridade territorial de países terceiros não podem ficar, não devem ficar impunes" e que o governo espanhol estava empenhado na unidade daqueles que acreditam "na democracia, no Estado de Direito, num mundo baseado em regras e, portanto, de certeza, na paz, no respeito pelas fronteiras, na soberania nacional e na liberdade dos povos". Mas parece que este é um discurso que só funciona para a Rússia e Putin, não para Mohammed VI e Marrocos!
«É devido ao apoio do antigo primeiro-ministro Rodríguez Zapatero ao plano de autonomia marroquino que o actual apoio de Pedro Sánchez, também do PSOE, não surpreende tanto, apesar dos desacordos no seio do seu próprio governo, onde o parceiro minoritário no governo de coligação, Unidas Podemos, sempre favorável ao exercício do direito à autodeterminação do povo saharaui, criticou a posição do governo de Espanha, tal como o fizeram os parceiros de investidura, incluindo o Esquerra Republica de Catalunya (ERC), o EH-Bildu e o próprio Partido Nacionalista Basco (PNV). De facto, não só nenhum outro partido com representação parlamentar apoiou Sánchez na sua decisão, como também todo o PSOE não concordou em virar as costas aos saharauis.
Um mês após a drástica mudança de política externa do governo de Madrid sobre o conflito do Sahara, Pedro Sánchez deslocou-se a Kiev para se encontrar com o seu homólogo ucraniano, Volodymir Zelenski, a 21 de Abril de 2022, e mostrar o total apoio político de Espanha à Ucrânia na sua resistência à invasão russa.
«Desta reunião resultaram repetidas condenações da invasão salientando-se o facto de o governo espanhol ter apoiado a implementação de medidas aprovadas contra a Rússia pela União Europeia, que preparava então um sexto pacote de sanções.
«Desde então, Pedro Sánchez reiterou em numerosas ocasiões o seu apoio à Ucrânia, mas também foi sempre coerente com a posição que assumiu sobre o conflito do Sahara em Março de 2022, apesar de o Rei de Marrocos ter evitado recebê-lo numa viagem que fez a Rabat com a metade PSOE do seu governo a 1 de Fevereiro de 2023 e de o PSOE ter sido deixado sozinho no Parlamento na rejeição, a 14 de Fevereiro, de um projecto de lei da Unidas Podemos para conceder a nacionalidade espanhola aos saharauis nascidos antes de 1976, votação que teve o apoio dos restantes grupos da Câmara, com excepção do Vox que se absteve.
«Poucas horas antes do primeiro aniversário da invasão russa da Ucrânia, Pedro Sánchez viajou de novo para Kiev. A 23 de Fevereiro, o Primeiro-ministro espanhol transmitiu uma vez mais a Zelenski o apoio da sociedade espanhola ao povo ucraniano, reiterando simultaneamente o apoio da Espanha e da UE no seu conjunto à Ucrânia face a uma flagrante violação de princípios básicos do direito internacional, tais como a soberania e a integridade territorial. "A Espanha não reconhecerá as falsas anexações de territórios ucranianos por Putin", declarou, embora, como vimos, reconheça e apoie uma outra anexação como foi a do território do Sahara Ocidental por Marrocos.
«Nessa tarde, dirigindo-se ao plenário do parlamento enquanto prestava homenagem à dignidade do povo ucraniano, Sánchez declarou que "a Ucrânia luta pela sua sobrevivência" enquanto o seu inimigo luta pelo poder. "A sua luta não é digna. A vossa é um hino à liberdade", para concluir com mais uma demonstração de apoio: "não estais sozinhos nesta escuridão, nós estamos convosco".
«Quão reminiscentes são estas últimas palavras das utilizadas por Felipe González a 14 de Setembro de 1976 nos campos de refugiados saharauís em Tindouf, onde, de braço erguido, se comprometeu perante a história que o PSOE estaria com o povo saharaui "até à vitória final".
«González ganhou as eleições gerais de 1982 com maioria absoluta, mas uma vez proclamado chefe do governo espanhol, o novo PM foi rápido a mudar a sua posição sobre o conflito do Sahara enquanto o seu recém-nomeado ministro dos negócios estrangeiros, Fernando Morán, declarou que, enquanto governo, "não só não faremos nada para desestabilizar o Rei de Marrocos, como faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para manter a sua estabilidade".
«As palavras premonitórias de Morán foram seguidas por políticas de aproximação à monarquia alauita pelo novo governo, tais como o facto de a primeira viagem oficial de Felipe González ao estrangeiro como presidente do governo espanhol ter sido a Rabat em 1983 para se encontrar com o então monarca Hassan II. Com o tempo seguir-se-ia a expulsão de representantes da Frente POLISARIO de Espanha em 1985 e a continuação da venda de armas a Marrocos pelo governo espanhol, que se mantém até hoje.
«Eu diria aos ucranianos para terem muito cuidado com o que um líder do PSOE lhes possa prometer pois se traíram os saharauis, que tinham sido cidadãos espanhóis até 1976, o que não farão com um povo mais distante como o ucraniano.»


 

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